segunda-feira, 30 de maio de 2022

aprendizagens

 

"A idade da muchém" by MMF

Em tempos não muito distantes, a razão para haver armas em casa era a mais básica sobrevivência.
Durante a minha infância em Moçambique, em locais mais remotos do que pareciam à primeira vista, as caçadas serviam para fornecer carne para casa e para quem, nas aldeias, não tinha possibilidade de a arranjar de outra forma.
Quando a necessidade apertava, lá se organizava uma saída nocturna para prover as despensas e suprir a fala de abastecimentos que hoje se têm por garantidos.
O meu pai, apesar de só ter filhas, achava que fazia parte da nossa educação enfiar-nos na cabine do land rover à noite e participar da tarefa de matar para comer. 
Numa dessas saídas, já de madrugada, quando o grupo de pisteiros e caçadores achou que a caixa já tinha peças suficientes para prover a todos, parámos para fazer um matabicho ligeiro antes de regressar a casa.
Tinha passado a noite a tentar manter-me acordada e esticar as pernas fazia bem a toda a gente. O ar fresco até me espevitou e lembrou que era a ocasião ideal para pedir para dar uns tiros, quando já ninguém ia precisar das armas para caçar. E lá fui eu pedir ao meu pai para disparar.
A resposta imediata foi um não redondo. Aquilo não me caiu bem e, numa bela birra de sono, fiz o que fazem todas as crianças. Repeti o pedido como um mantra, decidida a dar acbo da paciência a toda a gente até conseguir o que queria.
"Queres mesmo atirar?", perguntou o meu pai. Claro que sim. Estavam todos a olhar para mim. Não queria dar parte fraca. Afinal, já tinha sete anos e a possibilidade de pegar numa espingarda despertou-me como se estivesse a beber do termo do café, em vez do de água.
O meu pai pediu que lhe passassem a .22, a espingarda mais pequena que tinham trazido. Olhou em volta, descobriu um morrozinho de muchém e disse-me para me pôr em cima dele, para ver se via melhor a árvore em que queria que acertasse.
Obedeci, deliciada. Equilibrei-me bem em cima do monte de terra e recebi a espingarda do meu pai, que me ajudou a segurá-la correctamente. Indicou o alvo e apontei o melhor que podia. Disparei e o ressalto da espingarda atirou-me ao chão.
Foi uma festa. Caçadores e pisteiros correram a levantar-me. Sacudiram-me a roupa, riam e cumprimentavam-me ao mesmo tempo.
O meu pai apanhou a arma e concluiu: "Ainda não tens idade para atirar."
Fui recambiada para a cabina, vermelha que nem um tomate. Não dei parte fraca, embora tivesse caído a dormir durante todo o caminho de regresso.
Lição aprendida: nunca atirar de um morro de muchém, nem achar que uma birra serve para mais do que uma humilhação merecida.

(A propósito de armas e outras irracionalidades.)

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