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sexta-feira, 24 de abril de 2020

ataques dos diabos


Quando o diabo ataca não há santa que nos valha, nem deuses que nos acudam. O pior vem ao de cima, supostamente subido dos baixos que ninguém sabe exactamente onde ficam, mas não interessa. Mesmo não sendo nada racional ou cientificamente comprovado, toda a gente sabe que o Bem vem de cima e o Mal de baixo. Se bem que fosse de maior senso comum pressupor que tanto um como outro podem vir de qualquer lado e melhor seria estarmos preparados, não vá fugir-nos o bom e surpreender-nos o mau.
Como dizia, quando o diabo nos ataca, não há mal que não aconteça. Por acaso, isso até me lembra o anjo e o diabinho que nos dizem coisas ao ouvido. O primeiro é sempre ignorado e o segundo tentador. Acho que é mesmo porque acreditamos piamente que as maiores e melhores tentações só podem vir do Diabo, de bem que retratam os nossos mais íntimos sonhos e desejos. E o mais aborrecido, mesmo que correcto, vem do tal anjinho.
Isto somos nós a confessar que o diabrete que habita em nós é de facto o herói capaz de nos proporcionar as mais apetitosas aventuras. Até porque se a coisa der para o torto, sempre temos o anjinho e um Deus compassivo para nos acudir.
Portanto, quando o diabo ataca, na verdade somos nós que estamos com vontade de partir a louça toda, como se não houvesse amanhã. Até porque o perdão está sempre assegurado e podemos recorrer a ele sempre que as circunstâncias o determinarem.
Já o mal, senhoras e senhores, é uma zanga que trazemos connosco desde o pecado original, uma espécie de casa penhorada que herdamos naturalmente. Ou seja, a natureza deste mundo não nos é automaticamente favorável. Pelo menos na forma que nos habituamos a imaginá-la e que dita que o dever vem sempre antes do prazer. Aquele dever que jamais se esgota e nos esgota vinte e quatro horas por dia. 
Que tempo nos resta então para o prazer? O que é feito das coisas boas com que nos acena? Por que diabo nos traz dores de cabeça e culpas muito além das nossas capacidades, como se a condenação de Eva e de Adão fosse uma espada eternamente pendurada sobre as nossas cabeças?
É com certeza o Diabo que nos põe estas coisas na cabeça e nos condena. Porque Deus, bom e perfeito, não pondera sequer essas maluquices que tanto nos atormentam. O seu a seu dono então.
O pior é que, se os prazeres das tentações são todos do Belzebu, que raio andamos aqui todos a fazer, iludidos com frutos que nos estão proibidos e que quando estão ao alcance da mão, é só para nos queimar? Querem ver que andam para aí diabinhos a castigar-nos a seu bel prazer com pecados só por eles ditados?
Há coisas do Diabo, é o que tenho para vos dizer. Assim, o anjinho que temos em nós não vai lá, não senhora.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

venha o diabo

"escolhas"
Venha o diabo e escolha, assim como se a culpa fosse coisa exterior e nada tenha que ver com as decisões tomadas por cada um. O deus de dentro cede assim facilmente o lugar ao capeta, numa espécie de outing involuntário ou inconsciente do pior a que assistimos na vida. Logo a seguir venha a divindade de novo, redimida e santa, que em nada se assume no que a sua mão esquerda acciona. Divertido e fácil este jogo duplo em que tudo se separa no aceitável e na sua contrária. Sem qualquer preocupação em admitir a coexistência das duas forças opostas dentro de cada um. Nas regras desse jogo não há lugar para as pontes esclarecedoras da indiscutível necessidade de ambas faces da moeda. A obsessão em dividir tudo entre bom e mau cega a visão do caminho do meio e para a compreensão de que o mau está ali não como o diabo, mas como uma ferramenta para nos desembaraçar de soluções que não o são, simplesmente. Como a carta da morte que nos confronta com a necessidade de mudança e apenas se entende como tragédia e fim. Fim de um caminho, de um processo, mas não de tudo o resto. Há sempre mais entre a terra e o céu do que o olho abarca. A escolha da cegueira ligada ao ver para crer, quando de facto não se quer ver. A preguiça do medo, essa invenção que também colhe, como a gigantesca foice da morte. No final, nenhuma ameaça se mantém. O botão de reinício salva-nos sempre do inexistente fim, em transformações que se teima não entender. É tudo uma questão de perspectiva, de redireccionar o olhar. Venha, mais uma vez, o diabo e escolha, nessa parte em negação de cada um de nós.

sexta-feira, 1 de junho de 2012

rumores de um grão de areia

Não é o Apocalipse/Revelação, não são as fileiras redentoras do Quinto Império, nem a justiça de um qualquer deus de saco cheio de promessas por cumprir. É apenas a relação de causa e efeito do que tem vindo a acontecer nos últimos anos. Nem sequer é o triunfo das teorias da conspiração, que já há muito escapou do controlo e das mãos dos conspiradores. Essa é a beleza da imperfeição: nenhum sistema é seguro, porque uma única pessoa, uma única cabeça, uma única vontade pode acender um rastilho de incalculáveis proporções. E salvé, ó deusa eterna da imponderabilidade. O mundo é e sempre foi do grão de areia.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

qualquer dia...



Já não se pode dizer que se é ateu sem que nos caia metade do mundo em cima. Parece mal dizer ao vizinho do lado, que descobriu Jesus recentemente e foi miraculosamente atacado por uma surdez que o impede de ouvir outros argumentos que não os seus, que não se acredita em entes superiores. Também já não se diz nada quando, na rua ou numa loja qualquer, alguém de turbante ou com um cruxifixo ao peito aproveita para nos esfregar na cara todos os milagres e benesses de uma vida religiosa. Evita-se abrir a boca quando se sabe que alguém é deste ou daquele credo, sob pena de incorrer numa discussão malsã e indesejada, se a outra parte descobre que não pertencemos a nenhum credo, seita ou grupo evangélico. Já nem se contestam em voz alta a regressão dos direitos humanos a que se sujeitam as mulheres que aderem a cultos na esperança de assim preencherem um pouco mais as suas vidas já privadas de certas regalias.
Como é que se diz a uma pessoa religiosa, que o facto de ela aceitar um dogma não implica que toda a gente seja obrigada a fazer o mesmo? Como é que se explica que a palavra "não" tem o mesmo significado num caso de violação sexual e num de violação de direitos?
Como é que, de repente, por se ser religioso, se pode ser intolerante para todos quantos não o são?
Que deus mesquinho e mal disposto aponta para quem nasceu descrente de outras forças que não a sua e escreve pela mão de outros que esse ser humano deve ser perseguido e privado dos seus direitos essenciais, em nome de um punhado de religiões que riscaram a liberdade de expressão dos seus catecismos?
Que deuses serão estes que supostamente conduzem os seus fiéis a abusos de poder em seu nome e lhes dão carta branca para inomináveis atitudes que esses mesmos fiéis jamais aceitariam para si?
Que medo é este que se gera nos nossos dias quando alguém diz que não acredita na bondade desses deuses e é capaz de silenciar as mesmas vozes que defendem direitos e liberdades e conquistas sociais que tantos sacrifícios exigiram para se atingirem?
Por que é que ninguém diz que um escritor tem o direito de não acreditar num determinado deus e até de ter uma opinião sobre ele, sem que isso o torne numa vítima de quem dele discorda?
Porque, se a divindade se espelha nesta gente que a representa, então livrai-nos da salvação...