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quinta-feira, 2 de maio de 2019

propósitos

"may fishy sea" by MMF
Por convicção, não me apetece ser um tubarão e ter de estar sempre a exibir força e predominância. É muito mais fácil e agradável ser um peixinho ao sabor da maré e levar a vida com mais leveza. Os tubarões têm de estar sempre a provar qualquer coisa e não têm o dom da descontração ou a capacidade de aceitar naturalmente o que o destino lhes reserva.
Essa coisa de imaginar um propósito maior e mais glorioso é um dos mais mortíferos preconceitos que existem. Perigoso e castrador. Não deixa espaço para gozar e admirar as coisas simples da vida. Estar por cá já é um propósito suficientemente grande e tudo o que surge a seguir são bónus múltiplos.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

que medo é esse afinal?

"Mundos" by MMF

Podemos dizer o que quisermos, teimar olhar para o Sol através de uma peneira, que a verdade é só uma: em conjunto não nos sentimos jamais capazes de ser livres. Fazemos o impossível para nos mostrarmos como os outros, inventar formas e mais formas de sermos exactamente o que os outros são, e de lhes agradar como se não existíssemos. 
Parecemos não saber como viver a nossa individualidade e, quando não são os outros a assaltar-nos com os seus julgamentos, é a culpa que nos impomos que nos amarga a existência. 
De que temos medo, afinal? De sermos fiéis a nós próprios? De deixar ir a dependência e de aproveitarmos de uma vez o que gostamos e somos, sem necessidade dos outros? Por que nos queixamos de solidão no meio de multidões? E por que não conseguimos perceber que o que nos falta é viver a nossa individualidade e que esse é o nosso derradeiro propósito?
Temos tempo para gozar a nossa unicidade a um outro nível, e desperdiçamos a liberdade desta vida, que nos permite passar por experiências únicas. No final, todas elas contribuem para o caldeirão comum, mas esta é a oportunidade real de que dispomos para desenvolvermos a nossa criatividade da forma que melhor nos serve.
Em vez disso, falhamos miseravelmente por nos impedirmos de pensar por nós próprios e atendermos às nossas verdadeiras necessidades. Que medo é esse, afinal, fantasia mórbida que nos paralisa, desanima e nos arrasta pela vida sem noção do ânimo que temos e nos recusamos a manifestar?

quarta-feira, 4 de abril de 2018

indignação e refilices


A indignação é uma coisa boa, quando não é simplesmente uma refilice só porque alguém põe um sapato dois centímetros para o lado que não é o do costume. A refilice é o mantra de quem anda aborrecido com alguma coisa e resolve despejar assim o saco.
Em vez de se utilizar em questões de fundo, como direitos e justiça, lógica e estabelecimento de limites, gasta-se habitualmente em manifestações menores de situações que não seguem as rotinas cegas que confundimos com a tranquilidade que nos é devida. 
A indignação também é uma arma de arremesso para quem tem um pendor especial para a manipulação das emoções alheias. 
O problema é que a maioria das indignações não é, na verdade, digna desse nome. São apenas resistências mal orientadas, com origem em preconceitos sem sentido.
Por exemplo, se alguém muda de opinião devido a um genuíno processo de correcção de pensamento, os habituais epípetos relacionados com a falta de carácter não se aplicam. Pelo contrário, transformam os seus produtores em reféns de um pensamento desajustado da realidade, ignorando a clareza de espírito elogiável que permitiu ao indivíduo evoluir de forma positiva no seu processo de entendimento do mundo e da sua constante transformação.
Não raro, inclusivamente, os enunciadores destas indignações são quem mais apregoa uma fidelidade inviolável a princípios e valores que, bem analisados, apontam por princípio para a sensatez do ajustamento ao evoluir das situações e da consciência.
Quando se deseja honestamente a mudança, para melhor, há que exibir coerência e aceitar que as suas medidas justas exigem flexibilidade para integrar novas soluções. Não há mérito algum em manter teimosamente as mesmas respostas a circunstâncias que não param de evoluir.
Haja a humildade de aceitar que a verdade está em aceitar que as velhas receitas têm de dar lugar a novas, sem medo de descartar certezas absolutas que se tornaram inadequadas.
O passado deixa-nos a memória e a aprendizagem das experiências, mas não a obrigatoriedade de aplicação das mesmas soluções para circunstâncias diferentes.
Antes da indignação devemos questionar os verdadeiros motivos que a provocam e convocar a abertura necessária para reconhecer e aceitar novas formas de pensamento e de acção. Sobretudo se reconhecemos a necessidade de mudança e transformação real.

sexta-feira, 9 de março de 2018

a liberdade do amor



Falemos hoje de amor. Não a baboseira romântica construída a partir dos contos de fadas ou do felizes para sempre. Ou da fragilidade que nos leva a procurar no outro uma metade, em vez de o entender como uma das muitas peças de um puzzle que continuamos a ignorar e a adiar como uma visão mais realista das nossas relações.
O que procuramos nos outros é uma partilha, uma comunhão, a confirmação de que fazemos parte de um todo indissolúvel. O que habitualmente estraga essa partilha de pares ou mesmo de grupos é a falta de consciência de que, na verdade, ninguém é dispensável no conjunto pela simples razão da riqueza que traz para cada um dos outros. No entanto, a ilusão criada pelo marketing dos amores e dos clubismos exploradores dos limites discriminatórios, tudo reduz a um campo minado de desilusões e fasquias impossíveis.
O amor destas linhas pertence a uma outra esfera. A da dimensão do que nos faz sentir bem, que nos enche de felicidade e esperança. É uma forma de estar que todos os dias sofre duros golpes face aos desinteressantes preconceitos associados ao que nos vendem como amor.
Falamos de escolhas que nos afastam do medo, da paralisação de imaginar o pior e não agir sobre o nosso acertado instinto. De perceber que os outros só nos ameaçam porque nos deixamos levar por todas as parvoíces que também nos martelam a cabeça.
Este amor é a coragem de agir, de acreditar que há sempre uma outra forma de ver as coisas e que, experimentando-a, se multiplicam as nossas hipóteses de acertar e colher os frutos de coisas diferentes.
Hoje, a escolha é a do conhecimento, a desse amor-consciência que nos energiza e transforma a nossa condição de bichinhos assustados na versão, muito mais interessante, de criaturas capazes de viver mais livremente o seu verdadeiro potencial.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

'Sexo Inútil', de Ana Zanatti: honestidade e senso comum

Capa da Sextante baseada numa obra de Tim Madeira e Ana Zanatti; fotografia da autora de Inácio Ludgero
A primeira razão para se ler O Sexo Inútil, de Ana Zanatti, é a facilidade com que se começa e acaba a leitura. Alguns livros, como este, têm o condão de nos manter suficientemente interessados para não descansarmos enquanto não chegamos ao fim. Não se assustem, pois, com o facto de ser um ensaio, e longo, porque se lê como um romance, embora não o seja. A autora é uma grande contadora de histórias e demonstra-o aqui muito bem.
A segunda é por ser um livro que se pode dar a ler a qualquer pessoa. Sem receio de chocar ninguém , porque tudo é dito muito directamente, mas sempre de forma muito correcta. "Apesar do meu fraco apelo por experiências radicais, a minha natureza que tende para a harmonia, a conciliação e a paz, perante a liberdade ameaçada reage explosivamente. Era assim e assim se mantém." (pp. 464), escreve a autora. A sua explosão surge, no entanto, da honestidade interiorizada, não da defesa que despoleta o ataque gratuito.
Ana Zanatti diz tudo o que deve ser dito, sem afrontar ninguém. Não se esquece de ver o outro lado e evita os julgamentos de valor que não passam também de preconceitos. E esta é a terceira razão para ler o seu livro.
Outra boa razão (quarta) para meter o nariz nesta não ficção é o facto de fazer um bom apanhado de todos acontecimentos que promoveram a visibilidade e os direitos lgbti em Portugal e lá fora, assim à laia de história muito breve. As notas são informativas, extensas q.b. e não perturbam a leitura. Além disso, a autora adiciona inúmeras referências a escritores e obras com excelentes contributos para alargar os nossos horizontes como leitores e como seres humanos interessados em fazer da vida uma experiência com sentido.
Depois, cada capítulo tem o título de um filme, o que nos obriga a pensar numa maratona cinéfila de livro na mão, a viajar pelas pequenas e grandes inspirações que deram origem a uma classificação desse tipo. Sugestivo e a adicionar como quinto motivo para se ler este livro.
O fio condutor de todo o trabalho é a longa troca de correspondência com uma jovem cujos problemas cativaram a atenção da autora. É fácil a identificação do leitor com inúmeras experiências de ambas. Mais fácil ainda se percebermos como determinadas posturas são comuns a todos nós e não se restringe ao âmbito da orientação sexual. Sexto motivo do interesse desta obra.
Por fim, destaque para a compaixão implícita nas suas quinhentas e muitas páginas. No sentido do amor pelo outro e por um honesto esforço para o entender. Na correspondência, nas entrevistas feitas com homossexuais e familiares, e nas reflexões da autora.
A mudança em nós não se dá sem o contributo dos outros e, só com essa transformação pessoal podemos almejar um comportamento diferente dos que nos rodeiam. A discriminação com base na orientação sexual é apenas mais um pretexto para conformar a nossa liberdade aos limites de crenças insensatas, que surgem de escassas ou inexistentes reflexões sobre o que pode ou não pode acontecer na nossa vida.
O sexo inútil é, por todas as razões acima, um livro útil para quem não se conforma e mantém dentro de si a noção que tudo pode ser melhor se amadurecermos ideias mais correctas sobre o que é realmente a nossa liberdade como indivíduos e como sociedade. Com honestidade e senso comum, como nos sugere Ana Zanatti.


segunda-feira, 5 de outubro de 2015

porcos, para que vos quero?

Pig by Adam Brett









O porco é um dos meus animais preferidos. Até gostava de ter um em casa, por achar que os são uma excelente companhia, além de muito inteligentes. Mas cheguei à conclusão de que já não me apetece viver paredes meias com quem não é capaz de tratar sozinho da sua higiene pessoal. Acredito que limpar a porcaria dos outros não é a minha missão pessoal. Além disso, como explicaria ao bichinho a carne de porco à alentejana?
Sem falar no facto de ter de aprender a grunhir em tempo recorde, para ter de estabelecer uma forma mais ou menos justa de comunicação. Não que espere que os porcos, cães, gatos, cavalos, galinhas ou periquitos façam o mesmo, pois o preconceito de ter de ser eu a estabelecer o elo mais justo entre nós é meu e não deles. Quem nasce burro acaba a pastar.
No fundo, o impulso do relacionamento é um furacão com artes de atracção quase inexplicáveis. Por que razão hei-de procurar uma relação com um porco, com contornos tão abaixo do que considero uma partilha equilibrada? E, no entanto, ela desenha-se como possível no momento em que ponho os olhos no bichinho.
O porco não é, claramente, o único objecto desta compulsão. Até uma inanimada caneca de café tem artes de me arrancar afeição. É mais do que apego e manifesta-se nas mais surpreendentes circunstâncias, até naquelas em que a lista de desvantagens se desenrola vertiginosamente na nossa cabeça no instante em que emerge essa urgência de contacto com o exterior.
Porcos, para que vos quero?
Só pode ser um bug, ou o vírus do plano divino, em que tudo está ligado e não temos outro remédio que o de aceitar que todos os porcos suscitam em nós empatia e uma sensação de pertença que vai bem além dos nossos preconceitos.
Venham de lá esses porcos...