quarta-feira, 26 de maio de 2010

deixa o prolongamento electrónico dos meus neurónios em paz!



Tinha para aí quinze anos quando alguém se lembrou de me emprestar o livro How to Win Friends and Influence People, do Dale Carnegie. Na altura, sob o cerrado ataque hormonal típico de qualquer adolescente, entrava muda e saía calada na esperança de que ninguém desse por mim e pelas minhas inenarráveis elucubrações.
Lembro-me de ter pensado que só um americano se poderia ter lembrado de fazer dinheiro à conta do senso comum, ainda por cima na forma de cábulas de consulta rápida - pelo menos para os mais crentes.
Hoje não precisamos de drugstore best-sellers para nos convencermos de que precisamos de um manual de auto-ajuda para sobreviver a tudo e a todos. Hoje há o email e toda a gente se acha no direito de nos bombardear com mensagens de aparente profundidade sobre a ideal forma de estar na vida, de encarar as contrariedades, de usar a água para emagrecer, mantras para atingir não sei que orgasmo cósmico, orações para apaziguar a fúria divina e ganhar uns milagrosos tostões.
Toda a gente copia e recopia quilómetros e quilómetros de sentenças, frases de gente célebre, soluções fantásticas, observações agudíssimas e dietas, debita segredos para curas inacreditáveis, avisos sobre uma próxima visita de extra-terrestres e imagens nunca vistas de espíritos, aparições e outras duvidosas questões.
E nesse absurdo esforço diário de comunicar a todos a melhor receita para o bem-estar e a sobrevivência da espécie, à mistura com apresentações enfadonhamente açucaradas com fotografias de cães e gatos abraçados, ou smileys sorridentes a quem só falta ouvir a tão americana expressão Oh My God, o que nunca ocorre a ninguém é fazer o que tão generosamente partilham com toda a gente.
Por que será então todo esse afã de tranquilizar a consciência própria e alheia com tão hercúleas passagens de testemunho? Será pura e simplesmente para arruinar e desesperar os produtores de best-sellers? Ou para contrariar a tinta manchada de sangue dos jornais?
O certo é que, pessoalmente, me sinto castigada por essa avalanche de mensagens que justificam até ao esgotamento a célebre expressão de boas intenções está o inferno cheio. A ponto de sentir um nó no estômago quando abro a minha caixa do correio e dou de caras com o assunto de um ou trinta desses emails.
Já pensei mesmo em comercializar um software capaz de detectar todas essas mensagens filosóficas, pejadas de conselhos e de auto-ajuda, que envie de imediato aos remetentes uma resposta curta e grossa: Salva-te a ti próprio e deixa o prolongamento electrónico dos meus neurónios em paz!
O pior é que corria o risco de receber essa mesma mensagem como um reencaminhamento de algum cidadão que não conheço, mas que caçou o meu endereço electrónico num outro reencaminhamento dessa perigosa espécie de utilizadores de emails que é incapaz de limpar os endereços dos outros e que resolve fazer suas todas as mensagens que lhe chegam à caixa de correio, despachando-as num ápice para as vítimas seguintes.
Se vivesse nos dias de hoje, duvido que o senhor Carnegie tivesse alguma vez escrito os primeiros manuais de auto-ajuda. Ou que os budas mantivessem o seu sorriso de bonomia depois de milhões e milhões de flores de lótus enviadas em seu nome.
Ufa!

segunda-feira, 3 de maio de 2010

atirar a democracia contra si própria


Parecendo até uma medida extremista, esta de tentar a proibição do uso da burka em toda a Europa, por atentar contra os direitos de indivíduos de outros credos que não os cristãos, merece no entanto alguma ponderação.
É que a Europa, com os seus não muito antigos direitos e liberdades adquiridos, já está a braços com algumas das consequências do reconhecimento desses mesmos direitos. Na maioria dos países com uma larga imigração oriunda de países islâmicos, por exemplo, as liberdades e direitos dos cidadãos permitem que os estrangeiros se estabeleçam e se integrem, fazendo mesmo parte dos órgãos locais de governo e decisão.
O que começa então a acontecer? A influência dessas comunidades começa a exercer-se no sentido de restringir certos direitos e liberdades dos indivíduos e é claro que as mulheres e os seus ainda frágeis direitos são as primeiras atingidas.
Ou seja, as liberdades servem para alguns indivíduos limitarem essas mesmas liberdades, visto que o peso das comunidades estrangeiras a nível de governo local ameaça desequilibrar o fiel da balança.
A tentativa da proibição do uso da burka é apenas a ponta do icebergue. Há muito mais do que parece por detrás de um simples véu. E não são apenas os véus muçulmanos que tentam abanar o edifício dos direitos e liberdades. Há muitos outros grupos religiosos, cristãos e nem por isso, que estão muito activos e que também usam com exímia as leis dos países europeus em seu proveito.
Há muito tempo que os líderes religiosos exploram a fraqueza do exercício democrático, virando-o contra si próprio. E se as democracias resolverem fincar o pé e legislar contra determinados direitos fundamentais por causa dos abusos, incorrem no risco de abrir precedentes para outras restrições.
Ora, o que eu gostava era de ver um homem de leis chegar-se à frente e explicar que o universo do direito também está a evoluir e que é possível encontrar sistemas que sirvam a liberdade sem ferir o que é fundamental para o indivíduo.
E talvez, por arrasto, se tenha a sorte de conseguir que um punhado de jornalistas desista de fazer manchetes com lugares comuns e encha os títulos dos noticiários de frases bem formuladas, que além de bons títulos e boa propaganda, sirvam para levantar e debater as verdadeiras questões.