Há sons que chegam como as trombetas do Apocalipse. Fazem-se ouvir uma vida inteira, mas o hábito de os ter sempre presentes torna-nos incapazes de os ouvir. Quando começam a destacar-se dos outros sons entendem-se como ruído, porque a percepção precede normalmente a consciência da sua existência.
O processo de ouvir tem, como tudo, uma receita gradual e com tempos certos, como uma sinfonia estruturada, mesmo exibindo de início falta de um fio condutor.
Os sons começam por surgir como escolhos, na corrente vertiginosa que compõe as coisas desta vida. Requerem alguma atenção, mas nada que faça sentido e, portanto, são peças descartáveis num puzzle que não apetece pôr em ordem.
Quando atingem um número assinalável de ocorrências, é impossível ignorá-los. Mas pode sempre ignorar-se o sentido que eventualmente possam fazer. O resultado é uma inquietação crescente, como uma dor que aumenta sem ser devidamente cuidada. Os ouvintes desatentos acabam por se ressentir do que para eles é um ruído intrusivo e de código desconhecido.
Os ouvidos físicos estão viciados noutros sons, que fazem grande sentido na ordem habitual das coisas. Quando se começam a ouvir os sons que implicam outras ordens, é como se de uma infecção se tratasse e devêssemos atacá-la com muitos antibióticos.
O problema é que não existem pílulas milagrosas para silenciar os ouvidos que despertam para sons de outra ordem. Há que aprender a entender e a usar em nosso proveito essa nova forma de ouvir. Aceitar que somos ouvintes mais complexos e mais conscientes.
Só então ganham sentido essas trombetas reveladoras. Afinal, o caos deste mundo tomou forma através do verbo divino e qualquer ouvinte deveria sentir-se lisonjeado com o que é, de facto, uma epifania.