segunda-feira, 5 de outubro de 2020

5 de Outubro familiar

 


Da boca do meu avô materno ouvi a história de um 5 de Outubro vivido por ele aos dezasseis anos. A partir daí a data saltou dos compêndios de História para a esfera familiar. É assim que, por vezes, adquirimos uma percepção diferente dos acontecimentos e dos efeitos que têm nas pessoas que não são as figuras históricas descritas pelo conhecimento oficial.
Natural de Paderne, o meu avô pertencia a uma família ligada à indústria conserveira e um de catorze irmãos, herdeiros de alguma fortuna. Às tantas, por conta de dinheiros, os mais velhos terão ameaçado os mais novos e ele, com catorze anos, e um irmão mais novo, fugiram para Lisboa para escapar à sanha familiar. 
Safaram-se como podiam, como acontecia com os rapazes naquela altura. Até, aos dezasseis anos e por ter mentido na idade, o meu avô ter conseguido entrar para a Guarda Real. Mais alto do que era habitual na altura, de olhos azuis, foi um candidato bem acolhido e lá se manteve por quase um ano até ao 5 de Outubro.
Nessa altura ele e os outros guardas foram metidos em calabouços, à espera de um pelotão de fuzilamento. Quando os interrogaram para decidirem o destino que lhes cabia, um oficial descobriu a idade do jovem guarda e decidiu que podia transitar para a Guarda Nacional Republicana.
Apesar de agradecido à sorte que lhe coube e com receio que a Monarquia voltasse a ser instaurada ━ situação em que, com certeza, não escaparia ao fuzil ━, o meu avô mudou para a Polícia, para onde o seguiu o irmão mais novo. E, posteriormente, enveredaram por uma feliz carreira como polícias sinaleiros que só terminou quando se reformaram. 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

miss Libby e os abutros

 


Entre as muitas actividades de que a minha mãe se lembrava para me manter debaixo de olho, além de me fazer frequentar as aulas de estenografia, caligrafia e dactilografia que leccionava, havia as aulas de alemão de Miss Libby. 
A minha mãe sempre sempre teve uma habilidade especial para acolher debaixo das suas asas cães, gatos, lagartixas e outros seres estranhamente desemparelhados na vida. Miss Libby era uma dessas criaturas. Professoras no mesmo colégio, as duas tornaram-se imediatamente amigas.
As aulas tinham o propósito de controlar a minha mente ociosa com interesses dignos aos olhos dos adultos e, ao mesmo tempo, dar uma ajuda ao orçamento de Miss Libby. Tinham lugar num "apartamento de solteiro" que alugava na Ponta Gea, na Beira. 
Ao contrário da resistência esperada da minha parte, tudo naquelas explicações me encantava. A começar pelo apartamento minúsculo, sempre mergulhado na penumbra e cheio de livros em mais do que duas ou três línguas. Não falhava uma tarde.
Miss Libby exercia um fascínio total sobre mim. Sempre vestida de escuro, com o cabelo preto agarrado atrás, o nariz adunco que ocupava quase toda a cara. Falava muito sozinha e tocava nos livros enquanto se mexia de um lado para o outro.
Era nova e até eu, com os meus dez anos de experiência de vida, conseguia notar isso. Mas parecia a pessoa mais velha do mundo, com memórias que se arrastavam com ela e me faziam acreditar que tinha vivido incontáveis e secretas aventuras. Ao lado dela transformava-me numa sombra, à espera dos segredos que tinha para me revelar e que já incendiavam a minha imaginação.
As aulas de alemão decorriam com grande intensidade, com Miss Libby a perorar interminavelmente naquela e noutras línguas, porque a mente dela também tinha a capacidade de a desviar para dimensões paralelas onde escondia as suas outras vidas. Para mim, tudo aquilo era simplesmente fascinante.
Quando a minha mãe chegava, no fim das lições, ouvia as deambulações de Miss Libby sobre as indignidades do mundo. E antes de sairmos, o seu aviso preferido: "São abutros, Aida. Abutros!"
E lá a deixávamos, com os seus livros e fantasmas, na sombra do apartamento e das vidas que a faziam parecer tão velha e interessante.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

descobre o cão

 


Há dois dias uma frequentadora dos trilhos de Monsanto foi fazer o seu exercício matinal com os auscultadores a marcarem o ritmo da marcha. A páginas tantas percebeu que alguém a interpelava e removeu um dos auriculares.
Um passeante habitual, conhecido pelo seu ar carrancudo, dirigia-se a ela tratando-a por tu sem com ela ter qualquer tipo de contacto prévio. Observou que ela andava por ali sozinha e devia querer alguma coisa, que ele bem sabia, etc.
A passeante, que a princípio considerou que o homem talvez precisasse de alguma coisa, resolveu cortar a conversa e disse-lhe para não lhe dirigir mais a palavra.
O homem, provavelmente gravemente ameaçado na sua masculinidade por tão clara falta de respeito da caminhante, redobrou os impropérios, desferiu ameaças e levou repetidas vezes as mãos às partes gagas para reclamar que ela o "chupasse".
A senhora acelerou o passo na direcção em que tinha estacionado o carro e o homem interpretou isso como uma perseguição e ameaçou-a de novo.
Perto estava uma jovem com um telemóvel, a quem a passeante pediu que ligasse para a polícia, visto que não levava consigo o seu.
O homem desapareceu entretanto e juntaram-se algumas outras pessoas às duas mulheres, entre as quais o dono de um cão também frequentador daqueles trilhos.
Um carro-patrulha apareceu, com três agentes. Contada a história, o mais velho resolveu pedir à senhora que, no dia seguinte, quando não estivesse tão magoada... O termo despoletou de imediato indignação da queixosa e motivou um pedido de desculpas do agente.
Abreviando, a cidadã assediada descreveu o indivíduo e indicou a possível direcção que teria tomado, uma vez que já se haviam cruzado nas caminhadas com os cães e outros frequentadores dos trilhos. Os agentes afirmaram ir ver se o encontravam.
Já no carro, a senhora dirigiu-se até onde costumava ver o homem e viu-o numa das descidas para Alcântara. Voltou para junto do carro-patrulha, estacionado no local onde tinha feito a queixa e com os três agentes lá dentro.
Apitou e indicou-lhes a localização do indivíduo. O carro seguiu para o local indicado e abordou o homem. E assim ficaram as coisas.
Vários telefonemas para a esquadra de origem dos agentes não lhe permitiram saber se alguma medida tinha sido tomada e uma deslocação antes das oito da manhã do dia seguinte permitiu-lhe encontrar o agente e ficar a saber que o homem, segundo a sua versão, a tinha apenas mandado ir dar banho ao cão.
Concluindo, terá de dirigir-se de novo à esquadra para apresentar queixa e citar testemunhas, que não existem porque quem lhe acudiu não chegou a ver o homem e também não têm qualquer interesse em expor-se a contactos com a polícia. Tem também de assegurar que, no relatório da queixa que lhe derem para assinar, indicam a deslocação do carro-patrulha.
E assim ficará a coisa, com a recomendação de prescindir dos seus direitos de frequentar os trilhos de Monsanto e, no caso de nova ameaça, não resistir (recomendação telefónica da APAV).
Agora digam lá: já descobriram o cão?

(Recomendação generalista direccionada às caminhantes do sexo feminino: usem uma t-shirt estampada com a frase "Vai dar banho ao cão" e talvez evitem um acesso de agressividade do homem referido, ou de outros igualmente comprometidos com a ameaça irracional que as mulheres representam. Ou um pedido para uma melhor formação de agentes da autoridade nestes e noutros casos.)

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

sopros

 

"belonging" by MMF

A lembrança de que pertencemos a este mundo de uma forma que não estamos habituados a considerar. É o que acontece numa inspiração, durante uma meditação. Inspiramos e recuperamos a memória do que nos liga a esta vida. Um sopro, do qual cuidamos levianamente. Que nos esquecemos de cultivar.
De algum modo, a respiração é o que nos liga a este mundo, que só não é mais estranho porque ele também existe na dimensão da mente. E da construção que dele fazemos com as nossas experiências, emoções e sonhos.
Queremos acreditar que este mendo existe além de nós e isso até é verdade, porque somos sete biliões de mentes a construir a sua realidade simultaneamente. Num jogo em rede que ainda não se consegue replicar em simples softwares de aparelhos electrónicos.
Como é que se pode imaginar a tremenda ligação entre todas as mentes enquanto se dedicam a tempo inteiro à construção dos seus mundos individuais? Com é que se pode ter uma ideia da louca variedade de conceitos e experiências a que se entregam? Ou às decisões a que conduzem?
E este mundo em que andamos, a ser moldado pela teia de impulsos que originamos? Ou como a ponta do iceberg num universo que se acredita infinito?
Estaríamos cansados de tão imensa falta de limites quando decidimos vir para um insignificante planetazinho e viver uma experiência tão diferente? Ou não se, como se diz, em baixo como acima. Lá voltamos nós às teias que se misturam interminavelmente.
No final, haverá mesmo paz para a fadiga de quem assim guerreia?

sexta-feira, 24 de julho de 2020

silêncio intermitente


Hoje estou mesmo contente por ser sexta-feira. Esta semana foi exigente. Estou a precisar de um fim-de-semana calmo, contemplativo, silencioso.
(anda por aqui uma daquelas fantásticas máquinas camarárias que limpam ruidosamente os cantos aos passeios) (noutros dias são as máquinas de jardim) (e os autocarros que vão levar as crianças da escola à praia, que não desligam os motores enquanto esperam que as organizem para saírem a passeio) (ontem era uma grua a despejar contentores de recolha de lixo das obras) (para não falar nos berbequins, marteladas e toda a panóplia de ruídos invasivos que o restauro das casas exige) (e os diálogos em voz excessivamente alta entre os empreiteiros e os trabalhadores) (conversas intermináveis ao telemóvel, como se, de facto, o ganho esteja na repetição compulsiva de miudezas)
Agora está em voga o jejum intermitente. O corpo acumula lixo e é preciso depurá-lo. A poluição também é sonora e haveria que a depurar também. Metade das ansiedades ia-se embora com um bom plano de silêncio intermitente.
Parece que não nos fartamos de poluir, de muitas formas diferentes. O ruído é o segmento de poluição mais pesado que existe, porque parece que ninguém dá conta da sua existência.

terça-feira, 21 de julho de 2020

sobreviver às tempestades


Terça-feira com ameaça de trovoada. A pior tempestade não é, apesar disso, a dos elementos. Há duas semanas, o rapaz que veio entregar café, não trazia máscara porque estava muito calor. A semana passada, em nova entrega de encomenda, o estafeta não trazia máscara porque estava a trabalhar e não era necessário. Hoje, o técnico da empresa de comunicações queria entrar em casa sem luvas ou protecção para os pés, porque ninguém lhe tinha dito que eram necessárias. Não só não entrou, como saiu furioso e tratou de acelerar o carro de serviço desmesuradamente nos cinquenta metros até à passadeira da escola local.
Pode ser do calor, pode ser do trabalho, pode ser porque ninguém lhes diz nada. O certo é que, cinco meses depois de informação e propaganda incessante sobre os cuidados de higiene, protecção e distanciamento preventivo, as pessoas não podem alegar falta de conhecimento para desculparem os seus comportamentos suicidas que implicam com a segurança dos outros.
Entende-se perfeitamente por que razão subiram os casos de contágio desta pandemia. Assim não se vai lá.
As filas de entrada nos supermercados e noutros sítios mostram pessoas a um escasso meio metro umas das outras. Muita gente anda pela rua entre outros transeuntes sem máscara. Aborrecem-se porque lhes chamam a atenção.
Toda a gente gostaria muito de enterrar a cabeça na areia e esquecer que esta pandemia alguma vez aconteceu. Mas ela não vai desaparecer só porque se decide um desconfinamento. O problema veio para ficar e há que lidar com ele antes que extermine uma boa parte, senão a totalidade da população.
O facto é que há que mudar hábitos e, quanto mais depressa o fizermos, mais depressa a economia volta a encontrar um bom rumo. O maior problema da economia global é, neste momento, a pouca vontade de mudar sistemas que nos trouxeram até aqui.
Não usar máscara ou praticar alguma outra forma de protecção é como estar num meio de um incêndio e recusar qualquer acção porque não se teve nada que ver com aquilo. A verdade é que este vírus veio demonstrar que todos estamos implicados, ligados e apenas a consciência disso nos poderá tirar do aperto em que estamos metidos.
Nenhuma das nossas acções é isolada e afecta toda a gente numa escala igual à das ondas que uma pedrinha provoca num lago. Há implicações e nenhum de nós se pode subtrair ou encará-las levianamente.

quinta-feira, 16 de julho de 2020

santos e manjericos


"Santos Manjericos" - MMF 2020

Parece que já vou tarde para festejar os santos populares. Mas como ficam sempre os vasos e as recordações, há sempre tempo pretexto para confessar os amores e desamores com que as celebrações nos presenteiam.
O António é um perigo, como os bailes de carnaval. Se não nos precavemos, cai-nos pelo menos um namoro em cima. E, se isto tem que ver com a capacidade dos antigos de prever uma época de enrolanços, isso diz o suficiente sobre o nosso aparente domínio das emoções.
Os manjericos são uma gracinha, delicados e de cheiro agradável. Não se sabe bem como aguentam a brutalidade selvática das festas.
O João, que devia ser mais romântico e idílico, fica esquecido entre os vapores etílicos dos foliões e mais parece que os festejos se devem a um derby futebolístico do que à comemoração do apóstolo do amor.
Pedro, depois de tanta baderna, é o santo mais discreto, que enche toda a gente de receios com a chuva ou falta dela. 
É caso para dizer que, assim, nem os santos nos valem.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

dia de Portugal a cores

"Green, Red and Yellow Hearts" - MMF
Achei muita graça aos Lusíadas, apesar de ter tido de me habituar à leitura rebuscada do texto em verso. As histórias assaltavam a minha imaginação, embora só uns anitos mais tarde, rendida às delícias da ficção científica, tenha percebido o verdadeiro potencial do clássico.
Na altura, a professora encarregada de nos revelar as maravilhas camonianas era uma goesa de Moçambique. Um vislumbre da riqueza ainda menosprezada do caldeirão das raças alimentado pelos portugueses. Mesmo nos momentos mais segregacionistas dos regimes passados, o dia-a-dia de muitas raças juntas era uma prova inequívoca de que o mundo não era necessariamente branco, ocidental ou mesmo masculino.
A cor branca, já que trazida à baila, é a junção de todas as cores e é a cor que reflete todos os raios luminosos, não absorvendo nenhum e por isso aparecendo como clareza máxima. Andamos todos às escuras quando gritamos contra "poderes brancos" e a replicar conceitos que, afinal, entendemos com muito pouco entendimento.
A confirmar-se que todas as raças descendem da negra, então é que a porca torce o rabo e se destroçam os argumentos extremados de algumas gentes. Podia até escrever-se mais um poema épico sobre esses filhos descoloridos que se indignam com as cores dos seus egrégios papás.
A indignação tem duas faces, como as moedas. Numa delas é a legítima recusa de circunstâncias injustas. Noutra, apenas um muito feio reflexo de medos treinados em nós por outros. Enfim, as moedas também se trocam.
Bom dia de Portugal e de Camões, que via mais com um olho só do que muitos outros, mesmo com os mais correntes olhos virtuais. Bom dia das Comunidades e muita paz, à laia de vacina contra exaltações avulsas.

quarta-feira, 27 de maio de 2020

maio, mulheres e vermelhos

"Starry  Women" by MMF

Maio é para as mulheres. O mês vermelho assenta-lhes que nem uma luva. Embora Março, o mês da guerra, queira monopolizar a cor. Maio é vermelho e das mulheres, definitivamente. Também é o mês das rosas que, como se sabe, tinham um trato com Isabel, a Rainha Santa, quando era preciso disfarçar o pão que seguia para os mais esfomeados.
Há sempre uma história de mulheres quando se fala no vermelho. Não precisa de ser vermelho-sangue, porque isso apela ao que pode haver de pior em qualquer um de nós. No meu caso, imaginá-lo ou vê-lo é suficiente para me desligar a consciência, mesmo em circunstâncias em que os olhos teimem em manter-se abertos.
Do lado masculino a apetência pelo vermelho fica-se essencialmente por gravatas, sapatos e uniformes desportivos. Acolhem muitíssimo melhor os pretos, cinzentos e azuis escuros com que se pavoneiam como se fossem uma força de elite, naturalmente promovidos pela farda das suas vidas.
Para as mulheres qualquer vermelho serve, sobretudo em Maio, altura em que a pujança da cor anima a vida para o resto do ano. O Maio da Maya não deixa os seus créditos nas mãos de outros. Viva Maio, o vermelho e as mulheres.
Já o mar da mesma cor é, normalmente muito mais da cor das grandes massas de água. O que é uma pena porque dá gozo imaginá-lo como um depósito de gelatina de morango com propriedades misteriosas e agradáveis, além de ser possível associar-lhe um aroma frutado.
O vermelho dos vinhos é outra conversa. Além da cor, o álcool adiciona mais uns pontos ao capítulo da energia, embora seja depois necessário compensá-lo com muita água e ainda mais juízo. Juízo esse que não se aplica a crenças por provar como as das luas vermelhas, a irritação dos touros quando vêem uma cor que de facto parece não ser por eles reconhecida.
Os magos também gostam dos forros vermelhos onde, em combinação com o negro, é fácil ocultar o que não deve ser visto. Será que a Rainha Santa recorreu A uma artimanha semelhante? Porque, como mulher, era senhora para isso, com toda a certeza.
De qualquer forma, quando se sentirem desanimados, pensem em vermelhos e, se possível, em tomar um copinho de néctar vermelho. Ou bailarinas de flamengo vestidas a rigor.  Flores de Natal?

segunda-feira, 25 de maio de 2020

looking for elephants

"looking for elephants" by MMF
O assunto do dia são os elefantes brancos, que até têm uma ordem honorífica na Tailândia. Que são uma bênção e uma maldição. E às vezes cor-de-rosa, mas não muitas, para não incomodar por excessiva candura ou entusiasmo. Prefiro os que voam, mas não acho cómodo aumentarem-lhes as orelhas como se precisassem asas maiores que as da imaginação.
Nunca vi um elefante branco, mas vejo todos dias pessoas que parecem perseguidas por um. É pior do que ouvir vozes assassinas, como os esquizóides. Transformam qualquer vida normal num inferno pior do que o verdadeiro, que não é neste mundo e por isso nos vai dando umas folgas.
No outro dia, por exemplo, vi uma das vizinhas de máscara ao queixo, a passear o canídeo adoptado, que manca e gosta de roer a rede de metal do portão para se escapar para a rua. Arrastavam-se como se tivessem o peso de um elefante nas costas. Não me pareceu nada saudável.
No meu caso, quando sinto que anda um desses bichos por perto, atiro-me para o sofá e finjo-me de morta. Até que passe e me deixe em paz para enterrar mais um bocado de vida em rotinas estúpidas. O estúpido distrai-nos do que nos apoquenta. 
Voltando aos elefantes brancos, é preciso ter em conta que são como aqueles gatos pelados que não podem apanhar sol e são bonitos de tão feios. Pondero todos os dias a necessidade de manter por perto um proboscídeo com tantos problemas de manutenção.
Em Malta adaptaram-se e viraram inteligentemente anões de dieta parcimoniosa. O que mostra que mantê-los numa sala de estar normal também pode ser possível com as devidas contenções.
Para todos os efeitos, ando à procura de elefantes, brancos ou não. 

sexta-feira, 22 de maio de 2020

arte, para que te quero?

"leaves" by MMF

Diz Jeremy Irons, na pele de Alfred Stieglitz (num filme biográfico sobre Georgia O'Keeffe) que o artista só se torna famoso quando um rico compra a sua obra. Até lá, por melhor que seja, é ignorado por todos.
Nestes tempos excepcionais os artistas aproveitaram para lançar um alerta sobre as condições em que desenvolvem o seu mister, pedindo que não os esqueçam e que também são vítimas das circunstâncias que paralisaram a economia mundial. Mas, na verdade, não é um vírus que paralisa os artistas e a suas actividades. 
Se é uma das pessoas que agora partilha os apelos para o reconhecimento da arte e da cultura, é provável que também faça parte das pessoas que acreditam que ser artista é uma condenação à pobreza e à precariedade.
A não ser que o artista seja uma personalidade pública. E aí caiba na categoria das pessoas que passam, com toda a facilidade, de bestiais a bestas. Só porque a admiração tem a capacidade de se transformar muito rapidamente em ódio e ressentimento, quando os seus alvos não correspondem à idealização que fazem deles. 
A maioria das pessoas não gosta de ser contrariada nos seus desejos, nem admite outra originalidade de comportamentos que não seja a sua.
Porque os artistas são como as mulheres que se atrevem a mostrar a sua beleza de uma forma mais livre: estão a pedi-las.
A maioria das pessoas gosta de ouvir música, de ver filmes, de partilhar imagens, textos e ideias nas redes sociais para mostrar que são pessoas interessantes. Acontece que, interessantes a sério são os artistas que criam essas peças.
Interessante é também o raciocínio que leva as pessoas a atacar os abusadores que ficam com a parte de leão da riqueza do mundo, mas não se importam de usar e abusar das criações dos artistas sem outra consequência emocional que a da pena e da solidariedade virtual.
O abuso que aprenderam a aceitar como normal, e que não se importam de praticar com os artistas é, no fundo, uma forma de discriminação. Como a que afecta as pessoas pelas suas orientações sexuais, religiosas, idade ou etnia. 
Só que neste caso não suscita nenhuma emoção violenta, agressividade ou medo. Pelo contrário. As manifestações artísticas suscitam empatia, prazer, satisfação. Só não geram respeito ou reconhecimento de um valor material.
Nenhum ministério ou ministro da cultura logrou esse reconhecimento e a sua respectiva solução. Nenhum ministério ou ministro da educação jamais considerou sequer a preparação de matérias que corrigissem essa discriminação.
A natureza especial da arte e dos artistas é uma espécie de bem intangível só reconhecível depois da morte (e portanto, pelo reconhecimento da falta que faz). Até lá é como se não existisse para os artistas. Mesmo quem é capaz de gerar dividendos com a criação artística vê o resultado e o reconhecimento do seu trabalho.
O artista não. A sua condição é sinónimo de uma exploração que deixou de se tolerar em relação à escravatura e aos menos bafejados socialmente. Mas o estigma está aí e não há quem o desafie. Batem-se palmas, mas acabado o espectáculo vai tudo às suas vidas. E às partilhas de música, filmes, imagens que preenchem a vida de todos. Menos a dos artistas.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

pela sombra

"Walk Under The Trees" by MMF
Pela sombra também se vai bem. Mesmo sem a implícita cautela, vai-se sempre bem. Porque a qualidade do passeio se mede pelo grau de atenção e pelo que se escolhe como motivo de observação. Pelo que se sente também. Há muito mais na sombra do que se julga e nem tudo é bom, nem tudo é mau. Juízos de valor à parte, tudo é digno de consideração e as descobertas chegam com uma mão cheia de surpresas.
Pela sombra evitam-se alguns encandeamentos, excessos de luz que produzem cegueiras diversas. Andar pelo mundo como se fosse uma viagem feérica tem efeitos colaterais. Aproveitem-se pois os recatos sombrios para temperar forças e juízos. Ganhar o recuo necessário à correcta avaliação do conjunto das coisas.
Pela sombra vão os avisados, acompanhados de receios em alguns casos, e com a devida medida de curiosidade. Nada de pôr os ovinhos todos na mesma cesta, não vá dar-se o caso de vir uma surpresa ditar sem apelo a sua extinção. A sombra requer ânimo para receber revelações.
Também cega a inveja, o despeito e a zanga. Os seus alvos sobrevivem melhor na camuflagem do que na despropositada exposição. Vou, por isso, pela sombra e com um imenso sentido de apreciação. Sem sombra de dúvida.

sexta-feira, 24 de abril de 2020

ataques dos diabos


Quando o diabo ataca não há santa que nos valha, nem deuses que nos acudam. O pior vem ao de cima, supostamente subido dos baixos que ninguém sabe exactamente onde ficam, mas não interessa. Mesmo não sendo nada racional ou cientificamente comprovado, toda a gente sabe que o Bem vem de cima e o Mal de baixo. Se bem que fosse de maior senso comum pressupor que tanto um como outro podem vir de qualquer lado e melhor seria estarmos preparados, não vá fugir-nos o bom e surpreender-nos o mau.
Como dizia, quando o diabo nos ataca, não há mal que não aconteça. Por acaso, isso até me lembra o anjo e o diabinho que nos dizem coisas ao ouvido. O primeiro é sempre ignorado e o segundo tentador. Acho que é mesmo porque acreditamos piamente que as maiores e melhores tentações só podem vir do Diabo, de bem que retratam os nossos mais íntimos sonhos e desejos. E o mais aborrecido, mesmo que correcto, vem do tal anjinho.
Isto somos nós a confessar que o diabrete que habita em nós é de facto o herói capaz de nos proporcionar as mais apetitosas aventuras. Até porque se a coisa der para o torto, sempre temos o anjinho e um Deus compassivo para nos acudir.
Portanto, quando o diabo ataca, na verdade somos nós que estamos com vontade de partir a louça toda, como se não houvesse amanhã. Até porque o perdão está sempre assegurado e podemos recorrer a ele sempre que as circunstâncias o determinarem.
Já o mal, senhoras e senhores, é uma zanga que trazemos connosco desde o pecado original, uma espécie de casa penhorada que herdamos naturalmente. Ou seja, a natureza deste mundo não nos é automaticamente favorável. Pelo menos na forma que nos habituamos a imaginá-la e que dita que o dever vem sempre antes do prazer. Aquele dever que jamais se esgota e nos esgota vinte e quatro horas por dia. 
Que tempo nos resta então para o prazer? O que é feito das coisas boas com que nos acena? Por que diabo nos traz dores de cabeça e culpas muito além das nossas capacidades, como se a condenação de Eva e de Adão fosse uma espada eternamente pendurada sobre as nossas cabeças?
É com certeza o Diabo que nos põe estas coisas na cabeça e nos condena. Porque Deus, bom e perfeito, não pondera sequer essas maluquices que tanto nos atormentam. O seu a seu dono então.
O pior é que, se os prazeres das tentações são todos do Belzebu, que raio andamos aqui todos a fazer, iludidos com frutos que nos estão proibidos e que quando estão ao alcance da mão, é só para nos queimar? Querem ver que andam para aí diabinhos a castigar-nos a seu bel prazer com pecados só por eles ditados?
Há coisas do Diabo, é o que tenho para vos dizer. Assim, o anjinho que temos em nós não vai lá, não senhora.

quarta-feira, 22 de abril de 2020

ataquei o jardim

'Wild Garden' by MMF
Ontem ataquei o jardim. A amostra de jardim, para ser mais exacta. Se é que podemos considerar como jardim um rectângulo com terra, dezenas de vasos e uma miríade de ervas enlouquecidas a crescer entre as lajes. 
A natureza é selvagem, como sabemos. Mas o que se estava a dar naquele espaço era um ataque concertado de espécies vegetais. Mais um bocado e teríamos de entrar ou sair de casa à força de catanadas.
A fada verde do lar sempre foi a minha mãe, com as folhinhas e raminhos que punha em copos e chávenas desemparelhadas, pratos ou frascos. Que viravam plantas viçosas e empertigadas ao fim de algum tempo. Excesso de amor, dizia eu para com os meus botões, um bocado irritada com a forma orgulhosa com que elas ocupavam os cantos à casa.
Também me calhava, uma ou outra vez, regá-las na ausência dos donos da casa e só de uma vez contei seiscentos e quarenta e picos vasos, fora o canteiro e mais de duas horas a mangueirar ou de regador na mão.
Não era só a minha mãe a cultivar aquele exército de clorofila. O meu pai atirava para qualquer pedaço de terra sementes que apanhava nos seus passeios e que resultaram numa nespereira, tamareiras e outras árvores nem sempre identificáveis, a menos que dessem um fruto reconhecível ou flores que alguém conhecesse.
Depois vinham as irmãs e as visitas com vasos de tudo o que era planta de sua eleição. Nenhuma alguma vez rejeitada e assim se compôs a fauna florestal de casa. No final, entre a fada verde e o seu ajudante ocasional, a coisa resultava e até era um regalo para os olhos.
Comigo a coisa não funciona exactamente assim. Árvores, plantas e flores intuem a minha falta de mão para o assunto e, nas minhas barbas, toca a crescer para todo o lado e em todos os cantos. Sem qualquer tipo de respeito pela minha necessidade de ordem e de geometria básica.
Já perguntei à minha mãe como é que ela conseguia. Ri, despreocupada dessas minúcias por via da sua provecta idade. Já fiz o que tinha a fazer, diz-me, divertida com o meu desespero.
Portanto, ontem ataquei o jardim, na esperança de domar vasos e verdes com linhas direitas, filas ordenadas por tamanhos e outros atributos de ordem que façam algum sentido na minha cabeça e me garantam tranquilidade emocional.
Se não conseguir, saibam ao menos que tentei, apesar das bolhas nas mãos e dos picos destas ingratas que nem sequer agradecem a água que lhes deito.

segunda-feira, 20 de abril de 2020

ora no cravo, ora na revolução


Nem só de vinte e cincos consta o mês de Abril. Os números têm uma magia própria que nunca se esgota. Parece que fazem de propósito, a organizarem-se em padrões que se multiplicam em demonstrações singulares de revelações e significados.
O onze, por exemplo, que é um número muito elegante, marcou a chegada da minha família à Terra da Boa Gente, na costa do Índico, tão palmilhada por navegadores portugueses e de outras nacionalidades.
Acontece que nesse mesmo dia, à noite, se ouviram na rádio (BBC) rumores de que se preparava um golpe de Estado em Portugal. Logo ali a minha mãe decidiu que não se desfaziam as malas todas e até se saber o que se ia passar.
Acabou por se dar o 25 de Abril, a que assistimos com a ajuda dos relatos radiofónicos. Mais a prisão dos agentes da PIDE/DGS, o crescimento do cabelo e da barba dos representantes do MFA, a agitação popular, as primeiras campanhas políticas com boa gente da terra, a entrada dos militares da Frelimo, o pavor do 7 de Setembro e outras vicissitudes.
Tudo culminaria de novo a 11, desta vez em Novembro, dia de São Martinho, com a chegada a Lisboa para assistir ao PREC.
O 11 de Abril também é notável por ter sido estreia, em 1727, da Paixão segundo São Mateus, de Bach, da fundação da Organização Internacional do Trabalho, em 1919, e da entrada em vigor da Constituição Portuguesa de 1933 que deu início ao Estado Novo. 
Em 1970 é o dia do lançamento da Apollo 13 e, em 1976, do computador pessoal Apple I. Foi também o dia em que Julian Assange foi preso, em 2019, na embaixada equatoriana de Londres. O General António de Spínola nasceu a 11 de Abril de 1910.
A 25 de Abril de 1972 Claude Joseph Rouget de Lisle compôs A Marselhesa, o hino nacional francês. No mesmo dia, em 1976, entrou em vigor a Constituição Portuguesa que consagrou a democracia em Portugal. Era o dia de aniversário de Ella Fitzgerald (1917) e de Uderzo (1927), o desenhador de Astérix, de Al Pacino (1940), de Manuel Freire (1942) e de Mário Laginha (1960), entre outros.
Se nos dedicássemos à construção de um mapa que assinalasse todas as coincidências entre os dias de Abril e as suas efemérides, com certeza desvendaríamos um padrão fantástico e repleto de surpresas. Podíamos acrescentar mil e uma variantes e multiplicar infinitamente as hipóteses e as conclusões.
O importante, no entanto, é que Abril em Portugal não é um mês qualquer. Nem as suas mil águas, nem as muitas vozes dos seus detractores conseguem diluir o significado que teve e que mantém para os portugueses. E para outros também. De dia 1 a dia 30, das mentiras às revoluções, há-de cantar-se sempre, de uma ou de outra forma. Uma ora no cravo, ora na revolução.

sábado, 18 de abril de 2020

vermelhos, árvores e vento

"African Walk" by MMF
A memória mais antiga e persistente é de uns passeios ao final da tarde, numa rua de terra batida, entre árvores muito altas. Lembro-me da luz avermelhada, do vento na cara e do cheiro, de solavancos e vozes femininas à conversa. Passeios no carrinho empurrado pela rua principal de Vila Paiva de Andrade, hoje Gorongosa. 
Há por aí fotografias de sestas em cima de uma esteira e ao lado da leão da Rodésia que arreganhava os dentes às visitas que achavam a cena ternurenta e depois preferiam tomar o mazagran com limão no outro extremo da varanda.
As cores dos passeios e a felicidade permanecem, como o encantamento pelas árvores e pelo som que delas traz o vento.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

pontaria cega


Ter boa pontaria é muito importante. Melhor, ter uma boa técnica para apontar com precisão ainda é mais importante. Como demonstra o momento que partilho aqui.
Por ser um bom cavaleiro, o meu pai foi colocado numa companhia de artilharia que, à altura, ainda usava cavalos para movimentar o seu poder de fogo e os seus oficiais. Isto pelos anos trinta do século passado. 
Quando completou o seu tempo de serviço, a mando do comandante, que decidira que nenhum oficial sairia sem carta de condução da companhia, teve dois dias de lições com um dos motoristas e saiu com a necessária habilitação. Ordem cumprida.
Poucos anos depois teve oportunidade de praticar as suas competências ao volante nas picadas dos planaltos moçambicanos, ao volante dos Willys e Land Rovers. 
De vez em quando calhava-nos uma saída dessas em que nos arrumávamos no banco ao lado dele, na cabina, e seguíamos pelas estradas aos saltos e em condições que hoje fariam arrepiar qualquer entendido em segurança rodoviária.
Os momentos altos chegavam quando era preciso atravessar um curso de água com profundidade suficiente para exigir uma ponte. Dois troncos atravessados entre margens asseguravam a passagem e exigiam do condutor a capacidade de acertar e de se manter no rodado. A pontaria era, nestes casos, uma qualidade indispensável.
Ao volante, o meu pai anunciava que ia fazer pontaria e que precisávamos todos de fechar os olhos para acertar e passar para o outro lado. Acontecesse o que acontecesse, não olhar era a condição essencial para o sucesso da travessia. Nós, miúdas, soltávamos gritinhos de medo e excitação, que se transformavam em exclamações de alívio e alegria quando nos víamos do outro lado.
Um dia, curiosa, resolvi abrir os olhos e verificar se o meu pai também fechava os olhos quando atravessávamos a ponte. De facto, fechava e ria como se estivéssemos na vertigem de uma montanha russa. 
Nunca mais fechei os olhos quando passávamos uma ponte. Alguém tinha de garantir que a aventura corria como esperado. Mas nunca mais duvidei que uma fé cega é a melhor forma de garantir a pontaria.

segunda-feira, 6 de abril de 2020

mãos que criam e destroem


As mãos curam e também trazem com elas aflições. São as nossas varinhas mágicas, para o mal e para o bem. Criam e destroem com igual eficiência. Temos de aprender a usá-las de forma mais consciente. A usar tudo de forma mais adequada.
Um dia, uma bruxa veio oferecer-me uma mezinha para a boa fortuna em todos os meus empreendimentos. Parecia uma oferta irrecusável e, por isso mesmo, quis saber o que ganharia ela com isso. Não queria nada, só ler as minhas mãos e o resto desenrolar-se-ia naturalmente, na opinião dela.
A informação pareceu-me escassa, sobretudo para o nível de altruísmo apregoado. Não havia, aparentemente, letras pequeninas. Mas quando não me respondem a uma pergunta e está implícito um grau de envolvimento da minha parte, faço questão de avançar com uma boa dose de dados para avaliar as minhas obrigações neste tipo de partilha.
Recusei a oferta, que imediatamente se transformou numa maldição. Depois de tapar os ouvidos a muitas invectivas, pus sal à porta, defumei a casa, mudei de passeio sempre que necessário e mais o que se tornou necessário para combater aquela situação.
Nunca mais disponibilizei as mãos para desfrute indiscriminado dos outros. Aprendi a lição da simpatia que é usada como o ouro dos tolos e esconde perigos para os quais não nos oferecemos voluntariamente.
As mãos das bruxas não são feias, nem têm garras visíveis. Eventualmente, estão cobertas de vírus implacáveis e invisíveis. As bruxas também não seguem nenhum código especial de sinalização contra as ameaças. Nem as mãos.
Façamos delas varinhas de boas práticas com as nossas escolhas. Usemos a consciência informada para optar preferencialmente pelo lado bom de todas as mãos.