sábado, 12 de maio de 2018

sempre gostei de barcos


Sempre gostei de barcos. São deliciosas metáforas da vida, pequenos cascos ao sabor de ondas muito maiores do que se entendem. O balanço não me incomoda, o enjoo não me acomete, e os desafios, mesmo incalculáveis e assustadores, não deixam de nos enredar em viagens que nos arrepiam de emoções.
Quanto mais pequenos, mais aliciante é o atrevimento da entrega a tudo o que não se pode controlar, maior é o reconhecimento de que a experiência nunca é suficiente, que a coragem e a confiança no melhor dos nossos instintos são as únicas armas verdadeiras que possuímos.
Todas as manhãs são uma promessa de viagens e perigos a vencer a bordo das nossas frágeis embarcações. Por isso sempre gostei de barcos e da expectativa das surpresas monumentais dos mares que enfrentamos.
Que graça tem ficar em terra e confiar apenas no conhecido?

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Cascais a sonhar alto

Forte de Santo António - MMF
Sonhar ainda ocupa algum espaço e, apesar da natural propensão humana para descobrir dificuldades na expressão prática do sonho, é por aí que o homem avança, sem outro remédio senão o de construir à medida dos seus castelos construídos no ar.
Neste caso, não sendo um castelo, é pelo menos um forte, símbolo de muita história e de como somos todos capazes de defender o que se acha digno da nossa identidade e do nosso património cultural.
O Forte de Santo António é um desses símbolos, capaz de despertar a nossa imaginação e a nossa curiosidade. Foi isso que se constatou na sua abertura ao público no passado 25 de Abril, quando milhares de pessoas o visitaram e procuraram nas suas paredes sinais da histórias que por ali se passaram. 
A observação desse interesse sobre o forte e a sua utilização ao longo dos séculos inspirou mais um sonho: a possibilidade de se transformar aquele espaço num centro de observação da sua história, através de dramatizações dos factos conhecidos desde a sua construção.
Em vez de delegar para mais um agente turístico a sua exploração, por que não transformá-lo num local dedicado à cultura histórica, entregando-o a grupos de teatro capazes de contar a sua história em trinta minutos ou mais?
Temas não faltam e uma bilheteira não seria nada de mais para nacionais e turistas interessados em passar algum tempo a assistir aos ricos enredos do que por ali ocorreu. Um museu vivo e animado, para deleite dos visitantes, durante alguns dias da semana.
É sonhar alto um Cascais mais espectacular, mas tudo é possível e alguns sonhos têm a habilidade de não cair em saco roto. Afinal, onde há lugar para a modernização também o há para iniciativas que nos tragam conhecimento e orgulho no nosso património. E a história é sempre inspiradora.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

que medo é esse afinal?

"Mundos" by MMF

Podemos dizer o que quisermos, teimar olhar para o Sol através de uma peneira, que a verdade é só uma: em conjunto não nos sentimos jamais capazes de ser livres. Fazemos o impossível para nos mostrarmos como os outros, inventar formas e mais formas de sermos exactamente o que os outros são, e de lhes agradar como se não existíssemos. 
Parecemos não saber como viver a nossa individualidade e, quando não são os outros a assaltar-nos com os seus julgamentos, é a culpa que nos impomos que nos amarga a existência. 
De que temos medo, afinal? De sermos fiéis a nós próprios? De deixar ir a dependência e de aproveitarmos de uma vez o que gostamos e somos, sem necessidade dos outros? Por que nos queixamos de solidão no meio de multidões? E por que não conseguimos perceber que o que nos falta é viver a nossa individualidade e que esse é o nosso derradeiro propósito?
Temos tempo para gozar a nossa unicidade a um outro nível, e desperdiçamos a liberdade desta vida, que nos permite passar por experiências únicas. No final, todas elas contribuem para o caldeirão comum, mas esta é a oportunidade real de que dispomos para desenvolvermos a nossa criatividade da forma que melhor nos serve.
Em vez disso, falhamos miseravelmente por nos impedirmos de pensar por nós próprios e atendermos às nossas verdadeiras necessidades. Que medo é esse, afinal, fantasia mórbida que nos paralisa, desanima e nos arrasta pela vida sem noção do ânimo que temos e nos recusamos a manifestar?

sábado, 5 de maio de 2018

a árvore das patacas

"Money on my mind" by Nicholas Tarr, Staachy Art
A árvore das patacas existe. Sobretudo na versão pandémica de todos os males e infelicidades, repartida por hospedeiros despedaçados e parasitas furiosos. O que falta compreender é que as patacas são energia e cabe ao indivíduo moldá-la na medida dos seus mais nobres interesses.
A sua visão amorosa e correcta não é a mais corrente, sufocada como está em taxas e impostas obrigações. Assim como as incontornáveis sobre bens essenciais como a água, energia, alimento e comunicações.
Cada vez que um pataqueiro do lado negro inventa uma nova forma de extorquir patacas, acrescenta um grão de areia ao dique da livre circulação da riqueza natural. Os pataqueiros negros têm a distorcida noção de que acumular mais do que aquilo que podem usufruir no período de uma vida é um sintoma de sucesso. São criaturas bloqueadas, como uma artéria entupida de gordura, incapazes de entender que a morte (ou mudança) é o seu único destino nesta vida.
A comunicação e a partilha são uma extensão do amor, assim como quando se junta um bom molho de palha e se fortalece a sua resistência. A aliança e entendimento com mais e mais parcelas do maravilhoso e delicado ecossistema da existência é o inesgotável e o melhor caminho para a riqueza.
O diabo é a multiplicação de impostos pagamentos pela livre circulação da energia das patacas. É o que está a toldar a natural expectativa de abundância que a todos é devida. Coágulos a remover pelo superior interesse do bem-estar de todos.
As patacas também são felicidade se traduzidas como generosidade e não medrosa avareza gerada pela falta de fé na perfeição de um sistema que a todos basta naturalmente. O que falta é uma visão global de um mundo que funciona como um relógio suíço se entendido no seu conjunto de um resistente e seguro molho de palha.
Falta essa visão a quem tem a pretensão de governar e gerir o bem geral, a quem aposta miseravelmente na realidade mais negra dos pataqueiros, usando o poder da riqueza para estrangular a fluidez da felicidade alheia. Como se pode ser líder com tamanho descrédito no potencial de tudo e todos?


sexta-feira, 4 de maio de 2018

mansidão a donuts

by Leigh Anne Eagerton 

Diz quem sabe que ovelha mansa mama do seu e do alheio. E que o falar doce leva a água ao moinho certo. Deve ser por isso que tanta gente enfia um donut açucarado pela goela abaixo logo de manhã, na expectativa de não ter que engolir amarguras o dia todo.
Já sobre a mansidão se devia acrescentar que a esmagadora fatia vai para a que nasce do medo e paralisa. Não há donut que a salve se a sua acção se pauta pela falta dela. Porque não agir é uma escolha e, portanto, uma acção idêntica à do lobo com pele de ovelha. 
Os açúcares rápidos, o fast food e outros atalhos da vida são assim. Trazem o alívio breve da alienação, porque o que leva à sua escolha é a dúvida, o medo. E assim se remete a perfeição e a sua certeza para o território das malvas que, curiosamente, se podem usar para tratar as infecções.
Diz ainda quem sabe que há um tempo para tudo. Todo o processo tem o seu tempo e o maior pecado é sem dúvida o da impaciência. O fast food do espírito, num mundo tão esquecido da sua imaterialidade, exige mais mestria do a dos óleos ferventes e outras ilusões do Inferno.
A verdadeira mansidão não está em saldos, nem é uma pechincha. Exige atenção ao momento presente, o foco de quem sabe arredar a urgência alheia para fazer o exercício mental de entender onde estão as causas e os efeitos das propostas colectivas. Só então pode surgir a escolha que melhor serve o indivíduo. A pressa sempre foi péssima conselheira.
A seguir, venha de lá o donut, porque todas as doçuras humanas são permitidas, a seu tempo e a gosto de cada um. Já que é tão fútil como inútil ter a pretensão de viver pelo gosto dos outros.


quinta-feira, 3 de maio de 2018

maçãs e metáforas

Na maçã é que está o ganho. Primeiro pela cor, depois pela forma, a seguir pelo aroma, e ainda pelo gosto, textura, etc. Uma autêntica armadilha de captura de sentidos. A lagarta, essa é um bónus para os mais afoitos. Ou seja, quem tem uma maçã, tem tudo.
A Eva é que ficou em maus lençóis com o dito fruto. Atirou-se-lhe com o pecado em vez de se lhe reconhecer coisas de grande significado como o da maçã do Newton, a que manda o médico esperar à porta, ou a dos computadores snobs do Jobs. 
Nos pés de 
Tartes de maçã e canela, apfelstrudel, puré de maçã e até a dita enfiada na boca dos infelizes suínos bebés, são pertença de outro universo. Caramelizadas e agora em fatias desidratadas. Com natas ou reduzidas a gelatinas açucaradas na época da colheita. Dizem que o sumo faz milagres.
Na conta de metáfora, revemos numa simples maçã um universo inteiro ou uma vida humana, à laia de espelho de variadas situações. Entender a riqueza deste fruto é mergulhar numa tese científica sobre o significado de todas as coisas.
Ou, mais simplesmente, compreender uma maçã é o mesmo que compreender um elefante ou os mistérios da ciência dos foguetões. Cada um na sua escala, entenda-se.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

entre mundos

"Entre Mundos" by MMF
Bruxos, feiticeiras, médiuns têm uma relação sui generis com a realidade. Em determinados momentos têm percepções que vão além da comesinha relação com os cinco sentidos. Um sexto, diz-se, se bem que poderíamos considerar que, se os outros são cinco, pelo menos mais cinco lhes podem ser acrescentados, porque as percepções extraordinárias se confundem livremente com qualquer das proporcionadas pelo corpo. E ainda um sexto, de sensações, emoções e manifestações sem gramática definida e autorizada, perfazendo pelo menos onze mágicas formas de reconhecer o que nem sempre é óbvio nem entendido.
Numa versão mais pragmática, todos viajamos entre mundos, realidades e entendimentos. Acontece, por exemplo, quando as explicações que se debitam não chegam para que alguém abandone uma forma de pensar e persista num modelo que para nós já é limitado. Nessa altura percebemos que o nosso mundo interior tem informação que não chega à outra pessoa.
Por alguma razão, nem sempre deixamos que o nosso universo interior se expanda e abrace novas formas de avaliar a realidade. Mas quando o fazemos, viajamos entre mundos, aceitando as novidades, as possibilidades em aberto.
Cultivando essa flexibilidade, que depende grandemente da nossa vontade, a viagem entre mundos é uma experiência estimulante e capaz de nos presentear com lufadas de emoções e súbitas descobertas.
Viajar entre mundos não têm de ser um mergulho na superstição, no medo ou nas ideias feitas sobre quem reconhece outras formas de realidade. É um exercício de consciência que se cultiva e nos faz ponderar sobre a infindável possibilidade de expansão da nossa experiência de vida.
Entre mundos é a criatividade que comanda e molda a acção.

sábado, 21 de abril de 2018

segredos do limão

Lemon Study I, by Marissa Volg
O sabor da casca é insuperável, o cheiro aceitável, a menos que misturado com outras substâncias de perfumaria. O fruto em si, muito bonito, digno da apreciação de leigos e artistas. Um vencedor, dir-se-ia, não fora o amargor que lhe vem de dentro. O sumo, que dizem fazer bem a quase tudo, é como uma vacina: experimenta-se e depois evita-se, para jamais nos enganar sob a capa de beleza que o esconde.
Há pessoas assim, como o limão, com segredos ácidos que, em doses apenas maiores do que uma simples e rápida prova, nos corroem. A sua maior virtude: ensinar-nos que não as queremos por perto.
Já o limão com açúcar dobra o enjoo, acumulando o ácido e o doce levados ao extremo. Faz lembrar lutas religiosas, guerras frias, amores e ódios que nos devastam. Vade retro
Quase suportável, o achar de limão. Mas não nos iludamos: para quê escolhê-lo, quando tantas outras combinações o superam?
Afinal, a vida é feita de escolhas, com muito sumo desagradável em forma de tentação. O diabo que os carregue, apre!

domingo, 15 de abril de 2018

uma questão de lógica


Por uma questão de lógica, se condenamos ataques e bombardeamentos, que sentido faz atacar ou bombardear quem faz o mesmo? Só se for o de abdicar do que achamos certo para descer de nível num jogo que, à partida, não se quer jogar.
Que sentido faz, na mesma linha lógica, condenar à morte quem mata? Ou ser a favor da pena de morte e depois condenar o aborto como um assassínio? 
Olho por olho e dente por dente é uma resposta de quem está acossado, de que não vê alternativas. No entanto, há sempre outra forma de ver as coisas e não é perpetuando uma cadeia de agressões que se vai à origem dos problemas para mudar o padrão, ou paradigma, que nos aprisiona numa realidade que não se quer viver.
Tomar partido também não resolve um conflito. Apenas adiciona mais peso a um dos pratos da balança, sem diluir o que divide, sem conduzir uma outra direcção.
Estaremos condenados a debatermo-nos ciclicamente com estes impulsos irracionais, em vez de reconhecer o medo pelo seu real valor, ou falta dele?

sexta-feira, 13 de abril de 2018

sexta-feira treze

"Friday and 13"

Nasci numa sexta-feira treze e nunca entendi a negatividade que a ela se associa. O treze é um número simpático e reduzido à sua expressão mais simples, dá quatro, o número do quadrado que sustenta as pirâmides, por exemplo. É sólido, representa fundações e outras construções mentais que muito nos aproveitam.
Usar o dia para assustar alguém é, no mínimo, uma fantasia de mau gosto. A maior parte das pessoas diverte-se a plantar sementes de superstição nos outros e isso não é muito saudável. Especialmente neste momento em que a nossa consciência alargada nos mostra que, mais do que nunca, devemos explorar todas as maravilhosas potencialidades que o nosso pensamento é capaz de imaginar. E que é possível pôr em prática para moldar o mundo de uma forma mais agradável e prazenteira.
A sexta-feira treze devia ser celebrada como um momento de viragem e de concretização, de reflexão sobre a força que podemos imprimir à realização dos nossos sonhos.
Reza a história familiar que, tardando a minha resolução em vir a este mundo, só me decidi depois de uma carga de elefantes, em plena Gorongosa. Ora, o elefante é um símbolo de boa sorte e também  de sabedoria, persistência, determinação, solidariedade, sociabilidade, amizade, companheirismo, memória, longevidade e poder. Por que razão haveria, então, de ver o pior da sexta-feira treze, com tantas características auspiciosas a ela associadas?
Sempre que chega uma sexta-feira treze sinto, invariavelmente, uma energia poderosa e alegre, apenas toldada pelos disparates que por aí se dizem sobre o dia. Que mal se pode ver num gato preto ou num guarda-chuva aberto dentro de casa? A não ser, claro, preferir explorar a adrenalina do medo e as suas pouco inteligentes consequências?
Abençoadas sextas, a treze e não só. A vida está sempre a presentear-nos com tudo o que precisamos para a transformar num carrossel de alegrias e as multiplicar em maiores benesses. E todos a podem ver dessa forma, em vez de desperdiçarem o pouco tempo que nos cabe aqui em infelizes futilidades.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

aqui na terra são demais

by Carla Sonheim

Que os outros não gostem de perder tempo a pensar, é lá com eles Se gostam de gastar as suas horas acordados a alimentar pensamentos que parecem tornados dentro das suas cabeças, também é com eles.
O que não está certo é imporem aos outros, sem nenhuma espécie de respeito ou contenção, esses frenesis desnecessários. E poluentes, que constituem um assédio indefensável e uma poluição que devia ser compensada com coimas agravadas e penalização nos impostos.
A liberdade de expressão não deve ser interpretada como uma autorização para massacrar os outros com toda a espécie de aleivosias que atravessam as mentes desestruturadas e com falta de ocupação meritória.
O discurso errático dos loucos é muitíssimo mais aceitável do que os disparates que a maioria das pessoas se entretém a debitar o dia todo. Quem tem medo do silêncio? Que verdades aterradoras tem ele para murmurar dentro dessas cabeças que enchem o espaço à sua volta de guinchos aflitivos de pânicos vários?
Por muita compaixão que se tenha, é difícil chegar ao fim do dia sem pensar um par de vezes em estrafegar uma dessas almas que mais parecem sirenes desgovernadas depois de uma trovoada.
Todas as escolas deviam introduzir, urgentemente, uma aula de reflexão obrigatória, com um programa intensivo de educação sobre o amor próprio e outros exercícios formadores de indivíduos mais racionais e elucidados sobre os terrores sem sentido.
Vozes de burro não chegam ao céu, bem sabemos. Mas aqui na terra são demais.

terça-feira, 10 de abril de 2018

epifania, epifania, epifania



O propósito maior de todas as coisas: ser o que se é. E tudo assim se resume, sem necessidade de tentar lapidar a realidade com trabalho mental desgastante e frustrante. Sem sabotar o curso natural da vida com expectativas que não passam de coágulos terroristas o simples e perfeito esquema de todas as coisas.
A humildade de não pretender entender tudo de uma só vez é um privilégio da inteligência. Temos uma vida inteira para saborear o vaivém das correntes e a vertigem das mudanças, um prazer que produz, na altura certa, todas as epifanias de que precisamos para cimentar a alegria do conhecimento.
Que mais se pode esperar de uma manhã de terça-feira?

quarta-feira, 4 de abril de 2018

indignação e refilices


A indignação é uma coisa boa, quando não é simplesmente uma refilice só porque alguém põe um sapato dois centímetros para o lado que não é o do costume. A refilice é o mantra de quem anda aborrecido com alguma coisa e resolve despejar assim o saco.
Em vez de se utilizar em questões de fundo, como direitos e justiça, lógica e estabelecimento de limites, gasta-se habitualmente em manifestações menores de situações que não seguem as rotinas cegas que confundimos com a tranquilidade que nos é devida. 
A indignação também é uma arma de arremesso para quem tem um pendor especial para a manipulação das emoções alheias. 
O problema é que a maioria das indignações não é, na verdade, digna desse nome. São apenas resistências mal orientadas, com origem em preconceitos sem sentido.
Por exemplo, se alguém muda de opinião devido a um genuíno processo de correcção de pensamento, os habituais epípetos relacionados com a falta de carácter não se aplicam. Pelo contrário, transformam os seus produtores em reféns de um pensamento desajustado da realidade, ignorando a clareza de espírito elogiável que permitiu ao indivíduo evoluir de forma positiva no seu processo de entendimento do mundo e da sua constante transformação.
Não raro, inclusivamente, os enunciadores destas indignações são quem mais apregoa uma fidelidade inviolável a princípios e valores que, bem analisados, apontam por princípio para a sensatez do ajustamento ao evoluir das situações e da consciência.
Quando se deseja honestamente a mudança, para melhor, há que exibir coerência e aceitar que as suas medidas justas exigem flexibilidade para integrar novas soluções. Não há mérito algum em manter teimosamente as mesmas respostas a circunstâncias que não param de evoluir.
Haja a humildade de aceitar que a verdade está em aceitar que as velhas receitas têm de dar lugar a novas, sem medo de descartar certezas absolutas que se tornaram inadequadas.
O passado deixa-nos a memória e a aprendizagem das experiências, mas não a obrigatoriedade de aplicação das mesmas soluções para circunstâncias diferentes.
Antes da indignação devemos questionar os verdadeiros motivos que a provocam e convocar a abertura necessária para reconhecer e aceitar novas formas de pensamento e de acção. Sobretudo se reconhecemos a necessidade de mudança e transformação real.

cobras, lápis e paraíso


Toda a gente sabe que há cobras à espreita no jardim do Paraíso. Foi assim que caíram os papás da Humanidade. Também havia maçãs proibidas. 
Será possível imaginar um paraíso tão cheio de perigos e interdições? Não parece perfeito e muito menos obra de um Criador benevolente. Embora não documentado, o lápis da censura já devia andar a fazer das suas na altura.
Com um exemplo assim é difícil imaginar um mundo melhor e optar por práticas mais coerentes de liberdade de expressão. Qualquer dia nem uma pêra rocha de pode trincar sem verificar primeiro se há um fiscal de costumes por perto.
É mesmo possível que o espírito crítico e a lógica mais clara sejam subliminarmente influenciados por estas histórias contaminadas por dogmas que ouvimos desde crianças. É a educação imposta, na sua pior versão.
Seria mais justo educar para ir ao encontro do que hoje se sabe que são paradigmas mais saudáveis. Mas a educação dos dias de hoje tem uma lógica de mercearia, com o deve e o haver postos nas empreitadas para os edifícios e para o serviço de refeições, deixando para segundo plano os meros pretextos que são alunos e professores, bem como a troca de informação que nutre o conhecimento que muda mundos.
São investimentos armadilhados, sem retorno lucrativo enumerável, sempre na lógica do paraíso envenenado e para sempre adiado, como a cenoura que segue à frente do burro e que deve ser inatingível para o manter em movimento.
A mais fácil conclusão é a de estarmos perante mais um fenómeno de manipulação de informação nessa história do paraíso de que qualquer um pode tombar, provavelmente criado pelos órgãos de comunicação de massas da altura.
Assim se faz refém o futuro da Humanidade, com contos cheios de pontos acrescentados e dirigentes que são, afinal, homenzinhos de cinzento munidos de lápis azuis. Enquanto esperamos por melhores tempos e não pomos a lógica na linha.

terça-feira, 3 de abril de 2018

afinal, o prazer

"All about pleasure" by MMF
I have a place to die where I often stay, not for long and quite cautiously. It is my source and my true nature, but I also like it here where chaos is generated and we all can play the silly game we call life. Where else would I experience such a crazy, inebriating folly? [E. Mushul]

Tudo se resume ao prazer, ou ao desprazer. No final, bem vistas as coisas, a nossa balança das sensações é o que conta. Todas as situações são decididas na escala do que nos agrada ou do que produz desagrado. Uma vida simples, apesar dos floreados a que nos dedicamos para que tudo pareça mais o que realmente é.
O desprazer é tão consistente quanto o prazer. Somos tão capazes de lhe fugir como ratinhos frenéticos num labirinto em busca da saída. Que raio de mundo arquitectámos, nesta rede de impulsos e sensações arbitrárias com motivos camuflados em origens para já inatingíveis.
Fica a longa panóplia de prazeres para desvendar, dos divinais aos mais profundamente desagradáveis. E a nossa capacidade de criar inúmeras novas matizes para desafiar o tédio do conhecido.

domingo, 1 de abril de 2018

ovemos


É assim que se estabelecem as ideias feitas, com uma mão cheia de ovinhos simpáticos, decorativos e doces, tudo para dourar a pílula que, neste caso, é o coelho. Que vem carregadinho de ovos para as crianças, mas... Só para as boas, porque há criancinhas más e sem direito a festejar num dia para esse fim.
Claro que elas, com a sua clarividência natural, arregalam os olhos, confessam-se boas e o coelho lá as premeia com a desejável recompensa.
A moral da história é que existem sempre pessoas capazes de julgar e castigar as outras, que as crianças têm de ser todas boas, ou melhor, capazes de se fazer passar por tal para satisfazer um conjunto de julgamentos de valor imaginado como o adequado, mesmo quando só representam interesses parciais. 
Sobretudo, tenham medo, muito medo de desagradar aos outros. Um dia de festa não é para todos e para reestabelecer a comunhão entre todas as almas. É, pelo contrário, aproveitado lembrar que a espada continua pendurada sobre qualquer cabeça.
Na verdade, todos merecemos tudo, mesmo que às vezes não se faça muito para isso. Mas essa é a beleza da generosidade e da capacidade de ver além dos momentos em que erramos para aprender mais e mais. 
A meritocracia é sempre parcial, caprichosa e só se utiliza quando serve grupos de poder. Se nos agarramos a ela perdemos a visão de conjunto, em que reconhecemos o valor intrínseco de cada indivíduo.
Agora, ovemos: quantas mais vezes seremos capazes de estender generosamente uma guloseima a quem aparentemente não a merece, só porque queremos acreditar que também podemos ser melhores do que um coelho?

sexta-feira, 30 de março de 2018

porcos que são feios e maus

by David Archer (Australia), foto daqui
Se todos os porcos fossem cor-de-rosa, entendiam-se algumas confusões. Mas não são, por isso as confusões são ainda mais difíceis de entender. Se é que alguma confusão possui, na sua génese, entendimento envolvido.
Acontece que alguns porcos são transparentes, camuflados, envidraçados, vagos, enviesados. Outros, mais simplesmente, limitam-se a ser o que são, sem mais danos ou enganos associados.
Porcos que nada têm que ver com os orwellianos personagens, cuja estimativa de valor se firma nos deméritos da valorização alheia. É mais uma constatação que nos faz pensar por que razão algumas religiões sugerem que sejam retirados da cadeia normal de alimentação.
Talvez por isso mesmo, dado os tempos que correm, e com a exploração agropecuária a dissolver as qualidades da nossa atmosfera e as propriedades dos nossos corpos, seja de ter em consideração alguma causa e efeito plasmada na bagunça e inversão de valores a que se assiste.
Nem todos os porcos são maus, não senhora. A questão não se põe em termos da mais normal e simples polarização dos termos.  A dimensão real em que se movimentam é que perfaz uma agenda completamente estranha às demais espécies. Cada macaco, desculpem, cada porco no seu galho, seria a consideração mais adequada. O que faz correr um porco nunca será exactamente o mesmo que faz correr uma cobra ou um jacaré. Apesar das aparências, há diferenças, nem que sejam de puro método.
Os patos fazem tanto ou mais chinfrim do que os porcos, no entanto, chamar pato ou porco a alguém não é a mesma coisa. 
Também não é simpática a apropriação machista do mealheiro, se é que realmente surgiu da possibilidade de uma porca ter capacidade para produzir seis milhões de bácoros em dez anos. O que é que o inseminador tem que ver com isso? Já a versão da argila pygg é muito mais credível. No entanto, é significativa a associação ao acumular de riqueza, em substituição da natural abundância expectável em todas as circunstâncias da vida.
Têm mesmo de ser feios e maus os porcos deste mundo? As versões rosa e com asinhas são aparentemente mais simpáticas, mas todos sabemos que a chantagem emocional também tem o seu preço e nem o rosa nem as asas são eternos. Providenciemos, pois, cautelarmente, em relação aos porcos.
Também haveria algo a dizer sobre os porcos azuis ou os verdes, mas fiquemo-nos por aqui.

quarta-feira, 28 de março de 2018

a beleza da democracia


A beleza da democracia é que é um conceito que apenas depende de nós. São as nossas ideias, e até a falta delas, que criam limites ou uma infinidade de soluções dentro desse conceito. Como nas relações, na forma como entendemos viver a nossa vida, é a nossa noção de liberdade que se manifesta, por excesso ou por defeito, para estabelecer os contornos que desejamos serem a marca distintiva do que realizamos.
Grupos, países ou locais são fruto do uso que damos às nossas escolhas. Os ideais, por melhores e mais atraentes que os pintemos nas nossas cabeças, só se mostram nas nossas acções na medida  em que nos permitimos pô-las em prática.
O líderes que escolhemos, não têm de impor as suas ideias, na medida em que são sempre insuficientes em comparação com o vastíssimo leque das de quem os segue. O seu trabalho é ter a visão de conjunto que permita unir e ampliar as opções de todos.
Cascais é a nossa terra, o nosso corpo colectivo, o nosso porto de abrigo e a possibilidade sempre existente de moldar a nossa vida pelos limites cada vez mais extensos que possamos imaginar. Não esperemos que pequeníssimos claustros de cidadãos, por falta de imaginação de tempo ou de experiência prática do que pode ser cada vez mais perfeito, limitem a potencialidade de transformar este território nos nossos sonhos e ideais.
Os partidos não definem a qualidade de vida que nos caracteriza. Somos todos e cada um de nós que definimos essas entidades colectivas e a experiência que podem trazer à nossa existência. Um grupo político, esvaziado de ideias e do coração de quem o compõe só pode traduzir uma realidade empobrecida para o concelho e para os seus munícipes.
Tudo começa e acaba e nós, na força com que acreditamos que podemos criar uma realidade cada vez mais rica e adequada às nossas expectativas, e na coragem das nossas acções nessa direcção.
Todos os dias são oportunidades para mudarmos uma areia na engrenagem e somos duas centenas de milhar de possibilidades para que isso aconteça. Acham pouco?

domingo, 25 de março de 2018

nem por sombras?


Come gather 'round people / Wherever you roam / And admit that the waters / Around you have grown / And accept it that soon / You'll be drenched to the bone. / If your time to you / Is worth savin' / Then you better start swimmin' / Or you'll sink like a stone / For the times they are a-changin'. // Come senators, congressmen / Please heed the call / Don't stand in the doorway / Don't block up the hall / For he that gets hurt / Will be he who has stalled / There's a battle outside / And it is ragin'. / It'll soon shake your windows / And rattle your walls / For the times they are a-changin'. // Come mothers and fathers / Throughout the land / And don't criticize / What you can't understand / Your sons and your daughters / Are beyond your command / Your old road is / Rapidly agin'. / Please get out of the new one /If you can't lend your hand / For the times they are a-changin'. (Bob Dylan, 1964)

Queremos todos mudança e todos nos assustamos com ela. Porque exige honestidade e clareza. Porque nos custa admitir essa parte do nosso carácter que se acomoda às coisas que estão mal e nas quais tomámos parte, nem que seja pela recusa de tomar uma decisão diferente.
Em cima do muro fica o inferno, aquilo que nem é sim, nem é não. A dificuldade em tomar uma posição que, se é certa, mesmo assim suscita a dúvida e nos atormenta; e se é não cria a culpa que nos esmaga.
Os tempos, ou as circunstâncias mudam, mesmo assim. Somos mais de sete biliões de pessoas a tomar decisões, e aqui estou a partir do princípio simplista de que só nós contamos para esta insana complexidade de possibilidades que tudo e todos afecta. Mesmo assim temos a pretensão de saber o que andamos a fazer e que podemos prever um mínimo de desfechos lógicos.
Há, apesar disso, alguma lógica e possibilidade de coerência neste inocente estado de consciência a que nos remetemos? Nem por isso, nem por sombras.
O mais engraçado é que, apesar disso, com mais ou menos consciência, fazemos uma cara séria e assumimos uma postura de quem sabe exactamente o que está a fazer. 
E a mudança continua, independentemente da nossa vontade e do nosso contributo. Porque apenas a consciência muda, na nossa contemplação desta contínua e inatingível complexidade de acções e efeitos.
Portanto, podemos ser exactamente que quisermos, ou sofrer por acharmos que não. Nada disso importa realmente para o resultado final de todas as coisas, neste insignificante papel que desempenhamos individualmente. 
Por outro lado, uma pequena pedra deslocada do seu sítio, pode fazer desabar uma montanha. E as montanhas não estão à espera disso, claro. Por isso, que garantias eternas nos dão também as montanhas, se mais tarde ou mais cedo desabam como tudo o que esmagam? 
As probabilidades são idênticas para grandes ou pequenos e nisso é que está a justiça de tudo.
A memória é uma espécie de manual do jogo da vida, como esta letra do senhor Dylan que, há cinquenta e quatro anos, preconizava a mudança e que tão bem se aplica aos nossos tempos.