sábado, 26 de maio de 2018

o sentido dos santos de casa


Escrever e desenhar ajudam a pensar. Até a memorizar. A organizar o que aleatoriamente acode à mente e a encontrar um foco para fixar raciocínios. Os padrões surgem, em palavras, cores ou formas, ordenam-se, ou não, mas nunca passam sem efeito.
É uma maneira de dar sentido e alargar o pensamento. E de o expressar livremente, criando e manifestando, escolhendo caminhos que fazem sentido. 
São actividades muito pouco frívolas, que nada têm que ver com o pendor ligeiro atribuído à expressão ser artista, utilizada para classificar quase sempre de forma descartável quem se considera fora da realidade e diferente dos demais.
Essa maneira de rotular o artista não pode, na realidade, estar mais longe da verdade e do valor intrínseco do poder da criatividade, do método que ela exige e da perseverança necessária a quem aposta em novas formas de encarar a experiência.
Denota, pelo contrário, a falta de reflexão de quem assim se pronuncia sobre forças vitais que movem qualquer indivíduo. Assim disposto a expandir o seu universo mental e de vivências, pratica em prol de todos descobertas que enriquecem e libertam.
Numa sociedade sempre tão ávida de consumo de novidades, estranha-se essa menorização do artista, sobretudo quando se conhece a sua reconhecida avidez por heróis e deuses. 
O artista é um santo de casa que faz milagres, mesmo quando a cegueira dos outros o desfoca em algumas realidades mais comezinhas. Afortunadamente, o poder de emparedar os outros é uma prática com grandes limitações, já que o seu propósito é, por definição, criá-las.
Ao artista cabe a tarefa de fazer orelhas moucas às vozes de burro que jamais chegam ao céu.

quinta-feira, 24 de maio de 2018

as linhas e os pontos da vida



Quem conta um conto acrescenta-lhe um ponto. Isto devia alertar-nos para a natureza criativa da nossa experiência. Toda a narrativa é exponencialmente aumentada por quem a ouve, a lê, a vê ou reconta.
Bom ou mau, tudo evolve para algo infinitamente maior, graças à contribuição de cada indivíduo. Ou seja, um conto é apenas o início de uma história global, cheia de intervenientes receptores, recontadores e mesmo difamadores ou abafadores.
Com isto, partindo do primeiro ponto do conto, se pode traçar um mapa irradiante de possibilidades e calcular a riqueza possível do início de cada história. Avassalador se conseguirmos imaginar que o mesmo mapa tem capacidade de se desenvolver não apenas graficamente, a duas dimensões, mas por todas as que conseguirmos imaginar a partir dessas.
Neste universo de possibilidades, será inteligente e honesto ficar apenas pelas baboseiras achatadas de quem pretende moldar a nossa imaginação e criatividade com campanhas de opinião e publicidade que concentram o seu propósito em difundir ideias feitas e pobrezinhas?
Há bem mais sob os nossos olhos e outros sentidos do que um conto e um ponto. E sendo que muitos contos dão forma a uma história bem maior, e muitos pontos desenham linhas e mais linhas, há que aceitar, sem dúvidas e até com a requerida humildade, o nosso papel criador na imensa arquitectura da vida.

quarta-feira, 23 de maio de 2018

uma oficina de manifestações

Fotografia de Paulo Paz, na OD - Oficina do Desenho
A desenhar, a pintar é que a gente se entende. Literalmente. Investir em tempo para manifestar qualquer coisa que faça sentido e nos entusiasme é ir à origem da vida. Lembrar o propósito que nos trouxe a esta vida e recuperar a capacidade de manifestar o que somos.
Encontrar um local onde mais pessoas entendem o encantamento dessas viagens é entender o poder da partilha, multiplicar o frenesim criativo que nos subtrai à imposição das catástrofes iminentes. 
Ter o prazer de ver criar com riscos, pincéis e conversas sempre interessantes sobre arte e tudo o que a ela se refere é um privilégio. Assistir à transformação de quem entra num espaço dedicado à criação, outro.
A experiência é tudo. O prazer de manifestar o mundo que se desenrola na mente. Se são necessários lápis e pincéis para isso, que se usem. Se são as palavras que tomam o seu lugar, excelente. 
Há sítios físicos em que isso acontece e uma oficina do desenho é disso prova.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Cascais a sonhar alto III: rivieras

Estoril - Estúdio Mário Novais - foto daqui
Cascais já teve a sua riviera no Estoril, com o seu casino, os seus jardins, as suas praias de veraneio, o seu glamour, histórias de espiões, palácios, corridas de carros, exilados notáveis e personalidades carismáticas.
Vila de pescadores que confraternizavam com nobres e gente de posses, artistas e aventureiros que faziam as delícias do imaginário local, foi infectada pela febre do imobiliário, dos negócios megalómanos e do turismo de massas, o novo Eldorado do século XXI.
Um brilho que agora se quer ver repetido com a possibilidade da instalação de eléctricos em toda a marginal e a futura riviera de Paço de Arcos.
São muitos pozinhos de perlimpimpim, a turvar a visão do que ficará em mais betão em vez das casas e palacetes tradicionais, do caos do trânsito que se agravará com as novas urbanizações de luxo, as universidades instaladas no centro histórico e à beira-mar, o alojamento local transformado em sugadouro de turistas e a arruinar as possibilidades habitacionais da população local.
Onde viverá a força de trabalho que mantém as infraestruturas do concelho? Nos concelhos limítrofes a três horas de transportes públicos da riviera? E sobreviverá da caridade pública, dos bancos alimentares e da segurança social em risco de colapso? E serão os idosos e refugiados clandestinos a assegurar o serviço básico necessário ao concelho? A imigração de jovens e talentos vai ter ministério ou vereação próprios? 
O mais triste é que este cenário dantesco já está instalado e a florescer. E o cenário que se segue é o reservado a todos os eldorados que, como fogos fátuos, se extinguem e deixam cidades-fantasma no seu lugar. Para não falar de fenómenos naturais como a subida das águas que apagarão do mapa marginais e faixas costeiras ainda cheias de promessa turística e imobiliária.
As rivieras são fantásticas. Como fantástica é a incapacidade de ver mais longe e de desviar as atenções de problemas reais e bem mais exigentes. Catástrofes anunciadas que precisam de mais do que operações de cosmética para traduzirem em segurança e confiança no futuro.
Um dia, as rivieras terão o seu epicentro em Manique, em Talaíde, no Murtal ou em São Domingos de Rana. Que se acautelem as ovelhas e as hortas locais. 

quinta-feira, 17 de maio de 2018

irmandade


São os prós e contras de sermos todos um. Porque há quem nos esforcemos por não reconhecer em nada iguais a nós. Que são coisas que abominamos e não queremos em nós, nem na nossa vida. No entanto, existem. Na nossa cabeça, pelo menos. Portanto, no nosso mundo. E quem as pôs lá? Nós ou os outros? Mesmo que tenham sido os outros, fomos nós que as deixámos entrar.
Não há fuga possível, se somos nós que vemos o mundo como é. Assim sendo, fazem parte do que somos. A menos que façamos um investimento honesto numa visão diferente do mundo. Que o transformemos no que achamos mais correcto para nós. Que sigamos o nosso melhor instinto e mudemos de dentro para fora.
Parece uma tarefa gigantesca, mas não é. Só precisamos de limpar o lixo que guardamos, que é muito maior do que o mar de plástico que existe no planeta. É só pegar numa garrafinha de cada vez e reciclá-la na nossa cabeça. E começa a limpeza e a simplificação do que está a mais e a complicar a nossa vida.
Como qualquer exercício, melhora e ganha rapidez com a prática.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

a lógica dos direitos


Sou mais do tipo de esperar para ver o que acontece a seguir. Sobretudo em questões sobre as quais é melhor admitir que não se sabe, em rigor, nada. 
Na ausência de informação mais fidedigna, a lógica parece ser a medida mais acertada. Mesmo quando possivelmente contaminada com preconceitos ainda por reconhecer.
Por exemplo, fará sentido decidir pelos outros quando as circunstâncias a que estão sujeitos os levam a ponderar a desistência como solução? Quando se encaram condenações à morte como medidas de justiça e se matam animais diariamente como se não houvesse amanhã? Será o respeito pela vontade dos outros tão desadequado e ilógico?
A morte é o destino final de tudo e de todos, por isso é desnecessária ajuda nesse departamento. Falho no entanto em compreender por que se age dessa forma em tantos casos, todos os dias, e depois se reluta em considerar que é um direito quando o grau de sofrimento envolvido é avassalador.
É igualmente injusto esperar que alguém tenha a coragem e a lucidez necessária para decidir pelos outros. E o sofrimento é um péssimo conselheiro, que nos priva de imaginar desfechos óptimos. Mas a experiência da vida é tão pessoal como as decisões que tomamos sobre ela.
Fazemos escolhas a todo o instante e, de repente, em questões fundamentais, são os outros que querem ter o privilégio da decisão. Sabe-se lá por que divino direito.

terça-feira, 15 de maio de 2018

Cascais a sonhar alto II

O Forte visto por Mário Crispim
Já estou a ver um Salazar vestido de cinzento e olhar escondido pelo chapéu a observar os visitantes ávidos por histórias. As meninas de Odivelas a desfiar os seus sonhos e segredos aos espectadores, oficiais espanhóis a ponderar o domínio da baía e da entrada do Tejo.
São mil e uma possibilidades a explorar no cenário fantástico do Forte de Santo António, grupos de actores inspirados a cativar a imaginação do público. Um grande museu vivo a fazer desfilar muita história da nossa terra.
Nas pausas dos espectáculos, a visita ao interior e exterior da construção, a ouvir as explicações dos oficiais da Marinha mais entendidos nas estratégias da defesa da costa e do País.

domingo, 13 de maio de 2018

portas e janelas


Há coisas que não se fazem, outras que são obrigatórias, nem que seja pelos dedos que se apontam ao abrigo de estados de consciência que vão e vêm como modas. Há portas e janelas que se fecham e abrem como as das casas assombradas, de prisões de todo o tipo, de saídas de emergência e por aí adiante.
Só podem ser correntes de ar, redemoinhos sem eira nem beira. Manifestações incompreensíveis de vontades e atributos cujos desígnios são como os dos deuses e de outras entidades que se nomeiam à la carte. Medos e certezas talhados mais pela imaginação do que pelo conhecimento das regras que regem todas as coisas.
Há portas e janelas, sim, mas também uma ignorância total daquelas que se devem abrir ou fechar. E ainda há o que cai ou não cai no goto, o instinto que declara alertas e os estados de coragem que ditam acções inebriantes e uma fé inexplicável nos bons desenlaces.
Temos esta vida que parece uma viagem psicadélica de causas e efeitos sem controlo aparente. E temos, obviamente, a possibilidade de a viver trancando todas as portas e janelas para fugir às correntes de ar.
São escolhas intermináveis e também a escolha de não assumir qual fazer. Na ignorância, podemos viver, simplesmente, como uma garrafa sacudida pelas ondas que não sabe a que praia chegar.

sábado, 12 de maio de 2018

sempre gostei de barcos


Sempre gostei de barcos. São deliciosas metáforas da vida, pequenos cascos ao sabor de ondas muito maiores do que se entendem. O balanço não me incomoda, o enjoo não me acomete, e os desafios, mesmo incalculáveis e assustadores, não deixam de nos enredar em viagens que nos arrepiam de emoções.
Quanto mais pequenos, mais aliciante é o atrevimento da entrega a tudo o que não se pode controlar, maior é o reconhecimento de que a experiência nunca é suficiente, que a coragem e a confiança no melhor dos nossos instintos são as únicas armas verdadeiras que possuímos.
Todas as manhãs são uma promessa de viagens e perigos a vencer a bordo das nossas frágeis embarcações. Por isso sempre gostei de barcos e da expectativa das surpresas monumentais dos mares que enfrentamos.
Que graça tem ficar em terra e confiar apenas no conhecido?

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Cascais a sonhar alto

Forte de Santo António - MMF
Sonhar ainda ocupa algum espaço e, apesar da natural propensão humana para descobrir dificuldades na expressão prática do sonho, é por aí que o homem avança, sem outro remédio senão o de construir à medida dos seus castelos construídos no ar.
Neste caso, não sendo um castelo, é pelo menos um forte, símbolo de muita história e de como somos todos capazes de defender o que se acha digno da nossa identidade e do nosso património cultural.
O Forte de Santo António é um desses símbolos, capaz de despertar a nossa imaginação e a nossa curiosidade. Foi isso que se constatou na sua abertura ao público no passado 25 de Abril, quando milhares de pessoas o visitaram e procuraram nas suas paredes sinais da histórias que por ali se passaram. 
A observação desse interesse sobre o forte e a sua utilização ao longo dos séculos inspirou mais um sonho: a possibilidade de se transformar aquele espaço num centro de observação da sua história, através de dramatizações dos factos conhecidos desde a sua construção.
Em vez de delegar para mais um agente turístico a sua exploração, por que não transformá-lo num local dedicado à cultura histórica, entregando-o a grupos de teatro capazes de contar a sua história em trinta minutos ou mais?
Temas não faltam e uma bilheteira não seria nada de mais para nacionais e turistas interessados em passar algum tempo a assistir aos ricos enredos do que por ali ocorreu. Um museu vivo e animado, para deleite dos visitantes, durante alguns dias da semana.
É sonhar alto um Cascais mais espectacular, mas tudo é possível e alguns sonhos têm a habilidade de não cair em saco roto. Afinal, onde há lugar para a modernização também o há para iniciativas que nos tragam conhecimento e orgulho no nosso património. E a história é sempre inspiradora.

segunda-feira, 7 de maio de 2018

que medo é esse afinal?

"Mundos" by MMF

Podemos dizer o que quisermos, teimar olhar para o Sol através de uma peneira, que a verdade é só uma: em conjunto não nos sentimos jamais capazes de ser livres. Fazemos o impossível para nos mostrarmos como os outros, inventar formas e mais formas de sermos exactamente o que os outros são, e de lhes agradar como se não existíssemos. 
Parecemos não saber como viver a nossa individualidade e, quando não são os outros a assaltar-nos com os seus julgamentos, é a culpa que nos impomos que nos amarga a existência. 
De que temos medo, afinal? De sermos fiéis a nós próprios? De deixar ir a dependência e de aproveitarmos de uma vez o que gostamos e somos, sem necessidade dos outros? Por que nos queixamos de solidão no meio de multidões? E por que não conseguimos perceber que o que nos falta é viver a nossa individualidade e que esse é o nosso derradeiro propósito?
Temos tempo para gozar a nossa unicidade a um outro nível, e desperdiçamos a liberdade desta vida, que nos permite passar por experiências únicas. No final, todas elas contribuem para o caldeirão comum, mas esta é a oportunidade real de que dispomos para desenvolvermos a nossa criatividade da forma que melhor nos serve.
Em vez disso, falhamos miseravelmente por nos impedirmos de pensar por nós próprios e atendermos às nossas verdadeiras necessidades. Que medo é esse, afinal, fantasia mórbida que nos paralisa, desanima e nos arrasta pela vida sem noção do ânimo que temos e nos recusamos a manifestar?

sábado, 5 de maio de 2018

a árvore das patacas

"Money on my mind" by Nicholas Tarr, Staachy Art
A árvore das patacas existe. Sobretudo na versão pandémica de todos os males e infelicidades, repartida por hospedeiros despedaçados e parasitas furiosos. O que falta compreender é que as patacas são energia e cabe ao indivíduo moldá-la na medida dos seus mais nobres interesses.
A sua visão amorosa e correcta não é a mais corrente, sufocada como está em taxas e impostas obrigações. Assim como as incontornáveis sobre bens essenciais como a água, energia, alimento e comunicações.
Cada vez que um pataqueiro do lado negro inventa uma nova forma de extorquir patacas, acrescenta um grão de areia ao dique da livre circulação da riqueza natural. Os pataqueiros negros têm a distorcida noção de que acumular mais do que aquilo que podem usufruir no período de uma vida é um sintoma de sucesso. São criaturas bloqueadas, como uma artéria entupida de gordura, incapazes de entender que a morte (ou mudança) é o seu único destino nesta vida.
A comunicação e a partilha são uma extensão do amor, assim como quando se junta um bom molho de palha e se fortalece a sua resistência. A aliança e entendimento com mais e mais parcelas do maravilhoso e delicado ecossistema da existência é o inesgotável e o melhor caminho para a riqueza.
O diabo é a multiplicação de impostos pagamentos pela livre circulação da energia das patacas. É o que está a toldar a natural expectativa de abundância que a todos é devida. Coágulos a remover pelo superior interesse do bem-estar de todos.
As patacas também são felicidade se traduzidas como generosidade e não medrosa avareza gerada pela falta de fé na perfeição de um sistema que a todos basta naturalmente. O que falta é uma visão global de um mundo que funciona como um relógio suíço se entendido no seu conjunto de um resistente e seguro molho de palha.
Falta essa visão a quem tem a pretensão de governar e gerir o bem geral, a quem aposta miseravelmente na realidade mais negra dos pataqueiros, usando o poder da riqueza para estrangular a fluidez da felicidade alheia. Como se pode ser líder com tamanho descrédito no potencial de tudo e todos?


sexta-feira, 4 de maio de 2018

mansidão a donuts

by Leigh Anne Eagerton 

Diz quem sabe que ovelha mansa mama do seu e do alheio. E que o falar doce leva a água ao moinho certo. Deve ser por isso que tanta gente enfia um donut açucarado pela goela abaixo logo de manhã, na expectativa de não ter que engolir amarguras o dia todo.
Já sobre a mansidão se devia acrescentar que a esmagadora fatia vai para a que nasce do medo e paralisa. Não há donut que a salve se a sua acção se pauta pela falta dela. Porque não agir é uma escolha e, portanto, uma acção idêntica à do lobo com pele de ovelha. 
Os açúcares rápidos, o fast food e outros atalhos da vida são assim. Trazem o alívio breve da alienação, porque o que leva à sua escolha é a dúvida, o medo. E assim se remete a perfeição e a sua certeza para o território das malvas que, curiosamente, se podem usar para tratar as infecções.
Diz ainda quem sabe que há um tempo para tudo. Todo o processo tem o seu tempo e o maior pecado é sem dúvida o da impaciência. O fast food do espírito, num mundo tão esquecido da sua imaterialidade, exige mais mestria do a dos óleos ferventes e outras ilusões do Inferno.
A verdadeira mansidão não está em saldos, nem é uma pechincha. Exige atenção ao momento presente, o foco de quem sabe arredar a urgência alheia para fazer o exercício mental de entender onde estão as causas e os efeitos das propostas colectivas. Só então pode surgir a escolha que melhor serve o indivíduo. A pressa sempre foi péssima conselheira.
A seguir, venha de lá o donut, porque todas as doçuras humanas são permitidas, a seu tempo e a gosto de cada um. Já que é tão fútil como inútil ter a pretensão de viver pelo gosto dos outros.


quinta-feira, 3 de maio de 2018

maçãs e metáforas

Na maçã é que está o ganho. Primeiro pela cor, depois pela forma, a seguir pelo aroma, e ainda pelo gosto, textura, etc. Uma autêntica armadilha de captura de sentidos. A lagarta, essa é um bónus para os mais afoitos. Ou seja, quem tem uma maçã, tem tudo.
A Eva é que ficou em maus lençóis com o dito fruto. Atirou-se-lhe com o pecado em vez de se lhe reconhecer coisas de grande significado como o da maçã do Newton, a que manda o médico esperar à porta, ou a dos computadores snobs do Jobs. 
Nos pés de 
Tartes de maçã e canela, apfelstrudel, puré de maçã e até a dita enfiada na boca dos infelizes suínos bebés, são pertença de outro universo. Caramelizadas e agora em fatias desidratadas. Com natas ou reduzidas a gelatinas açucaradas na época da colheita. Dizem que o sumo faz milagres.
Na conta de metáfora, revemos numa simples maçã um universo inteiro ou uma vida humana, à laia de espelho de variadas situações. Entender a riqueza deste fruto é mergulhar numa tese científica sobre o significado de todas as coisas.
Ou, mais simplesmente, compreender uma maçã é o mesmo que compreender um elefante ou os mistérios da ciência dos foguetões. Cada um na sua escala, entenda-se.

segunda-feira, 30 de abril de 2018

entre mundos

"Entre Mundos" by MMF
Bruxos, feiticeiras, médiuns têm uma relação sui generis com a realidade. Em determinados momentos têm percepções que vão além da comesinha relação com os cinco sentidos. Um sexto, diz-se, se bem que poderíamos considerar que, se os outros são cinco, pelo menos mais cinco lhes podem ser acrescentados, porque as percepções extraordinárias se confundem livremente com qualquer das proporcionadas pelo corpo. E ainda um sexto, de sensações, emoções e manifestações sem gramática definida e autorizada, perfazendo pelo menos onze mágicas formas de reconhecer o que nem sempre é óbvio nem entendido.
Numa versão mais pragmática, todos viajamos entre mundos, realidades e entendimentos. Acontece, por exemplo, quando as explicações que se debitam não chegam para que alguém abandone uma forma de pensar e persista num modelo que para nós já é limitado. Nessa altura percebemos que o nosso mundo interior tem informação que não chega à outra pessoa.
Por alguma razão, nem sempre deixamos que o nosso universo interior se expanda e abrace novas formas de avaliar a realidade. Mas quando o fazemos, viajamos entre mundos, aceitando as novidades, as possibilidades em aberto.
Cultivando essa flexibilidade, que depende grandemente da nossa vontade, a viagem entre mundos é uma experiência estimulante e capaz de nos presentear com lufadas de emoções e súbitas descobertas.
Viajar entre mundos não têm de ser um mergulho na superstição, no medo ou nas ideias feitas sobre quem reconhece outras formas de realidade. É um exercício de consciência que se cultiva e nos faz ponderar sobre a infindável possibilidade de expansão da nossa experiência de vida.
Entre mundos é a criatividade que comanda e molda a acção.

sábado, 21 de abril de 2018

segredos do limão

Lemon Study I, by Marissa Volg
O sabor da casca é insuperável, o cheiro aceitável, a menos que misturado com outras substâncias de perfumaria. O fruto em si, muito bonito, digno da apreciação de leigos e artistas. Um vencedor, dir-se-ia, não fora o amargor que lhe vem de dentro. O sumo, que dizem fazer bem a quase tudo, é como uma vacina: experimenta-se e depois evita-se, para jamais nos enganar sob a capa de beleza que o esconde.
Há pessoas assim, como o limão, com segredos ácidos que, em doses apenas maiores do que uma simples e rápida prova, nos corroem. A sua maior virtude: ensinar-nos que não as queremos por perto.
Já o limão com açúcar dobra o enjoo, acumulando o ácido e o doce levados ao extremo. Faz lembrar lutas religiosas, guerras frias, amores e ódios que nos devastam. Vade retro
Quase suportável, o achar de limão. Mas não nos iludamos: para quê escolhê-lo, quando tantas outras combinações o superam?
Afinal, a vida é feita de escolhas, com muito sumo desagradável em forma de tentação. O diabo que os carregue, apre!

domingo, 15 de abril de 2018

uma questão de lógica


Por uma questão de lógica, se condenamos ataques e bombardeamentos, que sentido faz atacar ou bombardear quem faz o mesmo? Só se for o de abdicar do que achamos certo para descer de nível num jogo que, à partida, não se quer jogar.
Que sentido faz, na mesma linha lógica, condenar à morte quem mata? Ou ser a favor da pena de morte e depois condenar o aborto como um assassínio? 
Olho por olho e dente por dente é uma resposta de quem está acossado, de que não vê alternativas. No entanto, há sempre outra forma de ver as coisas e não é perpetuando uma cadeia de agressões que se vai à origem dos problemas para mudar o padrão, ou paradigma, que nos aprisiona numa realidade que não se quer viver.
Tomar partido também não resolve um conflito. Apenas adiciona mais peso a um dos pratos da balança, sem diluir o que divide, sem conduzir uma outra direcção.
Estaremos condenados a debatermo-nos ciclicamente com estes impulsos irracionais, em vez de reconhecer o medo pelo seu real valor, ou falta dele?

sexta-feira, 13 de abril de 2018

sexta-feira treze

"Friday and 13"

Nasci numa sexta-feira treze e nunca entendi a negatividade que a ela se associa. O treze é um número simpático e reduzido à sua expressão mais simples, dá quatro, o número do quadrado que sustenta as pirâmides, por exemplo. É sólido, representa fundações e outras construções mentais que muito nos aproveitam.
Usar o dia para assustar alguém é, no mínimo, uma fantasia de mau gosto. A maior parte das pessoas diverte-se a plantar sementes de superstição nos outros e isso não é muito saudável. Especialmente neste momento em que a nossa consciência alargada nos mostra que, mais do que nunca, devemos explorar todas as maravilhosas potencialidades que o nosso pensamento é capaz de imaginar. E que é possível pôr em prática para moldar o mundo de uma forma mais agradável e prazenteira.
A sexta-feira treze devia ser celebrada como um momento de viragem e de concretização, de reflexão sobre a força que podemos imprimir à realização dos nossos sonhos.
Reza a história familiar que, tardando a minha resolução em vir a este mundo, só me decidi depois de uma carga de elefantes, em plena Gorongosa. Ora, o elefante é um símbolo de boa sorte e também  de sabedoria, persistência, determinação, solidariedade, sociabilidade, amizade, companheirismo, memória, longevidade e poder. Por que razão haveria, então, de ver o pior da sexta-feira treze, com tantas características auspiciosas a ela associadas?
Sempre que chega uma sexta-feira treze sinto, invariavelmente, uma energia poderosa e alegre, apenas toldada pelos disparates que por aí se dizem sobre o dia. Que mal se pode ver num gato preto ou num guarda-chuva aberto dentro de casa? A não ser, claro, preferir explorar a adrenalina do medo e as suas pouco inteligentes consequências?
Abençoadas sextas, a treze e não só. A vida está sempre a presentear-nos com tudo o que precisamos para a transformar num carrossel de alegrias e as multiplicar em maiores benesses. E todos a podem ver dessa forma, em vez de desperdiçarem o pouco tempo que nos cabe aqui em infelizes futilidades.

quinta-feira, 12 de abril de 2018

aqui na terra são demais

by Carla Sonheim

Que os outros não gostem de perder tempo a pensar, é lá com eles Se gostam de gastar as suas horas acordados a alimentar pensamentos que parecem tornados dentro das suas cabeças, também é com eles.
O que não está certo é imporem aos outros, sem nenhuma espécie de respeito ou contenção, esses frenesis desnecessários. E poluentes, que constituem um assédio indefensável e uma poluição que devia ser compensada com coimas agravadas e penalização nos impostos.
A liberdade de expressão não deve ser interpretada como uma autorização para massacrar os outros com toda a espécie de aleivosias que atravessam as mentes desestruturadas e com falta de ocupação meritória.
O discurso errático dos loucos é muitíssimo mais aceitável do que os disparates que a maioria das pessoas se entretém a debitar o dia todo. Quem tem medo do silêncio? Que verdades aterradoras tem ele para murmurar dentro dessas cabeças que enchem o espaço à sua volta de guinchos aflitivos de pânicos vários?
Por muita compaixão que se tenha, é difícil chegar ao fim do dia sem pensar um par de vezes em estrafegar uma dessas almas que mais parecem sirenes desgovernadas depois de uma trovoada.
Todas as escolas deviam introduzir, urgentemente, uma aula de reflexão obrigatória, com um programa intensivo de educação sobre o amor próprio e outros exercícios formadores de indivíduos mais racionais e elucidados sobre os terrores sem sentido.
Vozes de burro não chegam ao céu, bem sabemos. Mas aqui na terra são demais.