quarta-feira, 25 de abril de 2007

há 33 anos, a 25 de Abril


Há 33 anos,a 25 de Abril, estava nesta casa há espera de um 'golpe de estado'. Era o que anunciava a BBC há um mês, ouvida à noite, nas escadas da entrada ou na sala de estar do vizinho. Que de golpes não percebia nada até à data, apesar de já ter lido no 'Paris Match' a história do rapaz Ian Palach que na Checoslováquia se imolou quando os soviéticos entraram em Praga. Tinha visto a fotografia dele a arder na rua, apanhado em primeiro plano pela objectiva do fotógrafo, com os tanques bolcheviques por fundo.
Que sabem as pessoas de dezasseis anos, todos quantos tinha, de golpes de estado? Absolutamente nada, mesmo que o pai insista em explicar, à mesa e quando se têm conversas de família sérias, que temos de estar preparados para o que vem aí. Por isso, daquela janela do meio, no primeiro andar, às seis e meia da manhã, ao ouvir o colega do meu pai dizer: "É o golpe de estado. Vai, vai dizer ao teu pai!...", obedeci, claro, como se obedece quando um adulto nos diz para dar um recado e espera que façamos exactamente como diz.
Da mesma janela, já manhã mais avançada, assisti ao burburinho na rua, às corridas de pessoas que se alarmavam e pareciam não saber exactamente o que fazer. Da janela, porque naquele dia não se queriam os filhos à deriva na rua, que era perigoso embora ninguém nos dissesse exactamente porquê.
Ouvia-se na rádio que a tropa tinha tomado um quartel qualquer na metrópole e que por isso tinha começado a revolução. "Um quartel como aqui?", quis saber o Custódio, o cozinheiro, a ouvir connosco o noticiário enquanto tomávamos o pequeno-almoço. Encolhi os ombros, que da metrópole percebia eu tanto ou menos do que ele.
Mais tarde e para minha grande frustração, o Félix, o criado mais novo, chegou da rua num alvoroço, com novidades. Juntámo-nos todos na sala de jantar, a minha mãe, as minhas irmãs, eu e o Custódio para o ouvir.
O Félix tinha ido ao mercado, às compras. E ao passar pela sede da PIDE estavam a chegar os Unimogs com soldados, que arrancaram à força os funcionários que lá estavam e os levaram presos. "Até senti uma coisa na cabeça e nas costas", dizia o rapaz, que ainda vinha a tremer.
Ficou então decidido que ninguém saía de casa sozinho ou, pelo menos, sem avisar que o ia fazer. A medida aplicava-se também ao Custódio e ao Félix, que tinham vindo connosco há um mês de Manica, junto à Rodésia. Como não eram da zona, o melhor era tomarem as mesmas cautelas que nós, não fosse alguém lembrar-se de retaliar por serem de fora e ainda por cima trabalharem em casa de um funcionário do Estado português.
A manhã passou-se assim, entre o que se ouvia na rádio, ao telefone e no que fulano e beltrano vinham até à porta contar. À tarde, com alguma tranquilidade reposta à força de o 'golpe' ser lá para a metrópole e a vida prosseguir, lá fui autorizada a dar uma volta pelas ruas.
O 25 de Abril, em Inhambane, foi sobretudo passado à sombra, em grupos à volta dos rádios a pilhas. E em perplexidade também, porque o golpe de estado passava-se a tantos milhares de quilómetros, que por força iria demorar a mesma distância a entrar-nos completamente na cabeça.
A noite, de novo à escuta na frequência da BBC, espantei-me com os detalhes, os nomes, as informações dos correspondentes estrangeiros em Lisboa. Havia com certeza dois golpes de estado: o daquela estação e o relatado pelas rádios em Moçambique.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

divinos designíos: arbitrariedade ou livre arbítrio?

não acredito que deus exista. se existe, é com certeza um deus da arbitrariedade. e quando falo em arbitrariedade não me refiro ao conceito 'puro'. apenas naquilo que, embora obedecendo a causa e efeito, como tudo nesta vida, somos incapazes de ajuizar, abarcar, prever e,portanto, controlar.
muito do nosso sucesso advém da capacidade que nos cabe para controlar determinados aspectos da nossa vida. há, pois, pessoas que têm mais aspectos da sua vida sob controlo e, por isso reconhecemos nelas pessoas 'às direitas', fiáveis, confiáveis.
apesar disso, nem essas pessoas são imunes à arbitrariedade, ou seja, aos factos e acontecimentos que não dependem do seu controlo. claro que, por imposição de carácter, essas pessoas podem agir/reagir de forma controlada a acontecimentos que, num ápice, descontrolem alguma porção das suas vidas.
atendendo a que o carácter é material genético e incontrolável 'à priori', podemos concluir que o facto de termos um determinado feitio (ou carácter) e não outro, é um dado arbitrário.
assim, se alguém nasce numa família 'descontrolada', podemos assumir que tem mais hipóteses de ter muito menos sob controlo, apesar de até poder ser uma pessoa de carácter 'controlado' e 'controlável'. de novo se aplica aqui a arbitrariedade.
alguém que tem as suas coisas sob controlo pode ou não deparar-se com circunstâncias capazes de fazer vingar e potenciar as suas qualidades.
quem não as tem pode, apesar de tudo, ser beneficiado por oportunidades 'imerecidas' e conhecer um imenso sucesso, sem de facto ter feito o suficiente para isso.
bons e honestos nem sempre são compensados pelos seus actos, apesar dos ditos optimistas e demagógicos amplamente difundidos a esse respeito.
maus e desonestos também nem sempre pagam pelo que fazem. ao contrário da ilógica afirmação 'cá se fazem, cá se pagam'. muitas vezes um pouco de inteligência basta para escapar a óbvias consequências e, quase sempre, os nossos próprios conceitos de culpa, de bom e de mau são o suficiente para desencadear a causa castigadora, por mor da nossa crença na fatalidade do castigo e pouco mais. não por alguma lei universal de causa e efeito que a experiência e a estatística comprovem, mas porque a nossa bem treinada moral a isso nos conduz.
a justiça fica, por isso, no universo da utopia e aí deve manter-se, sob pena de se constituir alucinação e com isso mais contribua para o prejuízo próprio e colectivo do que para a vitória das forças do Bem.
portanto, que deus é esse que promove tanta diversidade de factores absolutamente fora do controlo dos eleitos da sua Criação, advogando em seguida que a sua dádiva é a concessão do livre arbítrio? será sim, mas a todo o universo e não apenas a primatas acidentalmente erectos e egocentrados com tendência para a cegueira voluntária.
ou será esse deus, à imagem e semelhança da sua espécie eleita, incapaz de reconhecer um universo em constante evolução, em que tudo, matéria e espírito, se acotovela e avança em função da lei do mais forte? estará esse deus em negação? ou estará embuído do espírito romântico que também acomete com frequência alguns indivíduos da nossa espécie?
ou será esse deus um gigante paternalista e promotor da acomodação, da aceitação cega de um destino e da menorização da auto-estima pessoal através de múltiplas provações? será a sujeição cega um objectivo divino?
não acredito. deus, assim compreendido, não existe. porque a existir, conheceríamos de igual forma o seu bom e o seu mau. e a impressão com que se fica, ao fim de alguns anos de experiência, na última linha do deve e haver da vida, é que o Bem perde irremediavelmente para o Mal, não sendo possível erradicar o amargo de boca que nos fica sempre do que de negativo se acumula na vida.
deus não existe, não senhora. deus perde para uma imensidade de pequenas divindades, a maioria de diminuta dimensão, cada uma delas com o seu domínio próprio e dividida entre desejos inacreditavelmente humanos, necessidades naturais absolutas e a inevitabilidade das forças universais em eterno conflito, sujeitando-nos à espantosa arbitrariedade do seu poder.
quem e em nome de quê inventou um deus a preto e branco num mundo obviamente fadado para o tecnicolor?