quarta-feira, 19 de março de 2008

dia de pai e filha


















A catraia da esquerda, na fotografia, é a minha irmã Xuxu, ou Ana, para quem não é da família. A foto foi tirada no Mecúfi, que fica no Norte de Moçambique e é uma das praias mais bonitas que conheço (desculpa, mana Bomba, mas não tinha aqui nenhuma fotografia contigo).
A Xuxu hoje faz anos. Nasceu no dia do Pai e teve a sorte de ter, como parteiro circunstancial, o nosso pai. Foi há quarenta e sete anos, em Vilanculos, outra praia linda.
O hospital local na altura era um pouco rudimentar e houve alturas em que o médico tinha de instalar os pacientes em cima de mesas e coser ferimentos de jacarés e outras forças naturais com o que tinha à mão.
Chegada a altura de nascer esta minha irmã, o médico achou que a casa dos meus pais era mais do que adequada ao acontecimento. Por isso, como nos filmes, preparam-se as fervidelas e lá esteve a minha mãe em trabalhos, pela quarta vez. Foi uma experiência e tanto, com o Dr. Ribeiro e o meu pai a constatar que, se fossem mulheres, jamais teriam filhos. Foi com certeza um momento de inspiração para a parturiente, que felizmente já se lembra disso com humor.
A experiência criou, claro, um elo especial entre o meu pai e a Xuxu, que sempre foi franzina, difícil de alimentar, energética e divertida. Só ela tinha pedacelos, faltas discipliquinates e creio que foi a responsável moral pelos casos pondados e ponto final, uma expressão que se vulgarizou entre nós cinco (irmãs) quando, à mesa, imitávamos os adultos nas suas conversas ponderadas (pondadas).
A Xuxu de hoje é uma mulher que admiramos, com um humor que continua a desmanchar-me de riso. Parabéns, mana.



















O pai é este, muito entretido a ensinar-me a assobiar. Também me ensinou outras coisas que ainda hoje recordo. Descubro-me muitas vezes a sorrir das coisas que o vi fazer e dizer.
Lembro-me, por exemplo, das viagens de land rover pelas picadas moçambicanas e da forma como nos dizia para fechar os olhos quando surgia uma daquelas pontes que eram apenas dois troncos atravessados sobre o rio. Explicava ele que fazia pontaria com o carro e depois fechava os olhos, esperando acertar. Um dia abri os olhos para ver se ele fechava os dele. A memória é traiçoeira, eu sei, mas quase posso jurar que ele também fechava os olhos, como nos dizia...
Houve uma vez que fiz uma birra no fim de uma caçada. Era uma pirralha e já estava acordada há muitas horas. A excitação de participar naquelas expedições com o meu pai também não me deixava dormir em condições. Por isso, toca a embirrar porque queria atirar com uma espingarda. E não me calava, que do meu pai também ganhei a teimosia e a determinação. Então ele acedeu. Mandou-me pôr em cima de um morro de muchem (formigas com asas), deu-me a espingarda e, vá, atira. Atirei e caí para trás, claro. Ainda não tens idade para atirar, concluiu ele. Passou-me logo a birra. Ficou a humilhação, claro.
De outra vez, a minha irmã Paula e eu resolvemos que já éramos suficientemente crescidas para fumar. Determinadas, fomos ter com o meu pai e comunicámos-lhe a nossa decisão. Ele concordou e prestou-se logo a ajudar-nos. Encheu um cachimbo, acendeu-o e passou-o para as nossas mãos, com instruções precisas sobre como inalar profundamente e reter algum tempo o fumo antes de o soltar. Assim fizemos e o resultado foi irmos a correr para a casa de banho para vomitar. Então, não querem mais?, quis ele saber. Claro que não quisemos, durante muitos anos.
Quem é a Lola? foi uma pergunta que ele repetiu tantas vezes, que se tornou um clássico familiar. A Lola era uma amiga nossa, que de vez em quando passava férias connosco. Um dia, quando estávamos todos a almoçar e a conversa era, mais uma vez, sobre as coisas que a Lola fazia, o meu pai levantou os olhos e perguntou, quem é a Lola? Foi a gargalhada geral, porque a Lola estava à mesa connosco.
O certo é, que ao longo dos últimos cinquenta e três anos, tem sido pai das cinco filhas e o role-model dos cinco netos que não tiveram oportunidade de saber o que é ter o pai sempre presente.
Parabéns, Pa.

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

parabéns, Ma



Faz hoje 75 anos a senhora que vêem aqui ao lado, comigo ao colo. A foto tem cinquenta anos e foi tirada em Vila Paiva de Andrade, na Gorongosa.

Aida nasceu na Lisboa dos anos trinta. Após um parto complicado, a bebé que não reagia foi atirada para um canto, embrulhada em lençóis, enquanto se prestavam cuidados à mãe.
Uma bebé tão linda, que pena... Comentou o médico depois de passada a urgência com a parturiente. E a seguir empenhou-se em a reanimar, no que foi bem sucedido.
Longe estava o seu anónimo salvador de imaginar as aventuras que a vida reservava à pequena criatura que por pouco não ficou esquecida num canto de uma maternidade alfacinha.

Com uma diferença de dezoito anos do irmão mais velho, Aidinha era o ai jesus da família. Aplicada nas coisas da escola, recebia do pai uma flor branca sempre que o dia era de exame. E não desperdiçou nenhuma.
Cheia de iniciativa, chegou um dia a casa gelada por ter passado várias horas numa fila de racionamento para receber uma garrafa de azeite. Em Lisboa partilhava-se então com a Europa o pesadelo da Segunda Guerra Mundial. Anos mais tarde fez parte do coro da Emissora Nacional e cantou com caras conhecidas como os irmãos António e Luís Andrade. Também praticou esgrima com perícia.

Casou aos vinte e um anos com um bem parecido aspirante acabado de sair da Escola Colonial e, aos vinte e dois, com uma filha de três meses, aterrou no Moçambique profundo, no posto fronteiriço do Dombe, onde chorava de pavor das trovoadas e dos tremores de terra. Foi a sua estreia fora de Lisboa, num lugarejo que ficava durante meses isolado do mundo pelas cheias.

Esta senhora é minha mãe e afirma a pés juntos que eu jamais teria nascido se, a caminho da cidade da Beira pelas picadas da Gorongosa, por via das imprudentes buzinadelas do meu tio, uma manada de elefantes não tivesse carregado sobre o carro, resultando isso no meu "despejo" imediato assim que chegada ao hospital. E é dela que tenho as minhas primeiras memórias, de quando me levava a passear no carrinho ao fim da tarde, por uma estrada de terra vermelha ladeada por eucaliptos.

Aida tornou-se uma atiradora exímia, companheira de caçadas e de grandes noites de king, de viagens e de andanças pelo mato fora antes do Sol nascer. Mulher de armas, era capaz de dispersar a tiro grupos de macacos que pilhavam as machambas (hortas), mas saltava de pavor quando alguém gritava que havia uma cobra por perto. Assistiu ao início da guerra colonial em Cabo Delgado, conheceu uma mão cheia de grandes figuras do regime, montou e desmontou casas, andou com as malas e a família atrás durante dezoito anos, sobrevoou planaltos no meio de tempestades, andou em traineiras ao longo da costa e teve animais de estimação tão estranhos como um papa-formigas, uma lagartixa que vivia na máquina de costura, um javali, dois jacarés, uma burra e uma vaca.

A sua história de amor com o meu pai, que dura há mais de cinquenta e sete anos, produziu cinco filhas e um ror de dores de cabeça, mais cinco netos manientos e uma bisneta a caminho.

Não vou estar aí para te fazer um uísque antes do almoço e te pôr a dançar o pino, mas brindo daqui ao teu dia, Ma. Parabéns.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

milena























Escreveu Isabel Bento:

Quando no início desta semana soube do lançamento do livro Que força é essa, de Madalena Barbosa, decidi desde logo que teria que estar presente. Não sabia então que, neste mesmo dia, não só iria estar no lançamento do seu livro mas também no seu funeral, poucas horas antes.

São exemplos de vida como a de Madalena Barbosa, que vale a pena preservar na nossa memória, como exemplo de dignidade e de coragem na luta por um Mundo mais justo e menos desigual, onde tod@s temos o direito de ser felizes.

O artigo, de Sofia Branco, que hoje foi publicado no Público, vale a pena ler.

1942-2008

Madalena Barbosa

A incansável feminista

Milena, como lhe chamavam, fez da militância profissão e da igualdade a causa de uma vida.

A última homenagem surge em forma de livro, uma compilação dos seus textos, lançado hoje.


Elas chamavam-lhe Milena. Elas, porque a militância feminista em Portugal tem sido um exclusivo das mulheres. Madalena Freire de Avelar Barbosa, o seu nome verdadeiro, mudou a sua vida, fez do activismo profissão e da igualdade a maior causa. Morreu ontem, a semanas de fazer 66 anos, com um cancro.

O nome de Madalena Barbosa aparece associado a todos os movimentos, grupos e associações que, em Portugal, se bateram e se batem ainda pela igualdade de direitos entre mulheres e homens.
Técnica da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género - que antes foi Comissão para a Igualdade e os Direitos das Mulheres e antes ainda Comissão da Condição Feminina, mudanças de nome que Madalena Barbosa acompanhou -, teve um percurso tradicional até ao 25 de Abril. Nascida em Faro, casou aos 18 anos, em Angola, onde cresceu. As duas filhas mais velhas nasceram na ex-colónia.
Após o regresso a Lisboa, em 1964, teve mais quatro filhos, dois rapazes e duas raparigas. "Podia ter optado por ser dona de casa, era casada com um marido com dinheiro, podia ter tido uma vida sossegada", diz a escritora Maria Teresa Horta. Mas optou por desconstruir "a ideia de que a feminista não tem a ver com família, com filhos, com amor".
Madalena Barbosa foi exclusivamente dona de casa e mãe de família até ao 25 de Abril, altura em que se juntou à multidão que esperava a libertação dos presos políticos de Caxias. "O 25 de Abril deu a volta à Madalena, como a centenas de mulheres portuguesas", recorda Teresa Horta.
A 7 de Maio, Madalena Barbosa está entre o grupo de apoio às "Três Marias" (Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa), que eram julgadas pela obra Novas Cartas Portuguesas, no Tribunal da Boa-Hora. Era a última sessão do julgamento e o resultado foi a absolvição.
No final, um grupo de mulheres, entre as quais Madalena Barbosa, junta-se em casa de Isabel Barreno. É nessa noite que nasce o Movimento de Libertação da Mulher (MLM), a primeira estrutura feminista portuguesa organizada, que ocupa uma casa na Pedro Álvares Cabral, em Lisboa, a partir da qual reclama a igualdade de oportunidades, o direito ao divórcio, a gratuitidade dos métodos contraceptivos e a despenalização da interrupção voluntária da gravidez - uma das causas a que mais se dedicou.
É aqui que a vida de Madalena Barbosa toma outro rumo. E é preciso ter em conta que "a capacidade de rebelião de uma mulher, de fuga às normas, sempre foi menor do que a dos homens", recorda a ensaísta Isabel Barreno.
Madalena Barbosa divorcia-se e vai estudar. Entra na Faculdade de Letras de Lisboa, no ano lectivo de 1979/80, por exame ad hoc, para cursar História. A decisão é tomada em conjunto com a historiadora Irene Pimentel (Prémio Pessoa 2007), de quem já era amiga e com quem fez muitos trabalhos em conjunto. "Fomo-nos empurrando uma à outra", lembra Pimentel.
Os estudos não ficaram por aqui. Aliás, Madalena Barbosa manteve a preocupação de se actualizar constantemente - procurando, como frequentemente dizia, enquadrar a luta pela igualdade em Portugal no contexto global.
Invisibilidade e tectos de vidro: representações do género na campanha eleitoral legislativa de 1995 no jornal Público foi o título da sua tese de mestrado em Comunicação, Cultura e Tecnologias da Informação, no ISCTE. Na comissão estatal responsável pela protecção e promoção da igualdade, Madalena Barbosa dirigiu, coordenou e elaborou vários estudos sobre as mulheres em Portugal, que estiveram na base de medidas legislativas nas áreas dos direitos humanos, trabalho, pobreza e sexualidade. Representou Portugal, nomeadamente nas reuniões das Nações Unidas sobre direitos das mulheres, e a União Europeia em várias cimeiras e conferências internacionais. Foi responsável pela preparação das questões da igualdade durante a presidência portuguesa da União Europeia e do Ano Europeu da Igualdade de Oportunidade para Todos.

A homenagem
A intervenção de Madalena Barbosa estendeu-se à política - autodefinia-se como socialista. Filiada no PS a seguir ao 25 de Abril, adere ao Bloco de Esquerda quando este nasce. Integra a Mesa Nacional do novo partido, mas sai em ruptura quando, em 1999, o BE acorda com o PS não levar a votos as alterações eleitorais que imporiam a paridade. Regressa ao PS com Ferro Rodrigues como secretário-geral. Foi candidata nas eleições intercalares à Câmara de Lisboa, em 2007, pelo movimento Cidadãos por Lisboa, liderado por Helena Roseta.
A 22 de Fevereiro, elas, as que lhe chamavam Milena, tiveram a ideia de a homenagear. Organizado em tempo recorde, o livro Que Força É Essa - uma compilação de crónicas e textos de reflexão (muitos dos quais publicados no PÚBLICO), escolhida pela própria já a partir do hospital onde estava internada - é lançado hoje.
"O livro dá-nos uma espécie de retrato da evolução da sociedade portuguesa", diz Maria Isabel Barreno. "Fala de assuntos em que as mulheres são sempre as directamente implicadas. Mas os assuntos das mulheres são assuntos da Humanidade."
Madalena Barbosa escolheu Isabel Barreno para fazer a apresentação do livro que lhe ocupou os últimos dias. "É uma das homenagens que lhe faço. ...
", admite a ensaísta.
(...)

"Acho que nunca me vou habituar a falar dela no passado. Tínhamos um código comum. Nenhuma de nós ia recuar, nenhuma de nós ia dizer "estou cansada, que aborrecido falar sempre da mesma coisa". O que nos movia era a consciência absoluta de que as mulheres têm o direito a ser felizes. Hoje fico mais só", confidenciou a escritora Maria Teresa Horta.

A coerência de Milena é o elogio mais frequente. "Morre a maior feminista portuguesa e o maior mede-se em coerência, em princípios, em lealdade, em honestidade. Em momento algum, a Madalena deu o dito por não dito", diz Teresa Horta. "Foi de uma coerência total e absoluta. Nunca se arrependeu da escolha do feminismo. E é muito perigoso ser-se feminista em Portugal."
É essa coerência que a faz ter "uma vida profissional que acompanha a militância pessoal", que a leva a não fazer "qualquer separação entre uma coisa e outra". "Toda a sua vida é esse simultâneo", corrobora Isabel Barreno.
(…)

"Velemos agora pelo futuro, que a nossa força é muita" é o apelo que Madalena Barbosa nos deixa no seu livro.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

até já madalena























Morreu hoje Madalena Barbosa, uma mulher que muitas vezes vi sorrir e, aparentemente, não reagir em situações capazes de me rasgar por dentro.
Para mim, que nasci com aquela tola convicção dos afortunados de que nada me é negado nem por ser mulher nem outra razão qualquer, nem sempre foi pacífica a relação com a forma de estar da Madalena, que nos transmitia sempre uma bonomia e uma tranquilidade que em muito destoava da sua luta por direitos fundamentais.
Não porque eu tenha tido uma luta e uma vida mais fáceis do que as suas. Nem pela década e meia que separa as nossas gerações. Mas por ter tido eu a sorte de beneficiar de uma educação que me sustentou a postura desafiante do estabelecido.
Por isso maior é admiração pela Madalena e pelo trabalho que soube desenvolver, à sua maneira, ao seu ritmo, sempre com a mesma paciência. Espero que as mulheres mais novas saibam apreciar o que ela tanto contribuiu, e a quanto custo, para que beneficiem hoje de coisas que a ela lhe foram completamente vedadas. E espero que se detenham a apreciar a riqueza com que preencheu a sua vida.
Eu, que acredito que não há acabar nem começar, mas sim uma viagem eterna em que vamos tecendo os laços com que nos ligamos uns aos outros, digo: até já, Madalena.

(in Publico.pt, 21 de Fevereiro de 2008): Madalena Barbosa, fundadora do Movimento de Libertação das Mulheres, em Abril de 1974, organismo de luta pelo "direito à igualdade de oportunidades, sem discriminação de género", morreu hoje aos 66 anos, anunciou o grupo parlamentar do PS.
Nos anos 80, Madalena Barbosa integrou a Comissão da Condição Feminina, actual Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, onde trabalhou até agora, lembra o grupo parlamentar do PS. Nas eleições intercalares de 2007 foi candidata à Câmara de Lisboa pelo Movimento Cidadãos por Lisboa.
No decorrer da sua carreira, a activista representou Portugal e a União Europeia em várias cimeiras e conferências internacionais, nomeadamente em Nova Iorque.
Madalena Barbosa auto-definia-se como "feminista, socialista e mulher, chamada em outros lugares do mundo gender expert".
Madalena Barbosa morre um dia antes do lançamento de "Que Força é Essa", o seu livro de crónicas e textos de reflexão sobre temas como feminismo, igualdade e estudos de género, participação cívica e política. A obra será lançada amanhã na Fábrica Braço de Prata, no Poço do Bispo, onde também será feita uma última homenagem.
A União de Mulheres Alternativa e Resposta (UMAR) já lamentou o falecimento da feminista, a quem diz prestar homenagem por se tratar de "uma das primeiras lutadoras pela despenalização do aborto em Portugal". Foi "uma mulher que sempre se firmou como feminista em todas as dimensões da sua vida", sublinhou a UMAR em comunicado, acrescentando que vai "preservar o exemplo de dignidade e de coragem revelado nos dias mais difíceis da sua vida".
Em comunicado, a UMAR apela à "participação das feministas portuguesas" nas cerimónias fúnebres de Madalena Barbosa, sexta-feira às 16h00 na casa mortuária Santa Joana, em Lisboa. O funeral segue para o cemitério do Alto de S. João, onde o corpo será cremado pelas 23h00.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

pequenos sinais de perigo

Cartoon de Paresh Nath, «National Herald»

A nossa memória distrai-se com tanta notícia, com tanto acontecimento, com tanto telejornal.
O certo é que a recém-declarada independência do Kosovo pode bem ser também o mais claro sinal de que o mundo se prepara para uma nova clivagem, com os EUA e a UE a tomar partido pelo Kosovo, e a Rússia e a China a torcer o nariz e a afirmar que a lei não é apenas a que o Ocidente entende.
E aqui a Europa tem de se lembrar que todos os seus conflitos maiores começaram exactamente nos Balcãs. As duas Grandes Guerras tiveram origem em lutas intestinas naquela região e não está fora de causa que esta questão seja mais uma chama perto do rastilho.
Até porque a economia europeia está a precisar de uma sacudidela e toda a gente sabe, ou devia saber, que as guerras não se fazem porque alguém decide que uma fronteira não está bem desenhada assim e ficaria muito melhor assado. Não, as guerras não acontecem assim.
Por trás de uma guerra está o imenso dinheiro necessário para a iniciar, as inúmeras indústrias que de repente recebem um incremento de actividade, das águas engarrafadas às simples embalagens plásticas para todo o tipo de produtos, do armamento às peças para camas, carros, tendas, refeitórios, estradas, pontes, abrigos, medicamentos, hospitais e organizações não-governamentais.
E depois da guerra, que destrói gente mas, sobretudo, destrói construções, equipamentos e infra-estruturas, adivinhem quem investe e reconstrói e permanece nos locais como accionista...
Portanto, além da sacudidela de que a Europa precisa, há que considerar as sacudidelas da Rússia, que tem de se reorganizar também, da China, que quer ser vista e ouvida, além dos EUA, que têm de arranjar uma guerra mais próxima que a do Médio Oriente para fazer dinheiro.
A questão agora é: voltamos à guerra fria, ou andamos à estalada a sério? O que irá render mais a curto, a médio e a longo prazo?
Entristeço-me pelos jovens de hoje, que entre o desemprego e uma carreira de armas forçada, numa era em que as seguradoras tendem a substituir a responsabilidade civil dos estados, podem ter a certeza que nunca ninguém aceitará fazer-lhes um seguro de vida ou de saúde. A geração a seguir poderá, no entanto, colher os frutos dos conflitos e esbanjá-los numa segunda versão da dolce vita.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008

o monopólio de deus
























(Igreja metodista de Bishop's)


Nunca fui tão assediada por toda a espécie de credos como desde que cheguei a Inglaterra. Anda muita gente perdida por aí a oferecer-me consolo de que não necessito.
Eles são metodistas, evangelistas, muçulmanos, qualquer deles com um activíssimo corpo de recrutadores, missionários e outros activistas que não nos largam.
O pior, no entanto, é a sua inabalável fé no monopólio de Deus pelo seu nicho de companheiros de crença. Com tanta reivindicação da verdade absoluta por parte de templos e congregações, qualquer incauto candidato a crente se sente dilacerado entre tantas forças, qual condenado a desmembramento atado a uma quadra de cavalos apontada a quatro diferentes direcções.
O monopólio de Deus é quase como um clubismo, uma facção, uma claque. É fantástico o número de missionários empenhados na salvação de almas, de tal forma que a evangelização tem vindo a adaptar-se aos tempos modernos, recorrendo a sofisticadas técnicas de divulgação e captação de fiéis com canais satélite, panfletos, CDs e DVDs, acções de rua e intercâmbio de adeptos.
Os canais religiosos de televisão dispensam inclusivamente várias horas diárias à explicação e demonstração de exemplos de sucesso financeiro. Deus providencia.
Entre as sensatas leis inglesas de liberdade religiosa, não discriminação e direitos de minorias, as múltiplas profissões de fé encontram confortáveis nichos protectores que exploram até às últimas consequências. Até à intolerância e abuso da sua liberdade, no insistente assédio a tantos quantos se cruzem nas suas empenhadas cruzadas por Deus, Alá e qualquer outra entidade a quem se reconheça qualquer espécie de autoridade sobre ímpios e quaisquer outros a quem se não reconheça capacidade para levar a sua vida em consonância com os ensinamentos divinos livremente interpretados por qualquer líder religioso.
Aos fins-de-semana Londres enche-se de gente vestida de branco ou de preto, de cabeças cobertas a caminho dos locais de culto. Enchem-se anfiteatros de crentes que protestam o seu amor ao Divino e reivindicam os Seus milagres.
De repente, o monopólio de Deus é um movimento de proporções assustadoras que ameaça transformar as democracias em estados da Idade Média.
O monopólio de Deus tem estado a angariar fundos para missões em África e noutros continentes a troco de votos em líderes políticos conservadores, que garantam a erradicação de conquistas legislativas de direitos individuais suadamente conseguidos nas últimas décadas.
E se esses líderes vencerem as próximas eleições norte-americanas, a Europa nada fará para contrariar a super-potência mundial nos seus ímpetos radicais de conservadorismo.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

nós




















Confesso que gosto de passear contigo assim, em alegres maluqueiras, a perseguir esquilos com a máquina fotográfica, a evitar as grandes poças de lama e a discutir se há-de ser a imagem do clube de golfe ou a dos carros a circular pela esquerda a que mais interessa para depois mostrares aos amigos. Não alinhamos quase nunca pelos mesmos gostos nem, às vezes, pelos mesmos desejos. Não conseguimos decidir se agora há-de ser o cinema ou mais uma volta pela baixa. Mas que importa? É bom estar contigo.

domingo, 6 de janeiro de 2008

Azul e branco




















Sempre foi claro para mim que existe uma aliança sagrada entre o branco e o azul. Não consigo imaginar maior suavidade, maior complementaridade, maior profundidade. Gosto da ideia de que no branco cabem todas as cores e depois, não resisto à elegância do azul. Ao romantismo. Àquela qualidade que o identifica com o infinito, com a eternidade, com a única e verdadeira natureza das coisas. Se eu tivesse criado o mundo, era assim que o fazia, azul e branco, quase monocromático mas, também, muito mais seguro do que o imenso universo de todas as cores. Suponho que assim é mais alegre. Mas eu amo o azul e o branco. Ou o branco e o azul. Já não sou capaz de sentir o mesmo pelo preto e pelo branco, mas confesso que exerce sobre mim atracção. E não posso deixar de admitir que toda a vasta gama de cinzentos, em contrastes crus com pretos e brancos tem uma elegância aterradora. No entanto, prefiro a suavidade, a sensualidade dos azuis e brancos, o sabor que quase me invade a boca ao vê-los escorrer, em grossas golfadas de tinta, sobre uma tela. O cheiro frio e arrebatador dos brancos, o calor contido dos azuis. Que fazer? Amo os azuis e brancos. São para mim como a complementaridade no amor, a paixão e a serenidade, o vento e a água. Um amor que surja entre azuis e brancos tem uma delicada definição. Equilíbrio, beleza e força, elegância. É contenção sem escorregar para o folclore multicolor. Emoção sem o desequilíbrio de notas demasiado altas ou desencorajadoramente baixas. Gosto mesmo dos azuis e brancos.

segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Os olhos postos na beleza




















Trafalgar Square, 23 de Dezembro de 2007


Tenho sempre os olhos postos em imagens bonitas.
Esta ilustrou um momento importante em Trafalgar Square, antes do Natal.
Entornei metade do meu copo de café em cima da roupa, nesse dia, mas valeu a pena.
Parto por isso para o novo ano com esta imagem dentro de mim. Faço-me assim acompanhar da decisão de ser feliz a partir daqui.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

estradas de sol

Estrada I'bane/Barra (Moçambique, Setembro 2006)



Estradas de sol!
São feitas para mim,
são feitas, que eu sei.
Mas lá donde vim,
Não as encontrei.
Estradas de noite,
que não procurei!
Mas foi por estradas
da noite, isoladas,
que eu aqui cheguei.
Estradas de bruma
acaso as sonhei?
Para aqui chegar
quantos véus rasguei!


Natália Correia

quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

rua de trás




















Aqui venho todos os dias, buscar um latte a ferver, que esfria convenientemente pelo caminho. Este do Dorringtons é bonzito, embora o meu preferido seja o do Starbuck. Menos quando é a minha amiga Roca que o tira no Caffe Primo. Quando quero voltar a sentir o gostinho da meia de leite à boa maneira lusa, desço a rua até ao café português e aproveito para comer também um rissol.

terça-feira, 25 de dezembro de 2007

Natal 2007




















A antecipação do Natal é muitíssimo mais rica do que a festa em si. Há expectactiva, cor, dinamismo, deixamo-nos arrastar por todos os encantadores pormenores que começam na iluminação das fachadas das casas e passam pela mesa, incluindo o serviço colorido, a decoração, a opulência das árvores e da imensa pilha de presentes.
Não nos chega juntar a família, as pessoas de quem gostamos. Não nos chega oferecer um bom jantar e alguma coisa que lhes faça falta ou que as faça comprovar que nos lembramos delas. Não nos chega vestir bem, comer bem, gastar bem. Não. Temos que nos empenhar num espectáculo emocional em que toda a sociedade participa, com cargas constantes de adrelina embrulhada em papel vermelho e verde, animações com estrelinhas e explosões, muitos pais natais sorridentes e carregados de energia.
Usamos tudo o que temos e não temos à mão para elevar as nossas expectativas e, no dia seguinte, não podemos evitar julgar o resultado pela completa ausência da encenação que levámos mais de um mês a construir como se nada mais importasse no mundo.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

quando a beleza passa sob os nossos olhos

















Pôr do Sol em Takeley. Final de verão.
Quando a beleza está mesmo ao alcance dos nossos olhos.
Quantas vezes olharam para cima na última semana?
Olho todos os dias, ao sair de cas, ao voltar a casa. Durante o dia. Vou à janela olhar.
Posted by Picasa

quinta-feira, 19 de julho de 2007

lápis azul


Houve um tempo em que, inocentemente, se encapavam os livros proibidos para que a PIDE não soubesse que os estávamos a ler. Era gato escondido com o rabo de fora e nem sei bem o que é que a polícia política pensava de tanta estupidez. Talvez a encarassem como um sinal de respeito, tipo: se lhe tirares a capa, prendemos-te. Ora bem...
Agora a política é polícia e manda que se subtraiam aos jornalistas os seus instrumentos de trabalho. Que toda a informação sobre crimes se torne ela própria crime. Que se persiga quem informa em vez de se ir simplesmente atrás dos criminosos.
Não tarda, serão os jornalistas a pedir, na redacção: "Ó chefe, passa-me aí o lápis azul? Acabou? Não faz mal, o vermelho também serve..."
Pois serve, porque a partir de agora os órgãos de comunicação social só vão dar receitas, escrever sobre festas e transcrever os discursos dos políticos. Também não é preciso muito mais, agora que a Internet menorizou o papel da informação, pondo-a ao alcance de qualquer teclado doméstico.
E não está mal, porque para todos os efeitos havia de se aprovar a censura mais tarde ou mais cedo. Por isso tinha de se arranjar outra forma de comunicação, social ou anti-social, não importa. O que importa é que se entreguem computadores ao povo e se eduquem as massas na literacia da rede.
Se a seguir os provedores de serviços conseguirem ganhar a batalha de serem eles a decidir os conteúdos a que devemos ou não ter acesso, isso são outros trezentos. Porque a alternativa a comer o que os outros escolhem é assumir a condição de pária e prescindir do acesso a todas as ferramentas de comunicação pela rede que, pouco a pouco, se vão instalando na nossa vida.

quinta-feira, 24 de maio de 2007

o meu dia da mãe

Hoje é o meu dia da mãe. Adivinhem porquê.
Nem sempre fazemos o que queremos da nossa vida, nem sempre o que não queremos se torna, sem esperarmos, a nossa vida.
A Cuca, que faz hoje 20 anos, surpreendeu-me tornando-se na minha vida e numa pessoa que admiro.
Parabéns, filhota-centro-do-meu-coração.
Mesmo não podendo estar contigo hoje, sei que vais fazer tudo o que puderes para te divertires e celebrares este aniversário. Espero que te lembres sempre que o importante é celebrarmos muito todas as coisas.
Eu hoje vou dedicar-me a celebrar-te.

domingo, 20 de maio de 2007

hoje é o dia da tristeza

Hoje é o dia da tristeza. Há imensos dias em que estamos tristes, mas hoje a minha tristeza é maior do que alguma vez o foi. Hoje a minha tristeza vem da minha incapacidade para fazer entender uma escolha simples. É que podemos escolher todos os dias entre andar às voltas com o que está mal ou, muito ajuizadamente, pôr para trás das costas isso e aproveitar o dia: beber um bom café, dar um pequeno passeio ao ar livre e olhar para as pessoas que nos rodeiam e pensar naquilo que gostamos nelas. E hoje a tristeza veio porque não consegui fazer a minha escolha e apenas ficou o que de mau habita nas relações das pessoas.
A escolha do bom e do agradável não é uma fuga. Quando temos consciência e não procuramos a alienação, sabemos que o mau existe e que há coisas erradas na nossa vida. As mais das vezes pouco podemos fazer para emendar o que já foi mal feito. A única saída é seguir em frente e agarrar com as duas mãos o que ainda há de positivo. O que sempre há de positivo.
Hoje eu podia ter feito a minha escolha mas não a consegui levar avante. Não consegui ser suficientemente firme para evitar que as escolhas dos outros inibissem a minha. Por isso surgiu a tristeza, que em si não tem valor nenhum, que é uma espécie de limbo que se assemelha a uma prisão.
Enquanto estamos tristes estamos privados de nós. Estamos reféns de inibições que nos imobilizam num ponto em que não queremos estar. E, no entanto, precisamos de convocar todas as nossas forças para nos libertarmos dessas inibições. É doloroso, quase tanto como a tristeza, mesmo quando entendemos a sua natureza e sabemos que não a devemos manter em nós.
Hoje tenho de reaprender a libertar-me da tristeza. É uma recaída. É preciso recomeçar do zero. É preciso repetir muitas vezes, alto e baixinho, que não queremos manter-nos na tristeza. É preciso arrancá-la do corpo como a uma fera que cai sobre nós e nos rasga a carne as suas garras de impiedade. É preciso sofrer a dor da expulsão para expulsarmos a dor da tristeza.
Infelizes dos que jamais ousam passar por essa dor paralela para extinguir a primeira.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

um abraço para a vida


Estimo esta fotografia, tirada com a minha avó Amélia em Vila Paiva de Andrade, na Gorongosa, aí pelo final do meu primeiro ano de vida. O meu ar sorridente fazia, com certeza, parte daquele braço esquerdo que me segurava e me protegia. Dezasseis anos depois chegou a minha vez de a apoiar com o meu braço, até isso não ser suficiente para a proteger. Não fui capaz de ir ao seu funeral porque queria ficar sozinha com essa estranha dor de se perder alguém a quem se quer bem. Só que, afinal, nunca fiquei sozinha, porque a partir daí não houve nenhuma altura da minha vida em que, precisando de apoio e conforto, não me lembrasse de uma ou de outra forma dela, acabando por me sentir reconfortada e animada só por isso. Se calhar é por essa razão que estimo tanto esta fotografia, que me faz lembrar o abraço seguro e reconfortante da minha avó.

quarta-feira, 25 de abril de 2007

há 33 anos, a 25 de Abril


Há 33 anos,a 25 de Abril, estava nesta casa há espera de um 'golpe de estado'. Era o que anunciava a BBC há um mês, ouvida à noite, nas escadas da entrada ou na sala de estar do vizinho. Que de golpes não percebia nada até à data, apesar de já ter lido no 'Paris Match' a história do rapaz Ian Palach que na Checoslováquia se imolou quando os soviéticos entraram em Praga. Tinha visto a fotografia dele a arder na rua, apanhado em primeiro plano pela objectiva do fotógrafo, com os tanques bolcheviques por fundo.
Que sabem as pessoas de dezasseis anos, todos quantos tinha, de golpes de estado? Absolutamente nada, mesmo que o pai insista em explicar, à mesa e quando se têm conversas de família sérias, que temos de estar preparados para o que vem aí. Por isso, daquela janela do meio, no primeiro andar, às seis e meia da manhã, ao ouvir o colega do meu pai dizer: "É o golpe de estado. Vai, vai dizer ao teu pai!...", obedeci, claro, como se obedece quando um adulto nos diz para dar um recado e espera que façamos exactamente como diz.
Da mesma janela, já manhã mais avançada, assisti ao burburinho na rua, às corridas de pessoas que se alarmavam e pareciam não saber exactamente o que fazer. Da janela, porque naquele dia não se queriam os filhos à deriva na rua, que era perigoso embora ninguém nos dissesse exactamente porquê.
Ouvia-se na rádio que a tropa tinha tomado um quartel qualquer na metrópole e que por isso tinha começado a revolução. "Um quartel como aqui?", quis saber o Custódio, o cozinheiro, a ouvir connosco o noticiário enquanto tomávamos o pequeno-almoço. Encolhi os ombros, que da metrópole percebia eu tanto ou menos do que ele.
Mais tarde e para minha grande frustração, o Félix, o criado mais novo, chegou da rua num alvoroço, com novidades. Juntámo-nos todos na sala de jantar, a minha mãe, as minhas irmãs, eu e o Custódio para o ouvir.
O Félix tinha ido ao mercado, às compras. E ao passar pela sede da PIDE estavam a chegar os Unimogs com soldados, que arrancaram à força os funcionários que lá estavam e os levaram presos. "Até senti uma coisa na cabeça e nas costas", dizia o rapaz, que ainda vinha a tremer.
Ficou então decidido que ninguém saía de casa sozinho ou, pelo menos, sem avisar que o ia fazer. A medida aplicava-se também ao Custódio e ao Félix, que tinham vindo connosco há um mês de Manica, junto à Rodésia. Como não eram da zona, o melhor era tomarem as mesmas cautelas que nós, não fosse alguém lembrar-se de retaliar por serem de fora e ainda por cima trabalharem em casa de um funcionário do Estado português.
A manhã passou-se assim, entre o que se ouvia na rádio, ao telefone e no que fulano e beltrano vinham até à porta contar. À tarde, com alguma tranquilidade reposta à força de o 'golpe' ser lá para a metrópole e a vida prosseguir, lá fui autorizada a dar uma volta pelas ruas.
O 25 de Abril, em Inhambane, foi sobretudo passado à sombra, em grupos à volta dos rádios a pilhas. E em perplexidade também, porque o golpe de estado passava-se a tantos milhares de quilómetros, que por força iria demorar a mesma distância a entrar-nos completamente na cabeça.
A noite, de novo à escuta na frequência da BBC, espantei-me com os detalhes, os nomes, as informações dos correspondentes estrangeiros em Lisboa. Havia com certeza dois golpes de estado: o daquela estação e o relatado pelas rádios em Moçambique.

quarta-feira, 18 de abril de 2007

divinos designíos: arbitrariedade ou livre arbítrio?

não acredito que deus exista. se existe, é com certeza um deus da arbitrariedade. e quando falo em arbitrariedade não me refiro ao conceito 'puro'. apenas naquilo que, embora obedecendo a causa e efeito, como tudo nesta vida, somos incapazes de ajuizar, abarcar, prever e,portanto, controlar.
muito do nosso sucesso advém da capacidade que nos cabe para controlar determinados aspectos da nossa vida. há, pois, pessoas que têm mais aspectos da sua vida sob controlo e, por isso reconhecemos nelas pessoas 'às direitas', fiáveis, confiáveis.
apesar disso, nem essas pessoas são imunes à arbitrariedade, ou seja, aos factos e acontecimentos que não dependem do seu controlo. claro que, por imposição de carácter, essas pessoas podem agir/reagir de forma controlada a acontecimentos que, num ápice, descontrolem alguma porção das suas vidas.
atendendo a que o carácter é material genético e incontrolável 'à priori', podemos concluir que o facto de termos um determinado feitio (ou carácter) e não outro, é um dado arbitrário.
assim, se alguém nasce numa família 'descontrolada', podemos assumir que tem mais hipóteses de ter muito menos sob controlo, apesar de até poder ser uma pessoa de carácter 'controlado' e 'controlável'. de novo se aplica aqui a arbitrariedade.
alguém que tem as suas coisas sob controlo pode ou não deparar-se com circunstâncias capazes de fazer vingar e potenciar as suas qualidades.
quem não as tem pode, apesar de tudo, ser beneficiado por oportunidades 'imerecidas' e conhecer um imenso sucesso, sem de facto ter feito o suficiente para isso.
bons e honestos nem sempre são compensados pelos seus actos, apesar dos ditos optimistas e demagógicos amplamente difundidos a esse respeito.
maus e desonestos também nem sempre pagam pelo que fazem. ao contrário da ilógica afirmação 'cá se fazem, cá se pagam'. muitas vezes um pouco de inteligência basta para escapar a óbvias consequências e, quase sempre, os nossos próprios conceitos de culpa, de bom e de mau são o suficiente para desencadear a causa castigadora, por mor da nossa crença na fatalidade do castigo e pouco mais. não por alguma lei universal de causa e efeito que a experiência e a estatística comprovem, mas porque a nossa bem treinada moral a isso nos conduz.
a justiça fica, por isso, no universo da utopia e aí deve manter-se, sob pena de se constituir alucinação e com isso mais contribua para o prejuízo próprio e colectivo do que para a vitória das forças do Bem.
portanto, que deus é esse que promove tanta diversidade de factores absolutamente fora do controlo dos eleitos da sua Criação, advogando em seguida que a sua dádiva é a concessão do livre arbítrio? será sim, mas a todo o universo e não apenas a primatas acidentalmente erectos e egocentrados com tendência para a cegueira voluntária.
ou será esse deus, à imagem e semelhança da sua espécie eleita, incapaz de reconhecer um universo em constante evolução, em que tudo, matéria e espírito, se acotovela e avança em função da lei do mais forte? estará esse deus em negação? ou estará embuído do espírito romântico que também acomete com frequência alguns indivíduos da nossa espécie?
ou será esse deus um gigante paternalista e promotor da acomodação, da aceitação cega de um destino e da menorização da auto-estima pessoal através de múltiplas provações? será a sujeição cega um objectivo divino?
não acredito. deus, assim compreendido, não existe. porque a existir, conheceríamos de igual forma o seu bom e o seu mau. e a impressão com que se fica, ao fim de alguns anos de experiência, na última linha do deve e haver da vida, é que o Bem perde irremediavelmente para o Mal, não sendo possível erradicar o amargo de boca que nos fica sempre do que de negativo se acumula na vida.
deus não existe, não senhora. deus perde para uma imensidade de pequenas divindades, a maioria de diminuta dimensão, cada uma delas com o seu domínio próprio e dividida entre desejos inacreditavelmente humanos, necessidades naturais absolutas e a inevitabilidade das forças universais em eterno conflito, sujeitando-nos à espantosa arbitrariedade do seu poder.
quem e em nome de quê inventou um deus a preto e branco num mundo obviamente fadado para o tecnicolor?