sexta-feira, 7 de abril de 2023

as mamocas da tap

 

by MMF

Há coisas em que ninguém pensa. Ou não tem tempo para pensar. Ou que não imaginamos que possam ocorrer na nossa pacata vidinha de gente comum.
Acontece que nunca é bem assim e as coisas vêm ter connosco mesmo que acreditemos que controlamos a maior fatia do que fazemos.
Neste caso, a experiência dessa incómoda verdade passou-se há uns dias a bordo de um avião da TAP, daqueles que têm ecrãs nas costas da cadeira da frente, com umas fitas para nos distrair nos voos mais longos.
Escolhi uma dessas sem grande trama, com motas e acrobacias diversas, adequado à semi-sonolência do Zirtec tomado para não passar todo o voo com falta de ar e a pensar nos germes atrevidos dos espaços fechados.
Tudo ia bem até ser despertada por um daqueles anúncios da tripulação, a lembrar que a turbulência existe e que está tudo bem mas, pelo sim, pelo não, convém que nos agarremos com unhas e dentes ao cinto de segurança, não vá a coisa correr mal logo em cima do Mediterrâneo.
Tudo continuaria bem se alguém se tivesse lembrado que os ditos anúncios congelam o ecrã e a cena dos filmes durante uns segundos, mesmo após a comunicação.
O meu congelou numa cena em que um dos protagonistas da fita estava a ter uma escalada hormonal numa conversa virtual com uma prospectiva parceira de aventuras de quarto de hotel de beira de estrada, exactamente no momento em ela lhe mandava imagens do seu belo par de avantajadas mamocas. O som, felizmente, também congela.
Esfumou-se o alarme de qualquer possível desastre aéreo capaz de fazer amarar uma aeronave da TAP no Mediterrâneo. Outro muito maior tomou o seu lugar. Um par de mamocas congeladas na têvê, visíveis para uma boa parte dos passageiros que viajavam nos assentos atrás do meu.
A indecência entre adultos no mesmo comprimento de onda não é uma coisa que me moleste. Mas o voo vinha de Israel, com famílias inteiras de judeus ortodoxos preparados para uma semana diferente este ano, de santa comunhão entre a passagem e a páscoa de dois cultos irmãos.
Por isso aqui fica um singelo e honesto comentário para a nossa transportadora aérea: Not so kosher, guys.


segunda-feira, 31 de outubro de 2022

a mangueira

 

Imagem: Marinka

A atestar a capacidade de difusão de informação nas pequenas terras que nunca dispuseram de jornais locais ou outras mordomias associadas a estatutos mais desenvolvidos, chegou-me o elucidativo relato que se segue.
O local da comunicação foi o cabeleireiro de uma vila alentejana já com arejadas aspirações citadinas, e o seu autor um frequentador assíduo e desempoeirado da pedicura.
Honrando os hábitos da boa convivência, a senhora que o atendeu foi logo dizendo ao homem que o tinha visto com a filha, que estava uma mulher, lindíssima.
Não é a minha filha. É a minha namorada, corrigiu o cliente, com um toquezinho de orgulho na voz.
Seguiram-se os parabéns e os elogios à nova companheira do senhor, que não se furtou aos detalhes e adiantou que a tinha descoberto numa dessas páginas de encontros. Uma deusa brasileira que se tinha encantado com ele e voado para Portugal com armas e bagagens para se dedicar ao seu novo amor.
Olha que sorte, consideraram as outras frequentadoras do cabeleireiro, confirmado o bom aspecto da companheira pela pedicura.
Assim seguiu a história até à seguinte sessão no salão de beleza local. Como de costume, o cavalheiro entregou-se aos cuidados profissionais da mesma senhora. A páginas tantas, lá chega a pergunta sobre a namorada de bom aspecto.
Ah, sabe lá, começou o homem. E para quem o quis ouvir, entre cortes, penteados e outros cuidados, foi contando que, chegado o momento da verdade, a jovem namorada se preparou com todo o requinte para a noite de amor. E qual não é a surpresa do cavalheiro quando descobre que a jovem era, afinal, provida dos mesmos atributos que ele.
Não queira saber, desabafa com a pedicura e restante assistência. Aquilo era uma mangueira, afirmou. Ela bem quis que eu pusesse lá a boca, mas não consegui. Até me engasguei e nem gosto daquilo.
Passado um momento de profundo silêncio, o cavalheiro lá conseguiu explicar que, felizmente, a noiva se tinha encantado com outro homem de posição do Porto e abalado para Norte com a mesma rapidez com que chegara ao Alentejo.
Assimse constrói uma 'caxa' jornalística de qualidade na ronda pelas notícias locais.


segunda-feira, 30 de maio de 2022

aprendizagens

 

"A idade da muchém" by MMF

Em tempos não muito distantes, a razão para haver armas em casa era a mais básica sobrevivência.
Durante a minha infância em Moçambique, em locais mais remotos do que pareciam à primeira vista, as caçadas serviam para fornecer carne para casa e para quem, nas aldeias, não tinha possibilidade de a arranjar de outra forma.
Quando a necessidade apertava, lá se organizava uma saída nocturna para prover as despensas e suprir a fala de abastecimentos que hoje se têm por garantidos.
O meu pai, apesar de só ter filhas, achava que fazia parte da nossa educação enfiar-nos na cabine do land rover à noite e participar da tarefa de matar para comer. 
Numa dessas saídas, já de madrugada, quando o grupo de pisteiros e caçadores achou que a caixa já tinha peças suficientes para prover a todos, parámos para fazer um matabicho ligeiro antes de regressar a casa.
Tinha passado a noite a tentar manter-me acordada e esticar as pernas fazia bem a toda a gente. O ar fresco até me espevitou e lembrou que era a ocasião ideal para pedir para dar uns tiros, quando já ninguém ia precisar das armas para caçar. E lá fui eu pedir ao meu pai para disparar.
A resposta imediata foi um não redondo. Aquilo não me caiu bem e, numa bela birra de sono, fiz o que fazem todas as crianças. Repeti o pedido como um mantra, decidida a dar acbo da paciência a toda a gente até conseguir o que queria.
"Queres mesmo atirar?", perguntou o meu pai. Claro que sim. Estavam todos a olhar para mim. Não queria dar parte fraca. Afinal, já tinha sete anos e a possibilidade de pegar numa espingarda despertou-me como se estivesse a beber do termo do café, em vez do de água.
O meu pai pediu que lhe passassem a .22, a espingarda mais pequena que tinham trazido. Olhou em volta, descobriu um morrozinho de muchém e disse-me para me pôr em cima dele, para ver se via melhor a árvore em que queria que acertasse.
Obedeci, deliciada. Equilibrei-me bem em cima do monte de terra e recebi a espingarda do meu pai, que me ajudou a segurá-la correctamente. Indicou o alvo e apontei o melhor que podia. Disparei e o ressalto da espingarda atirou-me ao chão.
Foi uma festa. Caçadores e pisteiros correram a levantar-me. Sacudiram-me a roupa, riam e cumprimentavam-me ao mesmo tempo.
O meu pai apanhou a arma e concluiu: "Ainda não tens idade para atirar."
Fui recambiada para a cabina, vermelha que nem um tomate. Não dei parte fraca, embora tivesse caído a dormir durante todo o caminho de regresso.
Lição aprendida: nunca atirar de um morro de muchém, nem achar que uma birra serve para mais do que uma humilhação merecida.

(A propósito de armas e outras irracionalidades.)

terça-feira, 22 de março de 2022

assim não dá

"Xuba" by MMF

Queria regar as plantas, mas ainda não consegui. Assim não dá. Planeia-se uma coisa boa e, na altura de a pôr em prática, a vida antecipa-se. Impossível acumular créditos desta maneira.
Faz lembrar aquela vez em que um bando de legítimos indignados quis denunciar as terríveis condições em que sobreviviam cães e gatos numa associação camarária que os abrigava. Juntei as queixas num relatório, passei-as à comissão municipal respectiva. Marcou-se uma visita dos deputados locais para verificar em que condições estavam os animais.
Logo de seguida, outro telefonema: já lá andavam os buldozers e os obreiros da Câmara a fazer o que era preciso e, quando lá fossem os representantes da assembleia, não haveria queixas para constatar.
Tenho a certeza que os cachorros e os felinos se sentiram exactamente como eu hoje. Impotentes face à vida que segue.
Há que esclarecer estes processos, que nos esforçamos tanto para pôr em prática e, de repente, vem uma rabanada de qualquer lado e temos de voltar para o cadeirão, sem mais para nos entreter que as telenovelas noticiosas que o jornalismo dos nossos dias se esforça tanto para nos servir à hora das refeições.
Já Calimero dizia que era uma injustiça.

sábado, 19 de março de 2022

o papá, a quarta mana e o anjo

 

Ana e Manuel, Vilanculos, 1961 (foto da Aida)

À quarta o parto foi em casa. Ordens do médico, Dr. Ribeiro, que percebia destas coisas e estava habituado a cozer dentadas de jacaré em bancadas de madeira no hospital local.
O prospectivo papá foi o parteiro designado. E contava a Aida que estavam de todo, ele e o Ribeiro, a garantir que, se fossem mulheres, nunca os apanhariam naqueles alhados.
Assim nasceu a Ana Margarida, Xuxu para a família. No Dia do Pai, que sempre foi especial para os dois. E para a Aida, que também merecia os mimos reservados às mães nestes dias.
Foi uma ocasião especial, pelo relatado e também porque houve uma assistência fora do vulgar. 
A dado momento, parturiente, médico e pai receberam a ajuda de uma mulher negra que se lhes juntou e ajudou a trazer ao mundo a Xuxu. Sabia o que fazia e tudo correu com a tranquilidade necessária nestas alturas.
Só que, depois do parto, a assistente desconhecida foi à sua vida e nunca mais se soube dela. O médico e os meus pais quiseram agradecer-lhe, mas ninguém sabia quem era. 
Nenhuma das pessoas que trabalhavam nessa altura connosco, a conhecia. Ninguém a tinha visto entrar ou sair. Não era conhecida qualquer mulher como a que os três descreviam, ali em casa ou na terra moçambicana do algodão e da pesca desportiva.
Assim foi o Dia do Pai e da quarta mana em Vilanculos, corrido o ano 1961. 



terça-feira, 8 de março de 2022

coisas de mulheres

 


Em tempos, Joan Baez deu um concerto em Cascais. Calhou-me entrevistá-la, depois de ter gasto várias agulhas no gira-discos a ouvir Diamonds and Rust. Levaram-me até à sala onde ela estava antes de começar o espectáculo, e levei uns minutos a olhar em volta, à procura dela. Nada. 
Não a via em lado nenhum e, de repente, lá estava ela, ao meu lado. Tive de olhar para baixo, eu que esperava uma mulheraça correspondente à voz e ao que imaginava dela. Respondeu a tudo que lhe perguntei com grande tranquilidade e despachou-me porque o concerto ia começar.
A plateia recebeu-a em euforia e logo aos primeiros acordes, a vozearia entusiástica do público levou-a a interromper a canção: Too much drinking, huh? Esperou que todos acalmassem e retomou o espectáculo com o respeito que lhe era devido.
Outra mulher para não medir aos palmos foi Maria Barroso. O seu trabalho de toda a vida devia ser mais estudado e divulgado. Para benefício de quem cresceu já na liberdade que ajudou a conquistar e ainda não entende a necessidade de manter a atenção e a acção nas coisas que importam. 
O talento que pôs em prática em tantas áreas essenciais mostra uma visão além do seu tempo. Havia que falar disso abertamente, com a coragem que nos deixou como exemplo. Até para elogiar é preciso ousar e encontrar uma expressão que não apouque.
Não percam a homenagem que lhe fazem hoje aqui e aqui, a partir das 18:00 horas. 
Conheci igualmente de muitas mulheres grandes, em tamanho e outros atributos. O problema é que não é possível contar num só dia a importância que tiveram na minha experiência desta vida.
Hoje fico-me por mais uma, a Aida, que também era pequena, corajosa e muito amada.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

memória

 

Marcelo, Mimi, Manuel, Maria Amélia, Marita, António Luís, Luís e Marieta

Partiu ontem a mais nova dos manos Moreno Ferreira, Marita. Habituaram-nos mal, estes brigantinos de vidas longas e preenchidas.
Ofereceram-nos mundos que aprendemos a admirar e, agora, vão fazer-nos todos muita falta, nesta dimensão em que apenas podemos ter deles a companhia da memória.
Ceramista e aguarelista emérita, Marita Ferro, como era conhecida, foi buscar o dom para as artes à mãe, Maria Amélia, professora e pintora notável. 



sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

outros natais

 

Muchi (mana mais velha), Aida Mãe e MMF

Alguns dias antes do Natal de 1966 fui convocada pela Mãe Aida para uma conversa entre as três mulheres mais velhas da família. Ela, a mana mais velha e eu. Pressenti a seriedade do assunto, uma vez que não tinha ouvido nenhum dos habituais pára quieta!, esta miúda vai dar connosco em doidos, onde é que estavas?, o que estavas a fazer?
Reunimos no quarto dos meus pais, o que aumentou a minha apreensão, porque era território interdito às crianças, entre as quais me contava.
Após um momento de silêncio e à porta fechada, a Mãe Aida revelou o motivo da convocatória: tinha nove anos feitos e, portanto, idade para ajudar nos preparativos do Natal, que davam muitíssimo trabalho.
Ainda pensei que me iam pôr ao lado do cozinheiro, onde eventualmente me calharia a tarefa de lamber tachos e panelas, ou rapinar um frito acabado de fazer. Mas não. A tarefa ia bem além da estreiteza dos meus sonhos.
O passo seguinte foi abrir as portas dos armários e retirar de lá as dúzias de presentes que precisavam de ser embrulhados e marcados com os nomes dos felizes contemplados. 
Garanto-vos: o meu coração deixou de bater durante um tempo que não posso quantificar, porque fiquei paralisada. Acabava de descobrir que o Pai Natal deixava tudo naqueles preparos para depois nos desenvencilharmos sozinhos. Foi um choque indescritível.
A minha mãe tinha, felizmente, tudo preparado. Uma lista de quem ia receber os presentes, caneta para ir riscando quem já estava despachado, papel de embrulho, fitas, tesoura, fita-cola e cartões natalícios.
Confesso que fiquei bastante desapontada com aquela bagunça do velhinho do trenó e dos sininhos, que nos obrigava a ter um trabalho do tamanho do monte de prendas que enchia o quarto. 
Por outro lado, percebi que era importante aquela responsabilidade que me confiavam. Logo eu que era, das cinco manas, a que tinha pelo menos uma asneira diária para ser relatada à mesa do almoço ou do jantar.
Cumpri a minha parte da tarefa com energia e, quando acabámos, lembrei-me de que não tinha embrulhado nenhum presente para mim. Perguntei por eles. Em vez de me responder, a minha mãe deu a tarefa por terminada e correu connosco do quarto.
Será que o Pai Natal se esqueceu de mim?
A mana Muchi virou-se para mim: Ainda não percebeste que não há nenhum Pai Natal? E seguiu, despachada, para as suas coisas.
O meu coração voltou a congelar. Nem sequer sabia que isso era possível, quanto mais que o Pai Natal não existia.
No dia seguinte fomos todas para a árvore de Natal abrir as prendas. As minhas também estavam lá. Reparei que a Muchi abria as dela com a mesma algazarra das outras manas. Não sei como conseguia. Eu tive de guardar o Pai Natal dentro da minha cabeça para continuar a sentir o que sentia antes daquele ano desmancha-prazeres.

Pai Manuel a avaliar as hipóteses de reparação
do matope das picadas moçambicanas

O nosso Pai Natal, Manuel, ficava às vezes atascado no meio do mato e muito contrariado por não conseguir chegar a tempo de embrulhar as prendas com a Aidinha. Acho que foi por isso que me escalaram para fazer as honras da versão desleixada do Santo Nicolau e dos seus elfos.







quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

dias da mãe

"Day of the Angels" by MMF

Acabei de confirmar com a mana mais velha que hoje é feriado. Trabalhar em casa às vezes tem destas  coisas. Logo hoje, que tinha como agenda tratar de uma mão cheia de obrigações dos dias úteis. Não que este seja inútil.
É dia da mãe, lembrou a mana, com uma pinga de tom de ralho. Dia de Nossa Senhora da Ascensão.
Está bem, está bem. Troco a Ascensão com a Conceição. Mas faz sentido que a Conceição ascenda. Como todas as mães. Como a Aidinha, minha mãe, que queria continuar a ser lembrada no dia da Mãe em Maio, porque estava habituada ao dia 8 de Dezembro. E depois amuava se não lhe dávamos também um beijo nessa data.
Portanto, cá vai um beijo para ela, que gostava tanto destes beijos de lembranças.
E para todas as mães adoradas que ascendem.



⎼⎼

Mais um ralho: 
Vai lá emendar o teu texto porque ainda pensam que fui eu que te disse que era dia da Nossa Senhora da Ascensão
Pronto, estou aqui a retratar-me: a mana tem razão, troquei as santas, mas não me arrependo nada de as ter posto no altar que venero. O das mães. O das santas que são todas mães, de uma ou de outra forma. A Santa Conceição que me perdoe, pronto. Espero ter aprendido o suficiente para não voltar a tentar pôr outra santa no seu lugar. 
Confesso que esta multiplicação muito interessante dos nomes das santas me encanta. Faz-me lembrar o múltiplo papel de todas as mães. E das mulheres que, mesmo não sendo mães, partilham a mesma forma de estar. 

sexta-feira, 26 de novembro de 2021

a propósito de bruxas

 

"Balelize III" by Marita Moreno Ferreira (acrylic on canvas, 100x100 cm)


A propósito de bruxas há que dizer: quem, no seu perfeito juízo, perseguiria gente tão conhecedora de factos e segredos, de mistérios que são úteis a todos? A Inquisição, que era uma espécie de polícia de costumes da Igreja, ou o braço armado dela, depois de ter dado cabo dos Templários e outros tentáculos que caíram em desuso ou em desgraça completa, tentou acabar com elas. E com todas as mulheres que insistiam em ser livres.
Não parece ter conseguido, porque as bruxas são como as beldroegas. Quando damos por elas, já se espalharam pelos vasos, canteiros, campos. Não há como as conter, a não ser com um novo olhar sobre elas: são gente resistente, esperta, cheia de saberes e têm um riso incontrolável. Como não as admirar?
A minha família, por exemplo, que tem um número exageradíssimo de mulheres, é sem dúvida um caldeirão de multiplicação de bruxas. A começar pelo feitio: não se pode falar com nenhuma das mulheres desta família sem ter em conta o mau feitio desgraçado de uma, de outra, enfim... De todas.
A explicação para o mau feitio parece estar no tempo gasto em considerações pré-bruxedos. Do género: pequenos-almoços mágicos interrompidos que perdem qualquer poder com o aparecimento e a intervenção de estranhos.
Outro exemplo: mentiras, estúpidos actos de abuso de poder e todas as faltas de respeito na escolha dos alimentos perfeitos para cada ocasião ocasionam ralhos que nunca mais acabam. O motivo: nenhuma bruxa se contenta com menos daquilo a que tem ou temos todos direito. Não há uma que consiga entender uma escolha limitada quando a totalidade é que deve ser mandatoriamente gozada.
Bruxas são gente inteira e não pelos olhos verdes penetrantes, ou os gatos pretos que não lhes largam o colo, ou os corvos que as acompanham pela vida fora. Também há disso e vassouras em modelos para todas as necessidades. Mas nada disso se compara ao que elas são, de verdade.
Forças naturais deste mundo, não reagem nada bem quando contrariadas. Como vulcões, têm de expelir lava quente e fumaceiras diversas para mostrar que estão zangadas e que não há necessidade de tentar evitar as magníficas correntes de força que são capazes de criar.
E se acham que só se vestem de negro e praticam as suas artes em caves escuras ou torres só frequentadas por aranhas e morcegos, tirem daí o sentido.
As mais perigosas e ladinas são as que parecem anjos e irradiam luz e se divertem a confundir as percepções de quem apenas acredita que vive como um mero mortal. As partidas que pregam aos ingénuos só servem para os desenganar e tentar mostrar-lhes o caminhos direitos.
O que acontece é que há muitos fabricantes maliciosos de bússolas imprestáveis que recheiam as suas vidas de bens venais contribuindo com indicações infelizes para quem quer mais do que os olhos vêem entre os céus e a terra.
Esses ratos, que se escondem dos caldeirões das bruxas, não aprendem grande coisa, mesmo quando lhes espreitam as práticas. Porque, como bem se sabe, os ratos não vêem grande coisa e têm de usar a barriguinha para contar os seus parcos benefícios. E quando não podem comer, desdenham as coisas de maior qualidade.
É uma história triste, a dos ratos cegos e a precisar de encher a barriguinha. Mas essa fica para outras récitas.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

amália, amália e amália

 

"Tragédia" by Rui Aço

Amor a sério e de verdade ama bom e mau, alegrias e tristezas, dúvidas e certezas.
Quem ama Amália faz disso fado, ligeiro, alegre ou brejeiro, triste ou inconformado, pujante ou descontente. Como deve ser a vida e quem dela participa e não espera por ninguém para fazer o que tem de ser feito.
Assim dito, quem pinta Amália busca todas as suas facetas, como faz Rui Aço nesta exposição que vai abrir com oito trabalhos no próximo dia 23 na Galeria de Arte do Aroeira Lisbon Hotel, na Charneca da Caparica.
De Rui Aço já admiro há muito a crescente intensidade com que aborda a tela ou o papel, e a transforma num passeio determinado, alegre e desinteressado dos conceitos sociais que travam e calam a criatividade.
Em "Amália, Sísifo e Eu... Ou a Existência em busca da Essência", desce a Rainha, ou Santa, do seu pedestal e segue, com ela pela mão, pelo carreiro tortuoso da sua outra vida, a real. 
Não lhe oferece ramos de flores ou palmas, mas desenha e dá cor aos momentos que a tornaram humana e tão capaz de entender a verdadeira alma do fado. Amália é grande, mesmo na tragédia que a podia ter engolido como a tantos outros, nos implacáveis arbítrios da vida.
Neste conjunto muito belo, e também muito divertido, sobre Amália e os fados do pintor, há ousadia e despudor. E há, sobretudo, vontade de arrasar os lugares comuns que se apoderaram da sua imagem.
Rui Aço não oferece guitarras bonitinhas, nem perfis da fadista a erguer a voz aos céus. Anda com ela pela sopa da pedra que é a vida e as suas facetas menos celebradas.
O resultado é, sem dúvida, uma Amália que cede a todos os seus impulsos por também serem da sua vontade. Que nos momentos mais negros encontra coragem para renascer e fazer ecoar a sua voz na mesma frequência do que atormenta todos os mortais.
Aço poderia ter pintado mil detalhes da vida desta mulher que, como um arquétipo, representa parte da vida de todos, aqui e além mar. Mas escolheu oito, que é um número perfeito, das oito virtudes que se conquistam com o trabalho correcto. 
Amália, curiosamente, deriva de amal (trabalho). E estes trabalhos de Rui Aço são, sem dúvida, uma conquista e uma oferta exuberante que faz à diva. Viva!

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

parabéns

Aidinha e Toca, 1958

Hoje seria dia de trazer um ramo de flores à Aidinha. E de comer com ela uma fatia de bolo de bolacha. De ver o sobrolho atento do Manuelzinho a vigiar a quantidade de açúcar que cada um engolia. Parabéns aos dois.

 


segunda-feira, 3 de maio de 2021

maio doce maio

 

"Maio doce Maio" by MMF

Há meses com uma grande força, que ainda assim conseguem transmitir leveza, como é o caso de Maio. Luminoso, quente e também suave nas suas nuances. Como uma vitamina a multiplicar esperanças.

domingo, 25 de abril de 2021

abril justo

 

"Abril Justo" by MMF

Devíamos estar todos sentados na relva, num parque, a sentir uma brisa calma e a fruir os benefícios da Revolução de Abril. A navegar suavemente nas benevolências da democracia e da justiça para todos. E a sentirmo-nos felizes como quando realizamos uma paixão.
Em vez disso angustiamo-nos com a possibilidade de alguns fazerem mau uso da liberdade e, à boa maneira dos porcos triunfantes, aproveitarem para reivindicar a razão da força para os seus desejos menos idílicos.
Em defesa dos factos, a escolha e a capacidade de alterar a realidade a que agora assistimos como um desfecho possível e indesejável, é a mesma que permitiu Abril de 74 e a mudança significativa nas nossas vidas desde então.
O sistema é justo e funciona para qualquer lado. Os sonhadores devem contemplar simplesmente a possibilidade de agir bastante mais em prol da manutenção das suas adoradas utopias. Sonhos vigilantes e concretizados no dia-a-dia deixam menos espaço a pesadelos totalitários.
Ter por garantida a felicidade é não entender nada da natureza das coisas. É como não abrir o guarda-chuva durante as primeiras gotas da tempestade.
Este mundo é um calvário de trabalhos e é preciso aprender a gozar as alegrias da participação activa nos sonhos. Acabar o dia com a satisfação de o ter passado a depositar mais um tijolo na fundação certa é a garantia de que o amanhã nunca nos parecerá desanimador.
Viva Abril e a sua justiça.

terça-feira, 2 de março de 2021

saudade imensa

 

Manuel e Aida, Dombe, 1956

A Aida partiu hoje. Para quem fica, a dor não tem dimensão. Mesmo sabendo que a sua, foi uma longa e bonita vida, na companhia de um amor que também durou pouco menos do que essa vida. O consolo não existe para quem conheceu os outros amores que cultivou. 
Hoje a Aida e o Manuel reencontraram-se nessa dimensão da vida que os nossos sentidos não apreendem. Fica a memória e a experiência que nos ofereceram, o ânimo e a seriedade com que sempre nos presentearam, a alegria que partilhavam até nos momentos mais sombrios.
E fica a saudade, imensa, inultrapassável.


sábado, 27 de fevereiro de 2021

oitenta e oito anos de amor

 

Aida e Manuel (Vilanculos, 1959)

Hoje a Aida faz anos (n. 27-02-1933). Há oitenta e oito, em Lisboa, numa noite de Carnaval, os médicos atiraram o bebé de cinco quilos para o canto, enquanto tratavam de salvar a mãe. Ao fim de umas horas de luta, terminada com êxito a tarefa, um deles olhou para a criança e comentou: "Que pena, um bebé tão bonito." E resolveu tentar reanimá-la.
A Aida não se fez rogada e acabou por chorar a anunciar que estava viva. Como hoje, ao fim de setenta e três dias de internamento com muitas agruras e percalços, vai festejar com uma filha e uma neta durante uns minutos.
Na foto está com o seu companheiro de sessenta e sete anos e meio, Manuel (n. 26-09-1925, m. 18-08-2017). Juntos tiveram cinco filhas, cinco netos e três bisnetos. Uma vida cheia de amor e peripécias, muitos e muitos amigos, sempre inspirados, apaixonados e prontos a acolher debaixo das suas asas mais alguém.
A Aida sempre foi a rocha segura sob os nossos pés. E continua a transmitir-nos coragem, alegria e determinação. Sem sombra de dúvida.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

transparentes, só hoje

Segundas são azuis. Pelo menos, a maior parte. A de hoje é vermelha. E amarela (com algumas notas de outras cores). Como se imaginássemos uma mandala a reunir alguns atributos necessários para esta segunda. Embora os atributos sejam sempre os mesmos, ainda que ofuscados por estados de espírito menos glamorosos.
Hoje é uma segunda em que vamos tentar fazer uma pequena batota e enchê-la de cores e crendices para nos motivar. Não vamos pensar em mudanças, porque elas acontecem mesmo sem trabalharmos activamente para as provocar. Vamos apenas seguir as tendências, como se a deslizar entre ondas e a deixar que nos levem para onde lhes apetece.
Transparentes é o que devemos ser hoje, a deixar que cores e texturas, misturas e tons fugidios se insinuem em nós. Só hoje, se puder ser, vamos permitir, sem dar luta, que tudo nos toque, atravesse e transforme. Como acontece todos dias, ao contrário da pretensão de que é ao contrário.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

couves e outros caldos


Ontem publiquei este texto no facebook: "segunda-feira, finalmente. o corpo pede uma corridinha pelas dunas, mas a cabeça entra em alerta vermelho: há couves que julgam que são pessoas e se põem a correr sem máscara e sem distância social aceitável. correm com muita habilidade e muito perto dos outros. são couves portuguesas e algumas estrangeiras que aprenderam com as sardinhas enlatadas e se sentem muito bem a mostrar os seus esforços para se manterem sãs e ginasticadas. se não desejam o mesmo aos outros é porque são couves e não se deve esperar delas mais do se espera das couves que não correm. se bem que essas ficam à espera que as reduzam a caldo-verde e não revidam com gotículas maliciosas."
Algumas couves revidaram, claro está, dentro do mais elevado espírito democrático. Uma até me aconselhou psicólogo para controlo da paranóia. Fiquei a saber que os psis das couves estão disponíveis para o meu caso. No mínimo, reconfortante. 
Também fiquei a saber que os estudos científicos que indicam a possibilidade de gotículas infectadas andarem para aí no ar são para deitar para o lixo. Abaixo a ciência porque as couves estão muito acima disso.
À cautela, também me perguntaram se pertencia a algum grupo religioso. Fiquei triste por ter de responder que não e que o meu guia espiritual costuma ser o bom senso. Não se pode agradar a todos.
Um amigo lembrou-me a tendência natural das couves para acabarem em caldo verde. Na minha modesta opinião, o caril de couve com abóbora e grão é um desfecho igualmente aceitável, segundo as minhas próprias tendências. Servido com rodelas de banana e basmati à ilharga.
O mais importante foi, apesar de tudo, o reconhecimento da grande caldeirada em que estamos metidos. As redes sociais vieram brindar-nos com uma avalanche de ingredientes e sub-ingredientes, ultra-vitaminas e tantas outras possibilidades que, na melhor das hipóteses, perceber que não temos controlo nenhum sobre as tendências desta mesa a que todos nos sentamos é a única evidência palpável.
É por isso que não acredito em teorias da conspiração. Cada um de nós tem capacidade e autoridade para criar livremente a conspiração que mais lhe convém. Não há mecanismo de controlo, ou árbitro mais eficaz, do que a nossa parcimónia para os mais variados caldos.
Na esperança que nenhum dos nossos mais inocentes espirros venha, alguma vez, a projectar-se sobre couves ou outras espécies que guardamos mais perto do coração.
Que se cumpra o livre-arbítrio e seja o que os deuses quiserem.