"Balelize III" by Marita Moreno Ferreira (acrylic on canvas, 100x100 cm) |
"Balelize III" by Marita Moreno Ferreira (acrylic on canvas, 100x100 cm) |
"Tragédia" by Rui Aço |
"Abril Justo" by MMF |
A Aida partiu hoje. Para quem fica, a dor não tem dimensão. Mesmo sabendo que a sua, foi uma longa e bonita vida, na companhia de um amor que também durou pouco menos do que essa vida. O consolo não existe para quem conheceu os outros amores que cultivou.
Hoje a Aida e o Manuel reencontraram-se nessa dimensão da vida que os nossos sentidos não apreendem. Fica a memória e a experiência que nos ofereceram, o ânimo e a seriedade com que sempre nos presentearam, a alegria que partilhavam até nos momentos mais sombrios.
E fica a saudade, imensa, inultrapassável.
Aida e Manuel (Vilanculos, 1959) |
Aida (Dombe, Moçambique, 1956) |
"red angels" by MMF |
Sempre gostei de anjos. Não nos que ficam presos nas imagens religiosas, embora alguns sejam incrivelmente belos. Vejo-os mais como seres capazes de se mover entre dimensões e de nos alertar para possibilidades que ainda não nos demos ao trabalho de explorar. Se algum dia me virem a olhar para o ar e a farejar, como os nossos parceiros de planeta fazem tantas vezes, o mais provável é que ande à procura de anjos e das suas subtis manifestações.
Hoje desenhei e pintei dois anjos para a Aida, minha mãe. Que neste momento, em que não lhe faltam de certeza as subtilezas amorosas dos anjos, também precisa da força do vermelho que nos corre nas veias. Do vigor do amarelo e das asas reservadas aos seres magníficos. E das combinações fantásticas de todas as outras cores, que nos inspiram para as pequenas e grandes coisas da vida.
"white flowers" by MMF |
Entre as muitas actividades de que a minha mãe se lembrava para me manter debaixo de olho, além de me fazer frequentar as aulas de estenografia, caligrafia e dactilografia que leccionava, havia as aulas de alemão de Miss Libby.
A minha mãe sempre sempre teve uma habilidade especial para acolher debaixo das suas asas cães, gatos, lagartixas e outros seres estranhamente desemparelhados na vida. Miss Libby era uma dessas criaturas. Professoras no mesmo colégio, as duas tornaram-se imediatamente amigas.
As aulas tinham o propósito de controlar a minha mente ociosa com interesses dignos aos olhos dos adultos e, ao mesmo tempo, dar uma ajuda ao orçamento de Miss Libby. Tinham lugar num "apartamento de solteiro" que alugava na Ponta Gea, na Beira.
Ao contrário da resistência esperada da minha parte, tudo naquelas explicações me encantava. A começar pelo apartamento minúsculo, sempre mergulhado na penumbra e cheio de livros em mais do que duas ou três línguas. Não falhava uma tarde.
Miss Libby exercia um fascínio total sobre mim. Sempre vestida de escuro, com o cabelo preto agarrado atrás, o nariz adunco que ocupava quase toda a cara. Falava muito sozinha e tocava nos livros enquanto se mexia de um lado para o outro.
Era nova e até eu, com os meus dez anos de experiência de vida, conseguia notar isso. Mas parecia a pessoa mais velha do mundo, com memórias que se arrastavam com ela e me faziam acreditar que tinha vivido incontáveis e secretas aventuras. Ao lado dela transformava-me numa sombra, à espera dos segredos que tinha para me revelar e que já incendiavam a minha imaginação.
As aulas de alemão decorriam com grande intensidade, com Miss Libby a perorar interminavelmente naquela e noutras línguas, porque a mente dela também tinha a capacidade de a desviar para dimensões paralelas onde escondia as suas outras vidas. Para mim, tudo aquilo era simplesmente fascinante.
Quando a minha mãe chegava, no fim das lições, ouvia as deambulações de Miss Libby sobre as indignidades do mundo. E antes de sairmos, o seu aviso preferido: "São abutros, Aida. Abutros!"
E lá a deixávamos, com os seus livros e fantasmas, na sombra do apartamento e das vidas que a faziam parecer tão velha e interessante.
"belonging" by MMF |