Mostrar mensagens com a etiqueta cobras. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta cobras. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 18 de março de 2020

planos de fuga irracionais

"Mães e cobras" by MMF
A propósito de pragas e medos irracionais, recordo que a minha mãe sempre teve uma relação complicada com cobras. Lisboeta nada e criada, essa era uma parte da aventura africana que nunca a encantou.
Mas havia outras que despertavam nela aptidões insuspeitadas numa citadina que aos vinte e dois anos aterrara no mato profundo dos planaltos moçambicanos. Uma delas era a sua habilidade para fazer vingar qualquer tipo de planta, muito útil quando não há supermercados ou cadeias de distribuição num raio de muitos milhares de quilómetros e uma mesa de família para abastecer todos os dias.
Os jardins e as machambas (hortas) das casas por onde passavam eram sempre uma delícia, cheios de plantas ornamentais para todos os cantos da casa e hortícolas que abasteciam a nossa e muitas outras casas.
De manhã, a minha mãe vestia-se a rigor para cumprir as suas obrigações de fada verde do lar, com um bonito quico de lona na cabeça, uns óculos escuros dignos de vedeta de cinema e luvas para proteger as mãos (a vida social no mato era exigente, acreditem ou não). Saía para apanhar o que se servia à mesa do almoço e  do jantar, e o que havia de embelezar as jarras de casa.
Um dia, nesse seríssimo ritual matutino, equipada com um cesto de verga, tomou o caminho da machamba (horta) e foi directa às cenouras. Depois aos rabanetes e, já não me lembro o que ficava a meio caminho do que ia ser o resto da nossa salada e mais ou menos o meio dos canteiros, na ordem que ela determinava sempre para que tudo crescesse como devia.
Foi nesse momento que o rapaz que tinha a seu cargo as regas e outros cuidados, lhe gritou: "Senhora, cobra, senhora!"
Ninguém calcula o que uma mãe de família pode elevar-se no ar com um aviso intempestivo desta natureza. Nem, cenouras e outros hortícolas, mais a cestinha, tudo pelo ar, a velocidade que uma lisboeta consegue imprimir à sua fuga irracional de um animal rastejante.
O pior, no entanto, é que o rapaz, observando que cobra e senhora tinam optado por fugir na mesma direcção, voltou a gritar: "Aí, não! Para aí, não!"
Alerta e obedientes, a minha mãe e a cobra mudaram imediatamente de direcção. A mesma. Novo grito do rapaz voltou a alertá-las para o perigo e de novo corrigiram a rota, instintivamente, na mesma
direcção.
Só o desespero do rapaz, que entretanto alcançou a minha mãe e a conduziu pelo braço para fora da machamba, permitiu que a correria não acabasse em tragédia, para ela ou para a cobra. Unidas pelo pânico, ambas tinham posto em prática planos de fuga idênticos e aumentado o risco que corriam.
Depois desse incidente, e sem nenhuma vontade de arriscar a sua segurança pessoal em nome da salada, a minha mãe esperava pacientemente que alguém lhe garantisse que o caminho estava livre de cobras paniquentas que não sabiam aguardar a sua vez de passear pela frescura dos canteiros.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

cobras, lápis e paraíso


Toda a gente sabe que há cobras à espreita no jardim do Paraíso. Foi assim que caíram os papás da Humanidade. Também havia maçãs proibidas. 
Será possível imaginar um paraíso tão cheio de perigos e interdições? Não parece perfeito e muito menos obra de um Criador benevolente. Embora não documentado, o lápis da censura já devia andar a fazer das suas na altura.
Com um exemplo assim é difícil imaginar um mundo melhor e optar por práticas mais coerentes de liberdade de expressão. Qualquer dia nem uma pêra rocha de pode trincar sem verificar primeiro se há um fiscal de costumes por perto.
É mesmo possível que o espírito crítico e a lógica mais clara sejam subliminarmente influenciados por estas histórias contaminadas por dogmas que ouvimos desde crianças. É a educação imposta, na sua pior versão.
Seria mais justo educar para ir ao encontro do que hoje se sabe que são paradigmas mais saudáveis. Mas a educação dos dias de hoje tem uma lógica de mercearia, com o deve e o haver postos nas empreitadas para os edifícios e para o serviço de refeições, deixando para segundo plano os meros pretextos que são alunos e professores, bem como a troca de informação que nutre o conhecimento que muda mundos.
São investimentos armadilhados, sem retorno lucrativo enumerável, sempre na lógica do paraíso envenenado e para sempre adiado, como a cenoura que segue à frente do burro e que deve ser inatingível para o manter em movimento.
A mais fácil conclusão é a de estarmos perante mais um fenómeno de manipulação de informação nessa história do paraíso de que qualquer um pode tombar, provavelmente criado pelos órgãos de comunicação de massas da altura.
Assim se faz refém o futuro da Humanidade, com contos cheios de pontos acrescentados e dirigentes que são, afinal, homenzinhos de cinzento munidos de lápis azuis. Enquanto esperamos por melhores tempos e não pomos a lógica na linha.

domingo, 21 de janeiro de 2018

voo cego

"snake dream" by Marita Moreno Ferreira (pen on paper)
Há alturas em que tem mesmo de ser assim: largar a pele que já não nos serve e abraçar uma nova, pronta para recomeços e experiências diferentes. 
Sonhar com estas criaturas é um desejo expresso de renovar a vida e as ideias feitas que alimentámos durante anos. Reconhecer que se está consciente e farto dos velhos métodos. Uma declaração de que se está pronto para uma inebriante e poderosa lufada de ar fresco.
Venha daí o tornado e aceite-se o voo cego que se vai apoderar de nós.