segunda-feira, 30 de abril de 2018

entre mundos

"Entre Mundos" by MMF
Bruxos, feiticeiras, médiuns têm uma relação sui generis com a realidade. Em determinados momentos têm percepções que vão além da comesinha relação com os cinco sentidos. Um sexto, diz-se, se bem que poderíamos considerar que, se os outros são cinco, pelo menos mais cinco lhes podem ser acrescentados, porque as percepções extraordinárias se confundem livremente com qualquer das proporcionadas pelo corpo. E ainda um sexto, de sensações, emoções e manifestações sem gramática definida e autorizada, perfazendo pelo menos onze mágicas formas de reconhecer o que nem sempre é óbvio nem entendido.
Numa versão mais pragmática, todos viajamos entre mundos, realidades e entendimentos. Acontece, por exemplo, quando as explicações que se debitam não chegam para que alguém abandone uma forma de pensar e persista num modelo que para nós já é limitado. Nessa altura percebemos que o nosso mundo interior tem informação que não chega à outra pessoa.
Por alguma razão, nem sempre deixamos que o nosso universo interior se expanda e abrace novas formas de avaliar a realidade. Mas quando o fazemos, viajamos entre mundos, aceitando as novidades, as possibilidades em aberto.
Cultivando essa flexibilidade, que depende grandemente da nossa vontade, a viagem entre mundos é uma experiência estimulante e capaz de nos presentear com lufadas de emoções e súbitas descobertas.
Viajar entre mundos não têm de ser um mergulho na superstição, no medo ou nas ideias feitas sobre quem reconhece outras formas de realidade. É um exercício de consciência que se cultiva e nos faz ponderar sobre a infindável possibilidade de expansão da nossa experiência de vida.
Entre mundos é a criatividade que comanda e molda a acção.

sábado, 21 de abril de 2018

segredos do limão

Lemon Study I, by Marissa Volg
O sabor da casca é insuperável, o cheiro aceitável, a menos que misturado com outras substâncias de perfumaria. O fruto em si, muito bonito, digno da apreciação de leigos e artistas. Um vencedor, dir-se-ia, não fora o amargor que lhe vem de dentro. O sumo, que dizem fazer bem a quase tudo, é como uma vacina: experimenta-se e depois evita-se, para jamais nos enganar sob a capa de beleza que o esconde.
Há pessoas assim, como o limão, com segredos ácidos que, em doses apenas maiores do que uma simples e rápida prova, nos corroem. A sua maior virtude: ensinar-nos que não as queremos por perto.
Já o limão com açúcar dobra o enjoo, acumulando o ácido e o doce levados ao extremo. Faz lembrar lutas religiosas, guerras frias, amores e ódios que nos devastam. Vade retro
Quase suportável, o achar de limão. Mas não nos iludamos: para quê escolhê-lo, quando tantas outras combinações o superam?
Afinal, a vida é feita de escolhas, com muito sumo desagradável em forma de tentação. O diabo que os carregue, apre!

domingo, 15 de abril de 2018

uma questão de lógica


Por uma questão de lógica, se condenamos ataques e bombardeamentos, que sentido faz atacar ou bombardear quem faz o mesmo? Só se for o de abdicar do que achamos certo para descer de nível num jogo que, à partida, não se quer jogar.
Que sentido faz, na mesma linha lógica, condenar à morte quem mata? Ou ser a favor da pena de morte e depois condenar o aborto como um assassínio? 
Olho por olho e dente por dente é uma resposta de quem está acossado, de que não vê alternativas. No entanto, há sempre outra forma de ver as coisas e não é perpetuando uma cadeia de agressões que se vai à origem dos problemas para mudar o padrão, ou paradigma, que nos aprisiona numa realidade que não se quer viver.
Tomar partido também não resolve um conflito. Apenas adiciona mais peso a um dos pratos da balança, sem diluir o que divide, sem conduzir uma outra direcção.
Estaremos condenados a debatermo-nos ciclicamente com estes impulsos irracionais, em vez de reconhecer o medo pelo seu real valor, ou falta dele?

sexta-feira, 13 de abril de 2018

sexta-feira treze

"Friday and 13"

Nasci numa sexta-feira treze e nunca entendi a negatividade que a ela se associa. O treze é um número simpático e reduzido à sua expressão mais simples, dá quatro, o número do quadrado que sustenta as pirâmides, por exemplo. É sólido, representa fundações e outras construções mentais que muito nos aproveitam.
Usar o dia para assustar alguém é, no mínimo, uma fantasia de mau gosto. A maior parte das pessoas diverte-se a plantar sementes de superstição nos outros e isso não é muito saudável. Especialmente neste momento em que a nossa consciência alargada nos mostra que, mais do que nunca, devemos explorar todas as maravilhosas potencialidades que o nosso pensamento é capaz de imaginar. E que é possível pôr em prática para moldar o mundo de uma forma mais agradável e prazenteira.
A sexta-feira treze devia ser celebrada como um momento de viragem e de concretização, de reflexão sobre a força que podemos imprimir à realização dos nossos sonhos.
Reza a história familiar que, tardando a minha resolução em vir a este mundo, só me decidi depois de uma carga de elefantes, em plena Gorongosa. Ora, o elefante é um símbolo de boa sorte e também  de sabedoria, persistência, determinação, solidariedade, sociabilidade, amizade, companheirismo, memória, longevidade e poder. Por que razão haveria, então, de ver o pior da sexta-feira treze, com tantas características auspiciosas a ela associadas?
Sempre que chega uma sexta-feira treze sinto, invariavelmente, uma energia poderosa e alegre, apenas toldada pelos disparates que por aí se dizem sobre o dia. Que mal se pode ver num gato preto ou num guarda-chuva aberto dentro de casa? A não ser, claro, preferir explorar a adrenalina do medo e as suas pouco inteligentes consequências?
Abençoadas sextas, a treze e não só. A vida está sempre a presentear-nos com tudo o que precisamos para a transformar num carrossel de alegrias e as multiplicar em maiores benesses. E todos a podem ver dessa forma, em vez de desperdiçarem o pouco tempo que nos cabe aqui em infelizes futilidades.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

aqui na terra são demais

by Carla Sonheim

Que os outros não gostem de perder tempo a pensar, é lá com eles Se gostam de gastar as suas horas acordados a alimentar pensamentos que parecem tornados dentro das suas cabeças, também é com eles.
O que não está certo é imporem aos outros, sem nenhuma espécie de respeito ou contenção, esses frenesis desnecessários. E poluentes, que constituem um assédio indefensável e uma poluição que devia ser compensada com coimas agravadas e penalização nos impostos.
A liberdade de expressão não deve ser interpretada como uma autorização para massacrar os outros com toda a espécie de aleivosias que atravessam as mentes desestruturadas e com falta de ocupação meritória.
O discurso errático dos loucos é muitíssimo mais aceitável do que os disparates que a maioria das pessoas se entretém a debitar o dia todo. Quem tem medo do silêncio? Que verdades aterradoras tem ele para murmurar dentro dessas cabeças que enchem o espaço à sua volta de guinchos aflitivos de pânicos vários?
Por muita compaixão que se tenha, é difícil chegar ao fim do dia sem pensar um par de vezes em estrafegar uma dessas almas que mais parecem sirenes desgovernadas depois de uma trovoada.
Todas as escolas deviam introduzir, urgentemente, uma aula de reflexão obrigatória, com um programa intensivo de educação sobre o amor próprio e outros exercícios formadores de indivíduos mais racionais e elucidados sobre os terrores sem sentido.
Vozes de burro não chegam ao céu, bem sabemos. Mas aqui na terra são demais.

terça-feira, 10 de abril de 2018

epifania, epifania, epifania



O propósito maior de todas as coisas: ser o que se é. E tudo assim se resume, sem necessidade de tentar lapidar a realidade com trabalho mental desgastante e frustrante. Sem sabotar o curso natural da vida com expectativas que não passam de coágulos terroristas o simples e perfeito esquema de todas as coisas.
A humildade de não pretender entender tudo de uma só vez é um privilégio da inteligência. Temos uma vida inteira para saborear o vaivém das correntes e a vertigem das mudanças, um prazer que produz, na altura certa, todas as epifanias de que precisamos para cimentar a alegria do conhecimento.
Que mais se pode esperar de uma manhã de terça-feira?

quarta-feira, 4 de abril de 2018

indignação e refilices


A indignação é uma coisa boa, quando não é simplesmente uma refilice só porque alguém põe um sapato dois centímetros para o lado que não é o do costume. A refilice é o mantra de quem anda aborrecido com alguma coisa e resolve despejar assim o saco.
Em vez de se utilizar em questões de fundo, como direitos e justiça, lógica e estabelecimento de limites, gasta-se habitualmente em manifestações menores de situações que não seguem as rotinas cegas que confundimos com a tranquilidade que nos é devida. 
A indignação também é uma arma de arremesso para quem tem um pendor especial para a manipulação das emoções alheias. 
O problema é que a maioria das indignações não é, na verdade, digna desse nome. São apenas resistências mal orientadas, com origem em preconceitos sem sentido.
Por exemplo, se alguém muda de opinião devido a um genuíno processo de correcção de pensamento, os habituais epípetos relacionados com a falta de carácter não se aplicam. Pelo contrário, transformam os seus produtores em reféns de um pensamento desajustado da realidade, ignorando a clareza de espírito elogiável que permitiu ao indivíduo evoluir de forma positiva no seu processo de entendimento do mundo e da sua constante transformação.
Não raro, inclusivamente, os enunciadores destas indignações são quem mais apregoa uma fidelidade inviolável a princípios e valores que, bem analisados, apontam por princípio para a sensatez do ajustamento ao evoluir das situações e da consciência.
Quando se deseja honestamente a mudança, para melhor, há que exibir coerência e aceitar que as suas medidas justas exigem flexibilidade para integrar novas soluções. Não há mérito algum em manter teimosamente as mesmas respostas a circunstâncias que não param de evoluir.
Haja a humildade de aceitar que a verdade está em aceitar que as velhas receitas têm de dar lugar a novas, sem medo de descartar certezas absolutas que se tornaram inadequadas.
O passado deixa-nos a memória e a aprendizagem das experiências, mas não a obrigatoriedade de aplicação das mesmas soluções para circunstâncias diferentes.
Antes da indignação devemos questionar os verdadeiros motivos que a provocam e convocar a abertura necessária para reconhecer e aceitar novas formas de pensamento e de acção. Sobretudo se reconhecemos a necessidade de mudança e transformação real.

cobras, lápis e paraíso


Toda a gente sabe que há cobras à espreita no jardim do Paraíso. Foi assim que caíram os papás da Humanidade. Também havia maçãs proibidas. 
Será possível imaginar um paraíso tão cheio de perigos e interdições? Não parece perfeito e muito menos obra de um Criador benevolente. Embora não documentado, o lápis da censura já devia andar a fazer das suas na altura.
Com um exemplo assim é difícil imaginar um mundo melhor e optar por práticas mais coerentes de liberdade de expressão. Qualquer dia nem uma pêra rocha de pode trincar sem verificar primeiro se há um fiscal de costumes por perto.
É mesmo possível que o espírito crítico e a lógica mais clara sejam subliminarmente influenciados por estas histórias contaminadas por dogmas que ouvimos desde crianças. É a educação imposta, na sua pior versão.
Seria mais justo educar para ir ao encontro do que hoje se sabe que são paradigmas mais saudáveis. Mas a educação dos dias de hoje tem uma lógica de mercearia, com o deve e o haver postos nas empreitadas para os edifícios e para o serviço de refeições, deixando para segundo plano os meros pretextos que são alunos e professores, bem como a troca de informação que nutre o conhecimento que muda mundos.
São investimentos armadilhados, sem retorno lucrativo enumerável, sempre na lógica do paraíso envenenado e para sempre adiado, como a cenoura que segue à frente do burro e que deve ser inatingível para o manter em movimento.
A mais fácil conclusão é a de estarmos perante mais um fenómeno de manipulação de informação nessa história do paraíso de que qualquer um pode tombar, provavelmente criado pelos órgãos de comunicação de massas da altura.
Assim se faz refém o futuro da Humanidade, com contos cheios de pontos acrescentados e dirigentes que são, afinal, homenzinhos de cinzento munidos de lápis azuis. Enquanto esperamos por melhores tempos e não pomos a lógica na linha.

terça-feira, 3 de abril de 2018

afinal, o prazer

"All about pleasure" by MMF
I have a place to die where I often stay, not for long and quite cautiously. It is my source and my true nature, but I also like it here where chaos is generated and we all can play the silly game we call life. Where else would I experience such a crazy, inebriating folly? [E. Mushul]

Tudo se resume ao prazer, ou ao desprazer. No final, bem vistas as coisas, a nossa balança das sensações é o que conta. Todas as situações são decididas na escala do que nos agrada ou do que produz desagrado. Uma vida simples, apesar dos floreados a que nos dedicamos para que tudo pareça mais o que realmente é.
O desprazer é tão consistente quanto o prazer. Somos tão capazes de lhe fugir como ratinhos frenéticos num labirinto em busca da saída. Que raio de mundo arquitectámos, nesta rede de impulsos e sensações arbitrárias com motivos camuflados em origens para já inatingíveis.
Fica a longa panóplia de prazeres para desvendar, dos divinais aos mais profundamente desagradáveis. E a nossa capacidade de criar inúmeras novas matizes para desafiar o tédio do conhecido.

domingo, 1 de abril de 2018

ovemos


É assim que se estabelecem as ideias feitas, com uma mão cheia de ovinhos simpáticos, decorativos e doces, tudo para dourar a pílula que, neste caso, é o coelho. Que vem carregadinho de ovos para as crianças, mas... Só para as boas, porque há criancinhas más e sem direito a festejar num dia para esse fim.
Claro que elas, com a sua clarividência natural, arregalam os olhos, confessam-se boas e o coelho lá as premeia com a desejável recompensa.
A moral da história é que existem sempre pessoas capazes de julgar e castigar as outras, que as crianças têm de ser todas boas, ou melhor, capazes de se fazer passar por tal para satisfazer um conjunto de julgamentos de valor imaginado como o adequado, mesmo quando só representam interesses parciais. 
Sobretudo, tenham medo, muito medo de desagradar aos outros. Um dia de festa não é para todos e para reestabelecer a comunhão entre todas as almas. É, pelo contrário, aproveitado lembrar que a espada continua pendurada sobre qualquer cabeça.
Na verdade, todos merecemos tudo, mesmo que às vezes não se faça muito para isso. Mas essa é a beleza da generosidade e da capacidade de ver além dos momentos em que erramos para aprender mais e mais. 
A meritocracia é sempre parcial, caprichosa e só se utiliza quando serve grupos de poder. Se nos agarramos a ela perdemos a visão de conjunto, em que reconhecemos o valor intrínseco de cada indivíduo.
Agora, ovemos: quantas mais vezes seremos capazes de estender generosamente uma guloseima a quem aparentemente não a merece, só porque queremos acreditar que também podemos ser melhores do que um coelho?