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sábado, 19 de março de 2022

o papá, a quarta mana e o anjo

 

Ana e Manuel, Vilanculos, 1961 (foto da Aida)

À quarta o parto foi em casa. Ordens do médico, Dr. Ribeiro, que percebia destas coisas e estava habituado a cozer dentadas de jacaré em bancadas de madeira no hospital local.
O prospectivo papá foi o parteiro designado. E contava a Aida que estavam de todo, ele e o Ribeiro, a garantir que, se fossem mulheres, nunca os apanhariam naqueles alhados.
Assim nasceu a Ana Margarida, Xuxu para a família. No Dia do Pai, que sempre foi especial para os dois. E para a Aida, que também merecia os mimos reservados às mães nestes dias.
Foi uma ocasião especial, pelo relatado e também porque houve uma assistência fora do vulgar. 
A dado momento, parturiente, médico e pai receberam a ajuda de uma mulher negra que se lhes juntou e ajudou a trazer ao mundo a Xuxu. Sabia o que fazia e tudo correu com a tranquilidade necessária nestas alturas.
Só que, depois do parto, a assistente desconhecida foi à sua vida e nunca mais se soube dela. O médico e os meus pais quiseram agradecer-lhe, mas ninguém sabia quem era. 
Nenhuma das pessoas que trabalhavam nessa altura connosco, a conhecia. Ninguém a tinha visto entrar ou sair. Não era conhecida qualquer mulher como a que os três descreviam, ali em casa ou na terra moçambicana do algodão e da pesca desportiva.
Assim foi o Dia do Pai e da quarta mana em Vilanculos, corrido o ano 1961. 



terça-feira, 8 de março de 2022

coisas de mulheres

 


Em tempos, Joan Baez deu um concerto em Cascais. Calhou-me entrevistá-la, depois de ter gasto várias agulhas no gira-discos a ouvir Diamonds and Rust. Levaram-me até à sala onde ela estava antes de começar o espectáculo, e levei uns minutos a olhar em volta, à procura dela. Nada. 
Não a via em lado nenhum e, de repente, lá estava ela, ao meu lado. Tive de olhar para baixo, eu que esperava uma mulheraça correspondente à voz e ao que imaginava dela. Respondeu a tudo que lhe perguntei com grande tranquilidade e despachou-me porque o concerto ia começar.
A plateia recebeu-a em euforia e logo aos primeiros acordes, a vozearia entusiástica do público levou-a a interromper a canção: Too much drinking, huh? Esperou que todos acalmassem e retomou o espectáculo com o respeito que lhe era devido.
Outra mulher para não medir aos palmos foi Maria Barroso. O seu trabalho de toda a vida devia ser mais estudado e divulgado. Para benefício de quem cresceu já na liberdade que ajudou a conquistar e ainda não entende a necessidade de manter a atenção e a acção nas coisas que importam. 
O talento que pôs em prática em tantas áreas essenciais mostra uma visão além do seu tempo. Havia que falar disso abertamente, com a coragem que nos deixou como exemplo. Até para elogiar é preciso ousar e encontrar uma expressão que não apouque.
Não percam a homenagem que lhe fazem hoje aqui e aqui, a partir das 18:00 horas. 
Conheci igualmente de muitas mulheres grandes, em tamanho e outros atributos. O problema é que não é possível contar num só dia a importância que tiveram na minha experiência desta vida.
Hoje fico-me por mais uma, a Aida, que também era pequena, corajosa e muito amada.

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

parabéns

Aidinha e Toca, 1958

Hoje seria dia de trazer um ramo de flores à Aidinha. E de comer com ela uma fatia de bolo de bolacha. De ver o sobrolho atento do Manuelzinho a vigiar a quantidade de açúcar que cada um engolia. Parabéns aos dois.

 


terça-feira, 2 de março de 2021

saudade imensa

 

Manuel e Aida, Dombe, 1956

A Aida partiu hoje. Para quem fica, a dor não tem dimensão. Mesmo sabendo que a sua, foi uma longa e bonita vida, na companhia de um amor que também durou pouco menos do que essa vida. O consolo não existe para quem conheceu os outros amores que cultivou. 
Hoje a Aida e o Manuel reencontraram-se nessa dimensão da vida que os nossos sentidos não apreendem. Fica a memória e a experiência que nos ofereceram, o ânimo e a seriedade com que sempre nos presentearam, a alegria que partilhavam até nos momentos mais sombrios.
E fica a saudade, imensa, inultrapassável.


sábado, 27 de fevereiro de 2021

oitenta e oito anos de amor

 

Aida e Manuel (Vilanculos, 1959)

Hoje a Aida faz anos (n. 27-02-1933). Há oitenta e oito, em Lisboa, numa noite de Carnaval, os médicos atiraram o bebé de cinco quilos para o canto, enquanto tratavam de salvar a mãe. Ao fim de umas horas de luta, terminada com êxito a tarefa, um deles olhou para a criança e comentou: "Que pena, um bebé tão bonito." E resolveu tentar reanimá-la.
A Aida não se fez rogada e acabou por chorar a anunciar que estava viva. Como hoje, ao fim de setenta e três dias de internamento com muitas agruras e percalços, vai festejar com uma filha e uma neta durante uns minutos.
Na foto está com o seu companheiro de sessenta e sete anos e meio, Manuel (n. 26-09-1925, m. 18-08-2017). Juntos tiveram cinco filhas, cinco netos e três bisnetos. Uma vida cheia de amor e peripécias, muitos e muitos amigos, sempre inspirados, apaixonados e prontos a acolher debaixo das suas asas mais alguém.
A Aida sempre foi a rocha segura sob os nossos pés. E continua a transmitir-nos coragem, alegria e determinação. Sem sombra de dúvida.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

a respeito do respeito

 

Aida (Dombe, Moçambique, 1956)

Hão-de reparar no pormenor do pedaço de madeira estrategicamente colocado à frente do pneu, para evitar deslocamentos desnecessários do jipe. Nada que hoje passasse numa inspecção, mas naquele tempo era a garantia de que os seus utilizadores não ficavam totalmente isolados a mais de duas centenas de quilómetros do lugar habitado mais próximo.
A jovem na fotografia é a minha mãe, Aida, aos 23 anos. Um ano antes tinha saído de Lisboa pela primeira vez para acompanhar o meu pai, Manuel, na sua carreira administrativa em Moçambique. O Dombe, no planalto de Manica, foi o primeiro posto que lhe foi atribuído. Meia dúzia de casas e uma estrada de acesso que chegava a ficar seis meses debaixo de água. 
Era preciso fazer rancho para sobreviver durante essa parte do ano, aguentar os tremores de terra e as trovoadas tropicais, entre outras manifestações naturais como o paludismo, o tifo, a cólera e outras maleitas de que não se chegava a conhecer um nome.
A Aida teve cinco filhas, montou e desmontou casa nove vezes em dezoito anos, conheceu Moçambique de Norte a Sul, protegeu a sua família, amigos e gente de quem mais ninguém queria saber. Também deu abrigo a toda espécie de animais, dos cães e gatos, aos jacarés e javalis, lagartixas e outras criaturas menos vulgares.
Foi sempre a aglutinadora das relações, a pessoa a quem se recorria para estabelecer a ordem e as regras colectivas. Garantiu ajuda e conselhos, reconciliações e festas de família para todas as almas solitárias.
Hoje, quase a completar o seu 88º aniversário, está no hospital onde entrou para ser cuidada e acabou por ser infectada pelo SARS-CoV-2. Isolada da família, é mais um número para as estatísticas. E as informações sobre o seu estado começam muitas vezes com uma referência de toada fadista à sua idade.
Como se quem a ela se refere soubesse a vida recheada e de grandes histórias de sobrevivência por que passou. Como se tudo agora se resumisse a um corpo frágil que precisa de ajuda para se manter.
Sei que dentro desse corpo que resiste está a Aida que quem ama conhece, ainda a guardar a memória que nos alimenta a todos. 
Um povo sem memória não aprende, não beneficia da experiência que tantas vidas cheias transmitem. Nem se dignifica no desprezo pelo imenso contributo que os mais velhos já asseguraram para a vida e a sociedade das novas gerações.
A Aida educou os seus para não esquecer e observar em todos as mesmas e devidas necessidades. E para oferecermos a nossa voz para a defesa dos que não têm quem os defenda. 
Esperemos, por isso, que este relato sirva para nos lembrar que, na saúde e na doença, ninguém perde os seus direitos nem o respeito devido. E é justamente nas crises que isso deve ser assegurado até ao limite de todas as possibilidades. A idade não pode ser um argumento discriminatório para os mais velhos, como já não o é para os mais novos. 
A Aida não precisou que um Estado ou uma religião ou uma ideologia a ensinassem a observar valores humanistas. Sempre tratou todos com o maior respeito. Nem dispensou jamais o respeito pelos que não o manifestavam por ela.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

as flores da aida


São coisas familiares, essas da terra revolvida e regada que cheira a chuva, das saquetas de papel com sementes, das canas para segurar os pés mais frágeis, dos vasos espalhados por todo o lado e das regas ao final da tarde. São as plantas e as flores da Aida, que sempre gostou de pegar em folhas e hastezinhas para as transformar em plantas e flores viçosas. Ainda ontem me mostrou esta (a da fotografia), mais um dos resultados do seu "dedo verde", que é, como dizem os ingleses, o jeito ou dom para as plantas e para os jardins.
É assim a Aida, no meio dos seus vasos e das lagartixas e osgas a quem também vai dando abrigo. Houve tempos em que teve como companheira uma fiel lagartixa que vivia na máquina da costura.
Se quisesse esboçar-vos uma imagem dela, seria com certeza no meio das plantas e dos animais que tem resgatado a vida inteira, pedacinhos deste mundo a que ninguém mais liga e a que ela restitui vida e significado.
Pensar na Aida é assim como pensar numa mãe de tudo e todos, sempre rodeada de uma aura recheada pelo espírito de tudo e todos quantos foi pondo debaixo da sua asa.