sexta-feira, 26 de novembro de 2021

a propósito de bruxas

 

"Balelize III" by Marita Moreno Ferreira (acrylic on canvas, 100x100 cm)


A propósito de bruxas há que dizer: quem, no seu perfeito juízo, perseguiria gente tão conhecedora de factos e segredos, de mistérios que são úteis a todos? A Inquisição, que era uma espécie de polícia de costumes da Igreja, ou o braço armado dela, depois de ter dado cabo dos Templários e outros tentáculos que caíram em desuso ou em desgraça completa, tentou acabar com elas. E com todas as mulheres que insistiam em ser livres.
Não parece ter conseguido, porque as bruxas são como as beldroegas. Quando damos por elas, já se espalharam pelos vasos, canteiros, campos. Não há como as conter, a não ser com um novo olhar sobre elas: são gente resistente, esperta, cheia de saberes e têm um riso incontrolável. Como não as admirar?
A minha família, por exemplo, que tem um número exageradíssimo de mulheres, é sem dúvida um caldeirão de multiplicação de bruxas. A começar pelo feitio: não se pode falar com nenhuma das mulheres desta família sem ter em conta o mau feitio desgraçado de uma, de outra, enfim... De todas.
A explicação para o mau feitio parece estar no tempo gasto em considerações pré-bruxedos. Do género: pequenos-almoços mágicos interrompidos que perdem qualquer poder com o aparecimento e a intervenção de estranhos.
Outro exemplo: mentiras, estúpidos actos de abuso de poder e todas as faltas de respeito na escolha dos alimentos perfeitos para cada ocasião ocasionam ralhos que nunca mais acabam. O motivo: nenhuma bruxa se contenta com menos daquilo a que tem ou temos todos direito. Não há uma que consiga entender uma escolha limitada quando a totalidade é que deve ser mandatoriamente gozada.
Bruxas são gente inteira e não pelos olhos verdes penetrantes, ou os gatos pretos que não lhes largam o colo, ou os corvos que as acompanham pela vida fora. Também há disso e vassouras em modelos para todas as necessidades. Mas nada disso se compara ao que elas são, de verdade.
Forças naturais deste mundo, não reagem nada bem quando contrariadas. Como vulcões, têm de expelir lava quente e fumaceiras diversas para mostrar que estão zangadas e que não há necessidade de tentar evitar as magníficas correntes de força que são capazes de criar.
E se acham que só se vestem de negro e praticam as suas artes em caves escuras ou torres só frequentadas por aranhas e morcegos, tirem daí o sentido.
As mais perigosas e ladinas são as que parecem anjos e irradiam luz e se divertem a confundir as percepções de quem apenas acredita que vive como um mero mortal. As partidas que pregam aos ingénuos só servem para os desenganar e tentar mostrar-lhes o caminhos direitos.
O que acontece é que há muitos fabricantes maliciosos de bússolas imprestáveis que recheiam as suas vidas de bens venais contribuindo com indicações infelizes para quem quer mais do que os olhos vêem entre os céus e a terra.
Esses ratos, que se escondem dos caldeirões das bruxas, não aprendem grande coisa, mesmo quando lhes espreitam as práticas. Porque, como bem se sabe, os ratos não vêem grande coisa e têm de usar a barriguinha para contar os seus parcos benefícios. E quando não podem comer, desdenham as coisas de maior qualidade.
É uma história triste, a dos ratos cegos e a precisar de encher a barriguinha. Mas essa fica para outras récitas.

terça-feira, 12 de outubro de 2021

amália, amália e amália

 

"Tragédia" by Rui Aço

Amor a sério e de verdade ama bom e mau, alegrias e tristezas, dúvidas e certezas.
Quem ama Amália faz disso fado, ligeiro, alegre ou brejeiro, triste ou inconformado, pujante ou descontente. Como deve ser a vida e quem dela participa e não espera por ninguém para fazer o que tem de ser feito.
Assim dito, quem pinta Amália busca todas as suas facetas, como faz Rui Aço nesta exposição que vai abrir com oito trabalhos no próximo dia 23 na Galeria de Arte do Aroeira Lisbon Hotel, na Charneca da Caparica.
De Rui Aço já admiro há muito a crescente intensidade com que aborda a tela ou o papel, e a transforma num passeio determinado, alegre e desinteressado dos conceitos sociais que travam e calam a criatividade.
Em "Amália, Sísifo e Eu... Ou a Existência em busca da Essência", desce a Rainha, ou Santa, do seu pedestal e segue, com ela pela mão, pelo carreiro tortuoso da sua outra vida, a real. 
Não lhe oferece ramos de flores ou palmas, mas desenha e dá cor aos momentos que a tornaram humana e tão capaz de entender a verdadeira alma do fado. Amália é grande, mesmo na tragédia que a podia ter engolido como a tantos outros, nos implacáveis arbítrios da vida.
Neste conjunto muito belo, e também muito divertido, sobre Amália e os fados do pintor, há ousadia e despudor. E há, sobretudo, vontade de arrasar os lugares comuns que se apoderaram da sua imagem.
Rui Aço não oferece guitarras bonitinhas, nem perfis da fadista a erguer a voz aos céus. Anda com ela pela sopa da pedra que é a vida e as suas facetas menos celebradas.
O resultado é, sem dúvida, uma Amália que cede a todos os seus impulsos por também serem da sua vontade. Que nos momentos mais negros encontra coragem para renascer e fazer ecoar a sua voz na mesma frequência do que atormenta todos os mortais.
Aço poderia ter pintado mil detalhes da vida desta mulher que, como um arquétipo, representa parte da vida de todos, aqui e além mar. Mas escolheu oito, que é um número perfeito, das oito virtudes que se conquistam com o trabalho correcto. 
Amália, curiosamente, deriva de amal (trabalho). E estes trabalhos de Rui Aço são, sem dúvida, uma conquista e uma oferta exuberante que faz à diva. Viva!

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

parabéns

Aidinha e Toca, 1958

Hoje seria dia de trazer um ramo de flores à Aidinha. E de comer com ela uma fatia de bolo de bolacha. De ver o sobrolho atento do Manuelzinho a vigiar a quantidade de açúcar que cada um engolia. Parabéns aos dois.

 


segunda-feira, 3 de maio de 2021

maio doce maio

 

"Maio doce Maio" by MMF

Há meses com uma grande força, que ainda assim conseguem transmitir leveza, como é o caso de Maio. Luminoso, quente e também suave nas suas nuances. Como uma vitamina a multiplicar esperanças.

domingo, 25 de abril de 2021

abril justo

 

"Abril Justo" by MMF

Devíamos estar todos sentados na relva, num parque, a sentir uma brisa calma e a fruir os benefícios da Revolução de Abril. A navegar suavemente nas benevolências da democracia e da justiça para todos. E a sentirmo-nos felizes como quando realizamos uma paixão.
Em vez disso angustiamo-nos com a possibilidade de alguns fazerem mau uso da liberdade e, à boa maneira dos porcos triunfantes, aproveitarem para reivindicar a razão da força para os seus desejos menos idílicos.
Em defesa dos factos, a escolha e a capacidade de alterar a realidade a que agora assistimos como um desfecho possível e indesejável, é a mesma que permitiu Abril de 74 e a mudança significativa nas nossas vidas desde então.
O sistema é justo e funciona para qualquer lado. Os sonhadores devem contemplar simplesmente a possibilidade de agir bastante mais em prol da manutenção das suas adoradas utopias. Sonhos vigilantes e concretizados no dia-a-dia deixam menos espaço a pesadelos totalitários.
Ter por garantida a felicidade é não entender nada da natureza das coisas. É como não abrir o guarda-chuva durante as primeiras gotas da tempestade.
Este mundo é um calvário de trabalhos e é preciso aprender a gozar as alegrias da participação activa nos sonhos. Acabar o dia com a satisfação de o ter passado a depositar mais um tijolo na fundação certa é a garantia de que o amanhã nunca nos parecerá desanimador.
Viva Abril e a sua justiça.

terça-feira, 2 de março de 2021

saudade imensa

 

Manuel e Aida, Dombe, 1956

A Aida partiu hoje. Para quem fica, a dor não tem dimensão. Mesmo sabendo que a sua, foi uma longa e bonita vida, na companhia de um amor que também durou pouco menos do que essa vida. O consolo não existe para quem conheceu os outros amores que cultivou. 
Hoje a Aida e o Manuel reencontraram-se nessa dimensão da vida que os nossos sentidos não apreendem. Fica a memória e a experiência que nos ofereceram, o ânimo e a seriedade com que sempre nos presentearam, a alegria que partilhavam até nos momentos mais sombrios.
E fica a saudade, imensa, inultrapassável.


sábado, 27 de fevereiro de 2021

oitenta e oito anos de amor

 

Aida e Manuel (Vilanculos, 1959)

Hoje a Aida faz anos (n. 27-02-1933). Há oitenta e oito, em Lisboa, numa noite de Carnaval, os médicos atiraram o bebé de cinco quilos para o canto, enquanto tratavam de salvar a mãe. Ao fim de umas horas de luta, terminada com êxito a tarefa, um deles olhou para a criança e comentou: "Que pena, um bebé tão bonito." E resolveu tentar reanimá-la.
A Aida não se fez rogada e acabou por chorar a anunciar que estava viva. Como hoje, ao fim de setenta e três dias de internamento com muitas agruras e percalços, vai festejar com uma filha e uma neta durante uns minutos.
Na foto está com o seu companheiro de sessenta e sete anos e meio, Manuel (n. 26-09-1925, m. 18-08-2017). Juntos tiveram cinco filhas, cinco netos e três bisnetos. Uma vida cheia de amor e peripécias, muitos e muitos amigos, sempre inspirados, apaixonados e prontos a acolher debaixo das suas asas mais alguém.
A Aida sempre foi a rocha segura sob os nossos pés. E continua a transmitir-nos coragem, alegria e determinação. Sem sombra de dúvida.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

transparentes, só hoje

Segundas são azuis. Pelo menos, a maior parte. A de hoje é vermelha. E amarela (com algumas notas de outras cores). Como se imaginássemos uma mandala a reunir alguns atributos necessários para esta segunda. Embora os atributos sejam sempre os mesmos, ainda que ofuscados por estados de espírito menos glamorosos.
Hoje é uma segunda em que vamos tentar fazer uma pequena batota e enchê-la de cores e crendices para nos motivar. Não vamos pensar em mudanças, porque elas acontecem mesmo sem trabalharmos activamente para as provocar. Vamos apenas seguir as tendências, como se a deslizar entre ondas e a deixar que nos levem para onde lhes apetece.
Transparentes é o que devemos ser hoje, a deixar que cores e texturas, misturas e tons fugidios se insinuem em nós. Só hoje, se puder ser, vamos permitir, sem dar luta, que tudo nos toque, atravesse e transforme. Como acontece todos dias, ao contrário da pretensão de que é ao contrário.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

couves e outros caldos


Ontem publiquei este texto no facebook: "segunda-feira, finalmente. o corpo pede uma corridinha pelas dunas, mas a cabeça entra em alerta vermelho: há couves que julgam que são pessoas e se põem a correr sem máscara e sem distância social aceitável. correm com muita habilidade e muito perto dos outros. são couves portuguesas e algumas estrangeiras que aprenderam com as sardinhas enlatadas e se sentem muito bem a mostrar os seus esforços para se manterem sãs e ginasticadas. se não desejam o mesmo aos outros é porque são couves e não se deve esperar delas mais do se espera das couves que não correm. se bem que essas ficam à espera que as reduzam a caldo-verde e não revidam com gotículas maliciosas."
Algumas couves revidaram, claro está, dentro do mais elevado espírito democrático. Uma até me aconselhou psicólogo para controlo da paranóia. Fiquei a saber que os psis das couves estão disponíveis para o meu caso. No mínimo, reconfortante. 
Também fiquei a saber que os estudos científicos que indicam a possibilidade de gotículas infectadas andarem para aí no ar são para deitar para o lixo. Abaixo a ciência porque as couves estão muito acima disso.
À cautela, também me perguntaram se pertencia a algum grupo religioso. Fiquei triste por ter de responder que não e que o meu guia espiritual costuma ser o bom senso. Não se pode agradar a todos.
Um amigo lembrou-me a tendência natural das couves para acabarem em caldo verde. Na minha modesta opinião, o caril de couve com abóbora e grão é um desfecho igualmente aceitável, segundo as minhas próprias tendências. Servido com rodelas de banana e basmati à ilharga.
O mais importante foi, apesar de tudo, o reconhecimento da grande caldeirada em que estamos metidos. As redes sociais vieram brindar-nos com uma avalanche de ingredientes e sub-ingredientes, ultra-vitaminas e tantas outras possibilidades que, na melhor das hipóteses, perceber que não temos controlo nenhum sobre as tendências desta mesa a que todos nos sentamos é a única evidência palpável.
É por isso que não acredito em teorias da conspiração. Cada um de nós tem capacidade e autoridade para criar livremente a conspiração que mais lhe convém. Não há mecanismo de controlo, ou árbitro mais eficaz, do que a nossa parcimónia para os mais variados caldos.
Na esperança que nenhum dos nossos mais inocentes espirros venha, alguma vez, a projectar-se sobre couves ou outras espécies que guardamos mais perto do coração.
Que se cumpra o livre-arbítrio e seja o que os deuses quiserem.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

a respeito do respeito

 

Aida (Dombe, Moçambique, 1956)

Hão-de reparar no pormenor do pedaço de madeira estrategicamente colocado à frente do pneu, para evitar deslocamentos desnecessários do jipe. Nada que hoje passasse numa inspecção, mas naquele tempo era a garantia de que os seus utilizadores não ficavam totalmente isolados a mais de duas centenas de quilómetros do lugar habitado mais próximo.
A jovem na fotografia é a minha mãe, Aida, aos 23 anos. Um ano antes tinha saído de Lisboa pela primeira vez para acompanhar o meu pai, Manuel, na sua carreira administrativa em Moçambique. O Dombe, no planalto de Manica, foi o primeiro posto que lhe foi atribuído. Meia dúzia de casas e uma estrada de acesso que chegava a ficar seis meses debaixo de água. 
Era preciso fazer rancho para sobreviver durante essa parte do ano, aguentar os tremores de terra e as trovoadas tropicais, entre outras manifestações naturais como o paludismo, o tifo, a cólera e outras maleitas de que não se chegava a conhecer um nome.
A Aida teve cinco filhas, montou e desmontou casa nove vezes em dezoito anos, conheceu Moçambique de Norte a Sul, protegeu a sua família, amigos e gente de quem mais ninguém queria saber. Também deu abrigo a toda espécie de animais, dos cães e gatos, aos jacarés e javalis, lagartixas e outras criaturas menos vulgares.
Foi sempre a aglutinadora das relações, a pessoa a quem se recorria para estabelecer a ordem e as regras colectivas. Garantiu ajuda e conselhos, reconciliações e festas de família para todas as almas solitárias.
Hoje, quase a completar o seu 88º aniversário, está no hospital onde entrou para ser cuidada e acabou por ser infectada pelo SARS-CoV-2. Isolada da família, é mais um número para as estatísticas. E as informações sobre o seu estado começam muitas vezes com uma referência de toada fadista à sua idade.
Como se quem a ela se refere soubesse a vida recheada e de grandes histórias de sobrevivência por que passou. Como se tudo agora se resumisse a um corpo frágil que precisa de ajuda para se manter.
Sei que dentro desse corpo que resiste está a Aida que quem ama conhece, ainda a guardar a memória que nos alimenta a todos. 
Um povo sem memória não aprende, não beneficia da experiência que tantas vidas cheias transmitem. Nem se dignifica no desprezo pelo imenso contributo que os mais velhos já asseguraram para a vida e a sociedade das novas gerações.
A Aida educou os seus para não esquecer e observar em todos as mesmas e devidas necessidades. E para oferecermos a nossa voz para a defesa dos que não têm quem os defenda. 
Esperemos, por isso, que este relato sirva para nos lembrar que, na saúde e na doença, ninguém perde os seus direitos nem o respeito devido. E é justamente nas crises que isso deve ser assegurado até ao limite de todas as possibilidades. A idade não pode ser um argumento discriminatório para os mais velhos, como já não o é para os mais novos. 
A Aida não precisou que um Estado ou uma religião ou uma ideologia a ensinassem a observar valores humanistas. Sempre tratou todos com o maior respeito. Nem dispensou jamais o respeito pelos que não o manifestavam por ela.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

anjos vermelhos

 

"red angels" by MMF

Sempre gostei de anjos. Não nos que ficam presos nas imagens religiosas, embora alguns sejam incrivelmente belos. Vejo-os mais como seres capazes de se mover entre dimensões e de nos alertar para possibilidades que ainda não nos demos ao trabalho de explorar. Se algum dia me virem a olhar para o ar e a farejar, como os nossos parceiros de planeta fazem tantas vezes, o mais provável é que ande à procura de anjos e das suas subtis manifestações.

Hoje desenhei e pintei dois anjos para a Aida, minha mãe. Que neste momento, em que não lhe faltam de certeza as subtilezas amorosas dos anjos, também precisa da força do vermelho que nos corre nas veias. Do vigor do amarelo e das asas reservadas aos seres magníficos. E das combinações fantásticas de todas as outras cores, que nos inspiram para as pequenas e grandes coisas da vida.


segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

flores brancas

 

"white flowers" by MMF

O meu avô materno fazia questão de oferecer um cravo branco à minha mãe sempre que havia exames ou prestava provas de qualquer tipo. Os cravos brancos e outras flores da mesma cor tornaram-se para nós um símbolo de boa fortuna.
Hoje, dia de eclipse solar e lunar, que só é visível no Chile e algumas outras partes da América do Sul, aproveito para deixar aqui um ramo de flores, com algumas sortudas de cor branca, para todos os que delas necessitem, para a sua vida e, sobretudo, para as amabilidades do coração.
Em especial, são também para a minha mãe, que me passou esta forma de cultivar a boa sorte, nem que seja só recordando-nos que não há mal que sempre dure.
As oportunidades andam sempre a vagar por aí e só saber que assim é abre-nos os olhos para possibilidades insuspeitadas.
Assim seja, Mãe Aida. 
🤟


segunda-feira, 5 de outubro de 2020

5 de Outubro familiar

 


Da boca do meu avô materno ouvi a história de um 5 de Outubro vivido por ele aos dezasseis anos. A partir daí a data saltou dos compêndios de História para a esfera familiar. É assim que, por vezes, adquirimos uma percepção diferente dos acontecimentos e dos efeitos que têm nas pessoas que não são as figuras históricas descritas pelo conhecimento oficial.
Natural de Paderne, o meu avô pertencia a uma família ligada à indústria conserveira e um de catorze irmãos, herdeiros de alguma fortuna. Às tantas, por conta de dinheiros, os mais velhos terão ameaçado os mais novos e ele, com catorze anos, e um irmão mais novo, fugiram para Lisboa para escapar à sanha familiar. 
Safaram-se como podiam, como acontecia com os rapazes naquela altura. Até, aos dezasseis anos e por ter mentido na idade, o meu avô ter conseguido entrar para a Guarda Real. Mais alto do que era habitual na altura, de olhos azuis, foi um candidato bem acolhido e lá se manteve por quase um ano até ao 5 de Outubro.
Nessa altura ele e os outros guardas foram metidos em calabouços, à espera de um pelotão de fuzilamento. Quando os interrogaram para decidirem o destino que lhes cabia, um oficial descobriu a idade do jovem guarda e decidiu que podia transitar para a Guarda Nacional Republicana.
Apesar de agradecido à sorte que lhe coube e com receio que a Monarquia voltasse a ser instaurada ━ situação em que, com certeza, não escaparia ao fuzil ━, o meu avô mudou para a Polícia, para onde o seguiu o irmão mais novo. E, posteriormente, enveredaram por uma feliz carreira como polícias sinaleiros que só terminou quando se reformaram. 

terça-feira, 29 de setembro de 2020

miss Libby e os abutros

 


Entre as muitas actividades de que a minha mãe se lembrava para me manter debaixo de olho, além de me fazer frequentar as aulas de estenografia, caligrafia e dactilografia que leccionava, havia as aulas de alemão de Miss Libby. 
A minha mãe sempre sempre teve uma habilidade especial para acolher debaixo das suas asas cães, gatos, lagartixas e outros seres estranhamente desemparelhados na vida. Miss Libby era uma dessas criaturas. Professoras no mesmo colégio, as duas tornaram-se imediatamente amigas.
As aulas tinham o propósito de controlar a minha mente ociosa com interesses dignos aos olhos dos adultos e, ao mesmo tempo, dar uma ajuda ao orçamento de Miss Libby. Tinham lugar num "apartamento de solteiro" que alugava na Ponta Gea, na Beira. 
Ao contrário da resistência esperada da minha parte, tudo naquelas explicações me encantava. A começar pelo apartamento minúsculo, sempre mergulhado na penumbra e cheio de livros em mais do que duas ou três línguas. Não falhava uma tarde.
Miss Libby exercia um fascínio total sobre mim. Sempre vestida de escuro, com o cabelo preto agarrado atrás, o nariz adunco que ocupava quase toda a cara. Falava muito sozinha e tocava nos livros enquanto se mexia de um lado para o outro.
Era nova e até eu, com os meus dez anos de experiência de vida, conseguia notar isso. Mas parecia a pessoa mais velha do mundo, com memórias que se arrastavam com ela e me faziam acreditar que tinha vivido incontáveis e secretas aventuras. Ao lado dela transformava-me numa sombra, à espera dos segredos que tinha para me revelar e que já incendiavam a minha imaginação.
As aulas de alemão decorriam com grande intensidade, com Miss Libby a perorar interminavelmente naquela e noutras línguas, porque a mente dela também tinha a capacidade de a desviar para dimensões paralelas onde escondia as suas outras vidas. Para mim, tudo aquilo era simplesmente fascinante.
Quando a minha mãe chegava, no fim das lições, ouvia as deambulações de Miss Libby sobre as indignidades do mundo. E antes de sairmos, o seu aviso preferido: "São abutros, Aida. Abutros!"
E lá a deixávamos, com os seus livros e fantasmas, na sombra do apartamento e das vidas que a faziam parecer tão velha e interessante.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

descobre o cão

 


Há dois dias uma frequentadora dos trilhos de Monsanto foi fazer o seu exercício matinal com os auscultadores a marcarem o ritmo da marcha. A páginas tantas percebeu que alguém a interpelava e removeu um dos auriculares.
Um passeante habitual, conhecido pelo seu ar carrancudo, dirigia-se a ela tratando-a por tu sem com ela ter qualquer tipo de contacto prévio. Observou que ela andava por ali sozinha e devia querer alguma coisa, que ele bem sabia, etc.
A passeante, que a princípio considerou que o homem talvez precisasse de alguma coisa, resolveu cortar a conversa e disse-lhe para não lhe dirigir mais a palavra.
O homem, provavelmente gravemente ameaçado na sua masculinidade por tão clara falta de respeito da caminhante, redobrou os impropérios, desferiu ameaças e levou repetidas vezes as mãos às partes gagas para reclamar que ela o "chupasse".
A senhora acelerou o passo na direcção em que tinha estacionado o carro e o homem interpretou isso como uma perseguição e ameaçou-a de novo.
Perto estava uma jovem com um telemóvel, a quem a passeante pediu que ligasse para a polícia, visto que não levava consigo o seu.
O homem desapareceu entretanto e juntaram-se algumas outras pessoas às duas mulheres, entre as quais o dono de um cão também frequentador daqueles trilhos.
Um carro-patrulha apareceu, com três agentes. Contada a história, o mais velho resolveu pedir à senhora que, no dia seguinte, quando não estivesse tão magoada... O termo despoletou de imediato indignação da queixosa e motivou um pedido de desculpas do agente.
Abreviando, a cidadã assediada descreveu o indivíduo e indicou a possível direcção que teria tomado, uma vez que já se haviam cruzado nas caminhadas com os cães e outros frequentadores dos trilhos. Os agentes afirmaram ir ver se o encontravam.
Já no carro, a senhora dirigiu-se até onde costumava ver o homem e viu-o numa das descidas para Alcântara. Voltou para junto do carro-patrulha, estacionado no local onde tinha feito a queixa e com os três agentes lá dentro.
Apitou e indicou-lhes a localização do indivíduo. O carro seguiu para o local indicado e abordou o homem. E assim ficaram as coisas.
Vários telefonemas para a esquadra de origem dos agentes não lhe permitiram saber se alguma medida tinha sido tomada e uma deslocação antes das oito da manhã do dia seguinte permitiu-lhe encontrar o agente e ficar a saber que o homem, segundo a sua versão, a tinha apenas mandado ir dar banho ao cão.
Concluindo, terá de dirigir-se de novo à esquadra para apresentar queixa e citar testemunhas, que não existem porque quem lhe acudiu não chegou a ver o homem e também não têm qualquer interesse em expor-se a contactos com a polícia. Tem também de assegurar que, no relatório da queixa que lhe derem para assinar, indicam a deslocação do carro-patrulha.
E assim ficará a coisa, com a recomendação de prescindir dos seus direitos de frequentar os trilhos de Monsanto e, no caso de nova ameaça, não resistir (recomendação telefónica da APAV).
Agora digam lá: já descobriram o cão?

(Recomendação generalista direccionada às caminhantes do sexo feminino: usem uma t-shirt estampada com a frase "Vai dar banho ao cão" e talvez evitem um acesso de agressividade do homem referido, ou de outros igualmente comprometidos com a ameaça irracional que as mulheres representam. Ou um pedido para uma melhor formação de agentes da autoridade nestes e noutros casos.)

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

sopros

 

"belonging" by MMF

A lembrança de que pertencemos a este mundo de uma forma que não estamos habituados a considerar. É o que acontece numa inspiração, durante uma meditação. Inspiramos e recuperamos a memória do que nos liga a esta vida. Um sopro, do qual cuidamos levianamente. Que nos esquecemos de cultivar.
De algum modo, a respiração é o que nos liga a este mundo, que só não é mais estranho porque ele também existe na dimensão da mente. E da construção que dele fazemos com as nossas experiências, emoções e sonhos.
Queremos acreditar que este mendo existe além de nós e isso até é verdade, porque somos sete biliões de mentes a construir a sua realidade simultaneamente. Num jogo em rede que ainda não se consegue replicar em simples softwares de aparelhos electrónicos.
Como é que se pode imaginar a tremenda ligação entre todas as mentes enquanto se dedicam a tempo inteiro à construção dos seus mundos individuais? Com é que se pode ter uma ideia da louca variedade de conceitos e experiências a que se entregam? Ou às decisões a que conduzem?
E este mundo em que andamos, a ser moldado pela teia de impulsos que originamos? Ou como a ponta do iceberg num universo que se acredita infinito?
Estaríamos cansados de tão imensa falta de limites quando decidimos vir para um insignificante planetazinho e viver uma experiência tão diferente? Ou não se, como se diz, em baixo como acima. Lá voltamos nós às teias que se misturam interminavelmente.
No final, haverá mesmo paz para a fadiga de quem assim guerreia?

sexta-feira, 24 de julho de 2020

silêncio intermitente


Hoje estou mesmo contente por ser sexta-feira. Esta semana foi exigente. Estou a precisar de um fim-de-semana calmo, contemplativo, silencioso.
(anda por aqui uma daquelas fantásticas máquinas camarárias que limpam ruidosamente os cantos aos passeios) (noutros dias são as máquinas de jardim) (e os autocarros que vão levar as crianças da escola à praia, que não desligam os motores enquanto esperam que as organizem para saírem a passeio) (ontem era uma grua a despejar contentores de recolha de lixo das obras) (para não falar nos berbequins, marteladas e toda a panóplia de ruídos invasivos que o restauro das casas exige) (e os diálogos em voz excessivamente alta entre os empreiteiros e os trabalhadores) (conversas intermináveis ao telemóvel, como se, de facto, o ganho esteja na repetição compulsiva de miudezas)
Agora está em voga o jejum intermitente. O corpo acumula lixo e é preciso depurá-lo. A poluição também é sonora e haveria que a depurar também. Metade das ansiedades ia-se embora com um bom plano de silêncio intermitente.
Parece que não nos fartamos de poluir, de muitas formas diferentes. O ruído é o segmento de poluição mais pesado que existe, porque parece que ninguém dá conta da sua existência.

terça-feira, 21 de julho de 2020

sobreviver às tempestades


Terça-feira com ameaça de trovoada. A pior tempestade não é, apesar disso, a dos elementos. Há duas semanas, o rapaz que veio entregar café, não trazia máscara porque estava muito calor. A semana passada, em nova entrega de encomenda, o estafeta não trazia máscara porque estava a trabalhar e não era necessário. Hoje, o técnico da empresa de comunicações queria entrar em casa sem luvas ou protecção para os pés, porque ninguém lhe tinha dito que eram necessárias. Não só não entrou, como saiu furioso e tratou de acelerar o carro de serviço desmesuradamente nos cinquenta metros até à passadeira da escola local.
Pode ser do calor, pode ser do trabalho, pode ser porque ninguém lhes diz nada. O certo é que, cinco meses depois de informação e propaganda incessante sobre os cuidados de higiene, protecção e distanciamento preventivo, as pessoas não podem alegar falta de conhecimento para desculparem os seus comportamentos suicidas que implicam com a segurança dos outros.
Entende-se perfeitamente por que razão subiram os casos de contágio desta pandemia. Assim não se vai lá.
As filas de entrada nos supermercados e noutros sítios mostram pessoas a um escasso meio metro umas das outras. Muita gente anda pela rua entre outros transeuntes sem máscara. Aborrecem-se porque lhes chamam a atenção.
Toda a gente gostaria muito de enterrar a cabeça na areia e esquecer que esta pandemia alguma vez aconteceu. Mas ela não vai desaparecer só porque se decide um desconfinamento. O problema veio para ficar e há que lidar com ele antes que extermine uma boa parte, senão a totalidade da população.
O facto é que há que mudar hábitos e, quanto mais depressa o fizermos, mais depressa a economia volta a encontrar um bom rumo. O maior problema da economia global é, neste momento, a pouca vontade de mudar sistemas que nos trouxeram até aqui.
Não usar máscara ou praticar alguma outra forma de protecção é como estar num meio de um incêndio e recusar qualquer acção porque não se teve nada que ver com aquilo. A verdade é que este vírus veio demonstrar que todos estamos implicados, ligados e apenas a consciência disso nos poderá tirar do aperto em que estamos metidos.
Nenhuma das nossas acções é isolada e afecta toda a gente numa escala igual à das ondas que uma pedrinha provoca num lago. Há implicações e nenhum de nós se pode subtrair ou encará-las levianamente.