quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

pequenos e grandes náufragos



Uma vez tive de explicar o que era isso da alma do fado, a amigos de diferentes partes do mundo, veio-me a lembrança deste poema de Cecília Meireles (Naufrágio), musicado por Alain Oulman e cantado por Amália.

Pus o meu Sonho no navio / E o navio em cima do Mar / Depois abri o Mar com as mãos (com as mãos) / Para o meu sonho Naufragar // Minhas mãos ainda estão molhadas / Do azul, (do azul) das ondas entreabertas / E a cor que escorre dos meus dedos / Colore as areias desertas // O vento vem vindo de longe / A noite se curva de frio / Debaixo d'água vai morrendo / Meu sonho (vai morrendo) dentro do navio // Chorarei, quanto for preciso / Para fazer (para fazer) com que o mar cresça / E o meu navio chegue ao fundo / E o meu sonho desapareça // [Depois tudo estará perfeito / Praia lisa, águas ordenadas / Meus olhos secos como pedras / E as minhas duas mãos quebradas]

Era o único que tinha na memória, por mor de se me ter atrasado um pouco a Portugalidade. Nada e criada em Moçambique, o género musical era-me quase tão estranho como aos ouvidos de outras nacionalidades. Mas esta letra em particular, que me encheu de incredulidade, ficou para sempre.
A sua tradução provocou a mesma reacção nos meus interlocutores. Em conjunto, interrogámo-nos sobre o possível sentido de ter um sonho e afundá-lo no mar. Ou em qualquer outro local.
Isso, ou a tremenda derrota que habitualmente se canta em muitos fados, como característica de um povo de que se diz ter dado novos mundos ao mundo, é um conceito estranho, ilógico, quase inexpressível.
Mais tarde aprendi a apreciar a fantástica capacidade portuguesa para abraçar todos os extremos, tão ilogicamente quanto possível, o que é, no fundo, uma forma de exprimir a grande tendência nacional para a aceitação.
Pelo meio fica o fado, às vezes brejeiro e leve, outras vezes trágico e desesperado. Ficam essas pessoas que apreciam a vida e a sua dualidade, expressa em poesia e música, ou choro e luto, nas ondas que a vida traz.
Queiramos ou não, o nosso fado são esses sonhos e esses naufrágios que endeusamos num género musical que tão depressa nos ensombra com tragédias, como nos empolga em fantasias.

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