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sexta-feira, 5 de julho de 2019

ouvintes


Há sons que chegam como as trombetas do Apocalipse. Fazem-se ouvir uma vida inteira, mas o hábito de os ter sempre presentes torna-nos incapazes de os ouvir. Quando começam a destacar-se dos outros sons entendem-se como ruído, porque a percepção precede normalmente a consciência da sua existência.
O processo de ouvir tem, como tudo, uma receita gradual e com tempos certos, como uma sinfonia estruturada, mesmo exibindo de início falta de um fio condutor. 
Os sons começam por surgir como escolhos, na corrente vertiginosa que compõe as coisas desta vida. Requerem alguma atenção, mas nada que faça sentido e, portanto, são peças descartáveis num puzzle que não apetece pôr em ordem.
Quando atingem um número assinalável de ocorrências, é impossível ignorá-los. Mas pode sempre ignorar-se o sentido que eventualmente possam fazer. O resultado é uma inquietação crescente, como uma dor que aumenta sem ser devidamente cuidada. Os ouvintes desatentos acabam por se ressentir do que para eles é um ruído intrusivo e de código desconhecido.
Os ouvidos físicos estão viciados noutros sons, que fazem grande sentido na ordem habitual das coisas. Quando se começam a ouvir os sons que implicam outras ordens, é como se de uma infecção se tratasse e devêssemos atacá-la com muitos antibióticos.
O problema é que não existem pílulas milagrosas para silenciar os ouvidos que despertam para sons de outra ordem. Há que aprender a entender e a usar em nosso proveito essa nova forma de ouvir. Aceitar que somos ouvintes mais complexos e mais conscientes.
Só então ganham sentido essas trombetas reveladoras. Afinal, o caos deste mundo tomou forma através do verbo divino e qualquer ouvinte deveria sentir-se lisonjeado com o que é, de facto, uma epifania.

[ouvinte - adjetcivo e substantivo de dois géneros: 1. que ou aquele que ouve; ouvidor; 2. substantivo de dois géneros; aluno que assiste à aula sem estar matriculado na escola ou na disciplina.]    

quinta-feira, 7 de junho de 2018

essencial e fútil



A sorte do que nos calha em sorte é a única coisa que temos. Às vezes é uma sorte madrasta, outras inacreditável. Velinhas a navegar ao vento, é o que somos, dançando com muita sorte ou de nariz torcido ao malfadado destino.
Fazer sentido é o mesmo que não fazer sentido nenhum, visto que no maior desenho das coisas, invisível ao comum mortal, o resultado certo nunca é a meta provável. Somos cientistas frustrados, a bater às cegas a todas as portas, a experimentar sem verdadeiro conhecimento de causa.
Somos remendões surrealistas, a pôr a fé em genialidades inesperadas e a alterar a realidade sem qualquer consciência do resultado da acção. Sempre a teimar na honestidade, na correcção, no carácter dos nossos feitos como motivos únicos e inabaláveis.
É um exercício fútil na pretensão do conhecimento verdadeiro, mas essencial para alguma mudança. No fundo, o derradeiro curso possível. Muito aquém das certezas de pedra e cal vendidas ao desbarato por uma educação louca e orientada no sentido contrário da impermanência de todas as coisas.
Vivemos como se pudéssemos caminhar sobre a água de um oceano demasiado vasto para a nossa compreensão. Como jogadores viciados, repetindo e insistindo no erro de não tentar um jogo diferente.
Afinal, abraçar a liberdade de forma absoluta é uma visão tão apocalíptica (reveladora), que o refúgio no fracasso é a única certeza aceitável.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

rumores de um grão de areia

Não é o Apocalipse/Revelação, não são as fileiras redentoras do Quinto Império, nem a justiça de um qualquer deus de saco cheio de promessas por cumprir. É apenas a relação de causa e efeito do que tem vindo a acontecer nos últimos anos. Nem sequer é o triunfo das teorias da conspiração, que já há muito escapou do controlo e das mãos dos conspiradores. Essa é a beleza da imperfeição: nenhum sistema é seguro, porque uma única pessoa, uma única cabeça, uma única vontade pode acender um rastilho de incalculáveis proporções. E salvé, ó deusa eterna da imponderabilidade. O mundo é e sempre foi do grão de areia.