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quinta-feira, 19 de julho de 2018

fruo, logo também existo

"fruição"
O dever antes do prazer é uma daquelas frases que parecem talhadas para os dias de hoje, em que a obsessão pela prova de que se trabalha até cair, que se dá às criancinhas tudo o que elas querem e não querem, que não há tempo para mais do que as obrigações. Em que todo o mérito se resume a cumprir os objectivos traçados por uma imensa máquina de propaganda (ou entretenimento) que acredita piamente que se não metralhar as suas aparentes verdades a uma cadência alucinada por segundo, morre na praia.
Claro que morre. É só apreciar a caótica trumpada que para aí anda. A amálgama de disparates e desconcertos que é, afinal, prova bastante que o dever sem equilíbrio é mortal para o indivíduo, para a sociedade e para o planeta. Para todo o universo, provavelmente.
O prazer não existe para ser alvo da nova inquisição que determina que apenas os festivais pop ou populares é que são aceitáveis. E que tudo o mais tem uma norma e uma conformidade traduzível num código de barras e no consentimento da maioria.
Esse afunilamento voluntário da riqueza interior de cada um, de soluções diferentes, de atrevimentos que fogem à adamastoriana organização das sociedades, tão cega como uma máquina sem condutor, é uma tristeza de deveres sem cérebro, sem alma e sem vida. Sem prazer.
A aprendizagem da fruição tornou-se uma tarefa quase ilegal, quando não sujeita às modas vigentes. O tempo não lhe é favorável com tanto dever subjacente ao que serve a tal maioria decapitada que governa os ditames do que parece ser conveniente e aceitável.
Qual o sentido de uma vida inteira a trabalhar os deveres para chegar aos prazeres prometidos, se tudo se esgota na primeira parte, sem intervalo nem segunda parte e final feliz?
O caminho do meio parece impossível no pouco inteligente enredo colectivo que acredita que todas as boas soluções passam pela adição imparável de mais e mais obrigações, mais e mais normas, mais e mais trabalho.
O equilíbrio é impossível quando nos inclinamos todos para o mesmo lado uma balança que tem o seu fiel ao centro. Nesta visão do funcionamento de todas coisas afogamo-nos permanentemente em derrocadas e a única resposta em que insistimos é mais do mesmo para ver se endireitamos o barco. Mas o naufrágio é o único cenário evidente.
A fruição, o prazer é o outro prato da balança. Existe não para ser desacreditado e desvalorizado, mas para nos devolver o equilíbrio. Através da criatividade que nos inspira, da satisfação com que nos invade e preenche, de um novo olhar sobre todas as coisas.
Nem só de pão vive o homem e não faz mal nem é pecado saltar uma refeição para ler um livro, ouvir música que não se limite a martelar como uma máquina, passear o olhar pelas artes ou explorar a natureza sem ser na pele de carneirinhos amestrados, com auto-nomeados pastores a decidir que temos todos de caminhar ombro a ombro pelas mesmas veredas que milhões de outros.
A nossa vida devia ser inteligentemente dividida em dever e prazer, durante as nossas horas vigilantes. Com uma saudável dose de desconfiança por esses bulldozers do entusiasmo do trabalho libertador que tanta gente interna em campos de duvidosa finalidade.
A fruição também liberta e não deve ser controlada pelo extremismo fanático que escraviza a vida num cemitério de obrigações inadiáveis.