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quarta-feira, 8 de abril de 2020

pontaria cega


Ter boa pontaria é muito importante. Melhor, ter uma boa técnica para apontar com precisão ainda é mais importante. Como demonstra o momento que partilho aqui.
Por ser um bom cavaleiro, o meu pai foi colocado numa companhia de artilharia que, à altura, ainda usava cavalos para movimentar o seu poder de fogo e os seus oficiais. Isto pelos anos trinta do século passado. 
Quando completou o seu tempo de serviço, a mando do comandante, que decidira que nenhum oficial sairia sem carta de condução da companhia, teve dois dias de lições com um dos motoristas e saiu com a necessária habilitação. Ordem cumprida.
Poucos anos depois teve oportunidade de praticar as suas competências ao volante nas picadas dos planaltos moçambicanos, ao volante dos Willys e Land Rovers. 
De vez em quando calhava-nos uma saída dessas em que nos arrumávamos no banco ao lado dele, na cabina, e seguíamos pelas estradas aos saltos e em condições que hoje fariam arrepiar qualquer entendido em segurança rodoviária.
Os momentos altos chegavam quando era preciso atravessar um curso de água com profundidade suficiente para exigir uma ponte. Dois troncos atravessados entre margens asseguravam a passagem e exigiam do condutor a capacidade de acertar e de se manter no rodado. A pontaria era, nestes casos, uma qualidade indispensável.
Ao volante, o meu pai anunciava que ia fazer pontaria e que precisávamos todos de fechar os olhos para acertar e passar para o outro lado. Acontecesse o que acontecesse, não olhar era a condição essencial para o sucesso da travessia. Nós, miúdas, soltávamos gritinhos de medo e excitação, que se transformavam em exclamações de alívio e alegria quando nos víamos do outro lado.
Um dia, curiosa, resolvi abrir os olhos e verificar se o meu pai também fechava os olhos quando atravessávamos a ponte. De facto, fechava e ria como se estivéssemos na vertigem de uma montanha russa. 
Nunca mais fechei os olhos quando passávamos uma ponte. Alguém tinha de garantir que a aventura corria como esperado. Mas nunca mais duvidei que uma fé cega é a melhor forma de garantir a pontaria.

quarta-feira, 18 de março de 2020

planos de fuga irracionais

"Mães e cobras" by MMF
A propósito de pragas e medos irracionais, recordo que a minha mãe sempre teve uma relação complicada com cobras. Lisboeta nada e criada, essa era uma parte da aventura africana que nunca a encantou.
Mas havia outras que despertavam nela aptidões insuspeitadas numa citadina que aos vinte e dois anos aterrara no mato profundo dos planaltos moçambicanos. Uma delas era a sua habilidade para fazer vingar qualquer tipo de planta, muito útil quando não há supermercados ou cadeias de distribuição num raio de muitos milhares de quilómetros e uma mesa de família para abastecer todos os dias.
Os jardins e as machambas (hortas) das casas por onde passavam eram sempre uma delícia, cheios de plantas ornamentais para todos os cantos da casa e hortícolas que abasteciam a nossa e muitas outras casas.
De manhã, a minha mãe vestia-se a rigor para cumprir as suas obrigações de fada verde do lar, com um bonito quico de lona na cabeça, uns óculos escuros dignos de vedeta de cinema e luvas para proteger as mãos (a vida social no mato era exigente, acreditem ou não). Saía para apanhar o que se servia à mesa do almoço e  do jantar, e o que havia de embelezar as jarras de casa.
Um dia, nesse seríssimo ritual matutino, equipada com um cesto de verga, tomou o caminho da machamba (horta) e foi directa às cenouras. Depois aos rabanetes e, já não me lembro o que ficava a meio caminho do que ia ser o resto da nossa salada e mais ou menos o meio dos canteiros, na ordem que ela determinava sempre para que tudo crescesse como devia.
Foi nesse momento que o rapaz que tinha a seu cargo as regas e outros cuidados, lhe gritou: "Senhora, cobra, senhora!"
Ninguém calcula o que uma mãe de família pode elevar-se no ar com um aviso intempestivo desta natureza. Nem, cenouras e outros hortícolas, mais a cestinha, tudo pelo ar, a velocidade que uma lisboeta consegue imprimir à sua fuga irracional de um animal rastejante.
O pior, no entanto, é que o rapaz, observando que cobra e senhora tinam optado por fugir na mesma direcção, voltou a gritar: "Aí, não! Para aí, não!"
Alerta e obedientes, a minha mãe e a cobra mudaram imediatamente de direcção. A mesma. Novo grito do rapaz voltou a alertá-las para o perigo e de novo corrigiram a rota, instintivamente, na mesma
direcção.
Só o desespero do rapaz, que entretanto alcançou a minha mãe e a conduziu pelo braço para fora da machamba, permitiu que a correria não acabasse em tragédia, para ela ou para a cobra. Unidas pelo pânico, ambas tinham posto em prática planos de fuga idênticos e aumentado o risco que corriam.
Depois desse incidente, e sem nenhuma vontade de arriscar a sua segurança pessoal em nome da salada, a minha mãe esperava pacientemente que alguém lhe garantisse que o caminho estava livre de cobras paniquentas que não sabiam aguardar a sua vez de passear pela frescura dos canteiros.

quarta-feira, 27 de março de 2019

ciclones da vida

MMF - "Moçambique 2019"

Os ciclones da nossa vida têm o condão de relevar o pior e o melhor em nós. Como a solidariedade exemplar por todos demonstrada na ajuda a Moçambique e a quem calhou a devastação do Idai. Há esperança, pensamos, quando a capacidade de correr em auxílio do outro se manifesta com esta grandeza.
O pior, no entanto, é esquecermo-nos de nós. O que aconteceu em Moçambique e noutros países é o que já está a acontecer em todo o mundo. A forma como tratamos o planeta que nos acolhe revela-se nestes desequilíbrios e manifestações de forças naturais.
De nada nos vale toda a tecnologia de ponta se não entendermos, de uma vez por todas que, sem árvores os nossos pulmões não funcionam, sem água não poluída não conseguimos manter qualidade de vida, sem respeito pelo solo que pisamos ele devolve-nos a violência a que o sujeitamos.
Esquecemo-nos, sobretudo, que para um Idai provocar tamanha devastação, o mal está feito e já comprometemos irremediavelmente o nosso futuro. E continuamos à espera que a delegação do poder nos outros, que já provou ser inadequada, nos salve miraculosamente.
Os ciclones não são avisos. São consequências. E na altura em que chegam é melhor que as nossas consciências se apurem e despertem de uma vez por todas. A bem das possíveis mudanças estratégicas de rumos, de formas de pensar e de viver.
O Idai não foi o único responsável pela catástrofe que se abateu sobre Moçambique. A falta de capacidade de ordenar o território e as populações, a ocupação desenfreada dos solos, o lixo e detritos acumulados, a falta de prevenção deram, ao longo de décadas, uma considerável ajuda aos seus efeitos.
Nada que não se passe em todas as outras regiões do planeta. Mesmo quando os governos consideram que têm tudo controlado. Até que um Idai se manifeste e mostre que não é apenas limpando o lixo das ruas nas cidades que se respeita a Natureza.
A prevenção começa em nós e no entendimento de que, mais um dia a usar desenfreadamente os recursos do planeta como se não houvesse amanhã, significa isso mesmo: inexistência de amanhã. Para nós. Porque a Natureza segue o seu curso e reequilibra-se, sem necessidade de nós para sobreviver. Aqui só estamos como hóspedes e toda a gente é capaz de imaginar o que acontece a quem não se porta bem em casa alheia.

terça-feira, 24 de março de 2015

absolutamente felizes

Melucha, Marita, Ana Margarida (foto: M.V. Moreno Ferreira - Vila Paiva de Andrade, Gorongosa)
Usamos o passado para calcular o futuro e, dessa forma, devíamos fixar-nos em momentos absolutamente felizes, como este, de uma infância vivida sem a pressão de memórias desagradáveis. Dessa forma não envenenávamos o presente e evitávamos o pavor de futuros que só desatinam na nossa cabeça.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

estradas de sol

Estrada I'bane/Barra (Moçambique, Setembro 2006)



Estradas de sol!
São feitas para mim,
são feitas, que eu sei.
Mas lá donde vim,
Não as encontrei.
Estradas de noite,
que não procurei!
Mas foi por estradas
da noite, isoladas,
que eu aqui cheguei.
Estradas de bruma
acaso as sonhei?
Para aqui chegar
quantos véus rasguei!


Natália Correia