sexta-feira, 30 de março de 2018

porcos que são feios e maus

by David Archer (Australia), foto daqui
Se todos os porcos fossem cor-de-rosa, entendiam-se algumas confusões. Mas não são, por isso as confusões são ainda mais difíceis de entender. Se é que alguma confusão possui, na sua génese, entendimento envolvido.
Acontece que alguns porcos são transparentes, camuflados, envidraçados, vagos, enviesados. Outros, mais simplesmente, limitam-se a ser o que são, sem mais danos ou enganos associados.
Porcos que nada têm que ver com os orwellianos personagens, cuja estimativa de valor se firma nos deméritos da valorização alheia. É mais uma constatação que nos faz pensar por que razão algumas religiões sugerem que sejam retirados da cadeia normal de alimentação.
Talvez por isso mesmo, dado os tempos que correm, e com a exploração agropecuária a dissolver as qualidades da nossa atmosfera e as propriedades dos nossos corpos, seja de ter em consideração alguma causa e efeito plasmada na bagunça e inversão de valores a que se assiste.
Nem todos os porcos são maus, não senhora. A questão não se põe em termos da mais normal e simples polarização dos termos.  A dimensão real em que se movimentam é que perfaz uma agenda completamente estranha às demais espécies. Cada macaco, desculpem, cada porco no seu galho, seria a consideração mais adequada. O que faz correr um porco nunca será exactamente o mesmo que faz correr uma cobra ou um jacaré. Apesar das aparências, há diferenças, nem que sejam de puro método.
Os patos fazem tanto ou mais chinfrim do que os porcos, no entanto, chamar pato ou porco a alguém não é a mesma coisa. 
Também não é simpática a apropriação machista do mealheiro, se é que realmente surgiu da possibilidade de uma porca ter capacidade para produzir seis milhões de bácoros em dez anos. O que é que o inseminador tem que ver com isso? Já a versão da argila pygg é muito mais credível. No entanto, é significativa a associação ao acumular de riqueza, em substituição da natural abundância expectável em todas as circunstâncias da vida.
Têm mesmo de ser feios e maus os porcos deste mundo? As versões rosa e com asinhas são aparentemente mais simpáticas, mas todos sabemos que a chantagem emocional também tem o seu preço e nem o rosa nem as asas são eternos. Providenciemos, pois, cautelarmente, em relação aos porcos.
Também haveria algo a dizer sobre os porcos azuis ou os verdes, mas fiquemo-nos por aqui.

quarta-feira, 28 de março de 2018

a beleza da democracia


A beleza da democracia é que é um conceito que apenas depende de nós. São as nossas ideias, e até a falta delas, que criam limites ou uma infinidade de soluções dentro desse conceito. Como nas relações, na forma como entendemos viver a nossa vida, é a nossa noção de liberdade que se manifesta, por excesso ou por defeito, para estabelecer os contornos que desejamos serem a marca distintiva do que realizamos.
Grupos, países ou locais são fruto do uso que damos às nossas escolhas. Os ideais, por melhores e mais atraentes que os pintemos nas nossas cabeças, só se mostram nas nossas acções na medida  em que nos permitimos pô-las em prática.
O líderes que escolhemos, não têm de impor as suas ideias, na medida em que são sempre insuficientes em comparação com o vastíssimo leque das de quem os segue. O seu trabalho é ter a visão de conjunto que permita unir e ampliar as opções de todos.
Cascais é a nossa terra, o nosso corpo colectivo, o nosso porto de abrigo e a possibilidade sempre existente de moldar a nossa vida pelos limites cada vez mais extensos que possamos imaginar. Não esperemos que pequeníssimos claustros de cidadãos, por falta de imaginação de tempo ou de experiência prática do que pode ser cada vez mais perfeito, limitem a potencialidade de transformar este território nos nossos sonhos e ideais.
Os partidos não definem a qualidade de vida que nos caracteriza. Somos todos e cada um de nós que definimos essas entidades colectivas e a experiência que podem trazer à nossa existência. Um grupo político, esvaziado de ideias e do coração de quem o compõe só pode traduzir uma realidade empobrecida para o concelho e para os seus munícipes.
Tudo começa e acaba e nós, na força com que acreditamos que podemos criar uma realidade cada vez mais rica e adequada às nossas expectativas, e na coragem das nossas acções nessa direcção.
Todos os dias são oportunidades para mudarmos uma areia na engrenagem e somos duas centenas de milhar de possibilidades para que isso aconteça. Acham pouco?

domingo, 25 de março de 2018

nem por sombras?


Come gather 'round people / Wherever you roam / And admit that the waters / Around you have grown / And accept it that soon / You'll be drenched to the bone. / If your time to you / Is worth savin' / Then you better start swimmin' / Or you'll sink like a stone / For the times they are a-changin'. // Come senators, congressmen / Please heed the call / Don't stand in the doorway / Don't block up the hall / For he that gets hurt / Will be he who has stalled / There's a battle outside / And it is ragin'. / It'll soon shake your windows / And rattle your walls / For the times they are a-changin'. // Come mothers and fathers / Throughout the land / And don't criticize / What you can't understand / Your sons and your daughters / Are beyond your command / Your old road is / Rapidly agin'. / Please get out of the new one /If you can't lend your hand / For the times they are a-changin'. (Bob Dylan, 1964)

Queremos todos mudança e todos nos assustamos com ela. Porque exige honestidade e clareza. Porque nos custa admitir essa parte do nosso carácter que se acomoda às coisas que estão mal e nas quais tomámos parte, nem que seja pela recusa de tomar uma decisão diferente.
Em cima do muro fica o inferno, aquilo que nem é sim, nem é não. A dificuldade em tomar uma posição que, se é certa, mesmo assim suscita a dúvida e nos atormenta; e se é não cria a culpa que nos esmaga.
Os tempos, ou as circunstâncias mudam, mesmo assim. Somos mais de sete biliões de pessoas a tomar decisões, e aqui estou a partir do princípio simplista de que só nós contamos para esta insana complexidade de possibilidades que tudo e todos afecta. Mesmo assim temos a pretensão de saber o que andamos a fazer e que podemos prever um mínimo de desfechos lógicos.
Há, apesar disso, alguma lógica e possibilidade de coerência neste inocente estado de consciência a que nos remetemos? Nem por isso, nem por sombras.
O mais engraçado é que, apesar disso, com mais ou menos consciência, fazemos uma cara séria e assumimos uma postura de quem sabe exactamente o que está a fazer. 
E a mudança continua, independentemente da nossa vontade e do nosso contributo. Porque apenas a consciência muda, na nossa contemplação desta contínua e inatingível complexidade de acções e efeitos.
Portanto, podemos ser exactamente que quisermos, ou sofrer por acharmos que não. Nada disso importa realmente para o resultado final de todas as coisas, neste insignificante papel que desempenhamos individualmente. 
Por outro lado, uma pequena pedra deslocada do seu sítio, pode fazer desabar uma montanha. E as montanhas não estão à espera disso, claro. Por isso, que garantias eternas nos dão também as montanhas, se mais tarde ou mais cedo desabam como tudo o que esmagam? 
As probabilidades são idênticas para grandes ou pequenos e nisso é que está a justiça de tudo.
A memória é uma espécie de manual do jogo da vida, como esta letra do senhor Dylan que, há cinquenta e quatro anos, preconizava a mudança e que tão bem se aplica aos nossos tempos.

sexta-feira, 23 de março de 2018

livros, redes e conhecimento

foto MMF

Esta imagem de uma exposição de há anos, no Porto, de livros guardados atrás de grades, numa visualização daquilo que sempre foi o destino, ou fado, destes objectos e do conhecimento, das ideias que armazenam através do tempo.
A leitura é sempre um passeio novo, por terrenos desconhecidos, virgens e revigorantes. Amplia a nossa visão do mundo e das possibilidades sempre renovadas que os outros nos descrevem. A forma com pensam exemplifica a grande variedade de pensamentos que sete biliões de seres humanos praticam neste planeta a todo o instante, criando infinitas possibilidades e combinações.
Não é fácil imaginar esta rede natural de conhecimento que funciona sem parar e sem ajuda de outro instrumento que não o do nosso pensamento. É a maior rede sem fios do mundo, gratuita, completa e verdadeiramente livre.
Com alguma ironia, as redes também simbolizam prisões, divisões, limites que pomos em prática. Quando abandonamos a visão geral para nos escondermos atrás de protecções imaginárias que, afinal, nos separam com a sua segregação artificial.
Quando falamos uns com os outros, se nos abstrairmos das convenções sociais que nos engaiolam muito mais do que qualquer rede de metal, a troca de conhecimento e de experiências é motivante e libertadora.
Ao ler, entramos também em contacto com o registo escrito de conhecimentos e ideias de quem não está fisicamente presente na nossa vida. Ou quando escolhemos qualquer outra forma de expressão de um ser humano, artística, quotidiana, pensada ou espontânea. 
Há sempre algo extremamente motivante na percepção deste quadro magnífico de que fazemos parte e que impulsiona a nossa experiência neste mundo. Qualquer coisa que nos faz pressentir a divindade colectiva de que fazemos parte. A pertença superior que nada nem ninguém pode alguma vez anular. 
Tudo o resto é ilusão e birra de quem presta mais atenção ao que se passa com os outros do que ao que traz dentro de si.

terça-feira, 20 de março de 2018

página cinco

página 5
Ouvi ontem esta expressão que me encheu as medidas. Refere-se a quem, sabe-se lá por que razão, lê livros, compêndios ou enciclopédias de informação pela rama. Até à página cinco. O que diz parte da introdução ou do primeiro capítulo. Sem jamais chegar a ler a obra completa, muito menos a informação que sustenta a ideia, o contexto, a arquitectura mental em que se insere.
O que importa, para uma imensa parte das pessoas, é a descoberta de um novo conceito que lhes desperta as asas da imaginação. Não necessitam da honestidade do aprofundamento do assunto, não as atrai todo a complexidade de pensamentos que lhes deu origem.
Basta-lhes adquirir um novo conjunto de palavras com que podem brincar, reproduzir como verdades irrefutáveis e impingi-las aos outros como a sua maravilhosa, e nova, filosofia de vida.
Poderíamos pensar que esses fragmentos de conhecimento, que no máximo, equivalem a uma falange cortada por mafiosos à mão de um corpo inteiro, apenas correspondem aos cinco minutos de grau de atenção das pessoas que escolhem adquirir a informação dessa forma. 
Poderíamos ainda descartar a importância do facto de algumas pessoas acumularem essas falanges rapinadas a vários corpos inteiros constituírem um disforme corpo de informação e conhecimento em que as pessoas baseiam a sua vida.
Essa ideia é assustadora, mas real. Partilhamos o mundo e o conhecimento dele com um exército de falanges coladas com cuspo, sorrisos e beatíficas expressões epifânicas. Que, ainda por cima, muita gente difunde liberalmente e te mesmo a grande lata de reproduzir em workshops de dois meios dias como a solução para todos os problemas.
Ou seja, a página cinco é um pesadelo materializado com que convivemos diariamente. Encarar as coisas de forma leve não é o mesmo que encará-las com leviandade. Não admira que haja tanto disparate a produzir-se neste mundo.

segunda-feira, 19 de março de 2018

pai, filho e espírito santo

"Pai" by Paulo Paz


A velocidade dos desejos pessoais aumentou dramaticamente. Talvez porque a efemeridade de tudo está cada vez mais presente e visível nas nossas vidas. Não é como o fast food a substituir as longas jornadas do ser humano para alimentar o corpo físico. Mas é uma premência muito clara sobre as nossas necessidades reais. Haja tempo para entender que a rapidez aqui tem que ver com a obrigatoriedade de evoluirmos para dimensões mais modernas da nossa existência.

"Filho" by Paulo Paz
Estamos habituados a uma linguagem linear, a ir de a para z, do preto ao branco, do menos para o mais. No entanto, se quisermos sobrepor todas essas premissas e multiplicá-las tantas vezes quantas nos apetecer e nos lembrar-nos, explorando cada grau de cada uma delas, e ainda considerar que todos podemos fazer o mesmo, apercebemo-nos da complexidade que rege a nossa realidade. Somos uma multidão a decidir a todo o instante sobre os caminhos da nossa vida. A maior parte do tempo, irados e frustrados pela insuficiência da nossa vontade em se sobrepor às demais. A presunção da nossa divindade, moldada pelo defeituoso conceito da unicidade que praticamos, dá cabo da nossa paciência. Custa-nos substituir a nossa omnipotência de deusinhos tiranos pela mais democrática ideia de peças interligadas do puzzle divino que exige cooperação para se manifestar plenamente.

"Espírito Santo" by Paulo Paz
No final tudo se resume à rendição a uma sabedoria maior, ao espírito livre de todos os pré-conceitos do que somos, individualmente e livre de todos os limites de grupos, clubes e associações que nada mais são do que frágeis imitações do puzzle maior a que pertencemos. Na liberdade que nos cabe para nos ligarmos a esse espírito maior, que partilhamos de facto, está o nosso poder. Apenas aí reside a chave de toda a realidade, sem limites, sem mal-entendidos.

quarta-feira, 14 de março de 2018

escolas livres de excessos


Quando se mexe nos contratos de fornecimento de refeições as escolas, o ideal era mesmo ter a coragem de eliminar, pura e simplesmente, os alimentos que prejudicam a saúde física e mental das crianças e dos jovens.
Estando provado que os refrigerantes, açúcares, fritos e alimentos excessivamente processados, o que raio faltará para que se assuma a necessidade de, nas escolas se proibir o consumo de bebidas e alimentos nocivos à saúde?
Será que o interesse das grandes empresas de sobrepõe com vantagens a um défice de desempenho escolar e a um futuro de maus hábitos, doenças e tratamentos ruinosos?
É uma vergonha, ou muita falta dela, que governantes que se afirmam conscienciosos e defensores do interesse maior dos cidadãos, não se comprometam definitivamente com a saúde e bem-estar dos mais novos, assegurando-lhes um futuro bem mais risonho e promissor.
Isto, claramente, sem prejuízo do livre consumo de toda a sorte de alimentos por adultos informados e apreciadores de açucares e de outras substâncias e paladares universalmente apreciados pelos bons garfos.
Mas não é deliciosamente aliciante pensar em novas gerações de crianças e jovens saudáveis e bem dispostos, com clara consciência de que a ingestão de alimentos menos adequados também é possível dentro de parâmetros mais adequados?
A educação também deve oferecer uma disciplina mais coerente e benéfica para os hábitos pessoais, orientando jovens e pais para uma maior consciência e melhores práticas em relação aos cuidados de saúde física e mental.
Eliminar excessos indesejados das cantinas escolares é uma medida semelhante à proibição de substâncias como o álcool e o tabaco. A indústria alimentar devia ser igualmente disciplinada para orientar a sua oferta adequadamente para as diversas faixas etárias e de acordo com a actual consciência de práticas nocivas à saúde.

sexta-feira, 9 de março de 2018

a liberdade do amor



Falemos hoje de amor. Não a baboseira romântica construída a partir dos contos de fadas ou do felizes para sempre. Ou da fragilidade que nos leva a procurar no outro uma metade, em vez de o entender como uma das muitas peças de um puzzle que continuamos a ignorar e a adiar como uma visão mais realista das nossas relações.
O que procuramos nos outros é uma partilha, uma comunhão, a confirmação de que fazemos parte de um todo indissolúvel. O que habitualmente estraga essa partilha de pares ou mesmo de grupos é a falta de consciência de que, na verdade, ninguém é dispensável no conjunto pela simples razão da riqueza que traz para cada um dos outros. No entanto, a ilusão criada pelo marketing dos amores e dos clubismos exploradores dos limites discriminatórios, tudo reduz a um campo minado de desilusões e fasquias impossíveis.
O amor destas linhas pertence a uma outra esfera. A da dimensão do que nos faz sentir bem, que nos enche de felicidade e esperança. É uma forma de estar que todos os dias sofre duros golpes face aos desinteressantes preconceitos associados ao que nos vendem como amor.
Falamos de escolhas que nos afastam do medo, da paralisação de imaginar o pior e não agir sobre o nosso acertado instinto. De perceber que os outros só nos ameaçam porque nos deixamos levar por todas as parvoíces que também nos martelam a cabeça.
Este amor é a coragem de agir, de acreditar que há sempre uma outra forma de ver as coisas e que, experimentando-a, se multiplicam as nossas hipóteses de acertar e colher os frutos de coisas diferentes.
Hoje, a escolha é a do conhecimento, a desse amor-consciência que nos energiza e transforma a nossa condição de bichinhos assustados na versão, muito mais interessante, de criaturas capazes de viver mais livremente o seu verdadeiro potencial.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

aos encontrões na luz

foto MMF
Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Nem oito, nem oitenta. Nem toda a gente é completamente má, nem completamente boa. Vivemos de luz e escuridão, mas isso também não quer dizer que se saiba exactamente o que se anda a fazer. Às vezes, na sombra até nos orientamos e a maior parte das vezes, na mais completa luz, parecemos uns carrinhos de choque aos encontrões uns aos outros.
Outras vezes as coisas passam-se à nossa frente e não queremos meter-nos, julgando que assumimos assim uma posição de neutralidade. Nada mais errado. Porque uma decisão é uma acção e, neste caso, deixamo-nos nas mãos das decisões de todos os outros. Isto porque, fazendo parte de um todo em que as decisões determinam os resultados, e são um efeito imparável, a nossa neutralidade determina apenas que são as acções dos outros que vão moldar esse efeito, não as nossas.
A Terra e tudo o que nela existe, incluindo a pretensiosa Humanidade, é um todo em constante movimento e evolução, determinada pelas acções e decisões de tudo e todos. A neutralidade é uma ficção que apenas permite que as tomadas de posição dos outros definam o rumo das nossas vidas.
Na verdade, quando nos recusamos a decidir é como se estivéssemos convencidos que podemos manter-nos no meio do turbilhão da corrente sem sofrer os seus efeitos.
A cada um o seu tipo de masoquismo preferido, pois até isso é perfeitamente natural e defensável, ou não seria o que nos esforçamos tanto por fazer a todo o instante.
E o que é que acontece quando tomamos consciência disso? A maioria dos alemães acreditou piamente que não se manifestando contra as acções dos nazis a sua consciência estava salvaguardada. Isso modificou a qualidade dos resultados que vitimaram milhões de pessoas por todo o lado?
Quando as pessoas afirmam que não se metem em política, quando não vão votar, quando não assistem às sessões públicas dos seus órgãos de poder local, não se informam sobre as deliberações que vão determinar o lixo que têm à porta de casa, os impostos que pagam para não terem onde estacionar sem pagar, onde se tratar em condições dignas ou como deixam de poder ver a beleza natural da terra onde vivem porque alguém decidiu ganhar dinheiro com bolhas imobiliárias. Quando acreditam que nada disso lhes interessa ou contribui para a sua felicidade, os resultados são os que aparecem nos seus sonhos?
Acreditam sinceramente que vão poder respirar com a cabeça enterrada na areia? Acreditam que o facto de sonharem acordados é suficiente para alcançar o paraíso?
Boa sorte. Viver como escolhos arrastados pelas tempestades deve ser, realmente, o Eldorado da Humanidade.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

curto-circuitos de desentendimento


Falar sem para não é ser comunicativo; pelo contrário, é tentar evitar a comunicação. Andar sempre atrás dos outros a despejar episódios da vida própria e da alheia também não é partilhar ou socializar é massacre levado a cabo por gente que não faz a mínima ideia de como se pode estar com os outros.
Também não é sinceridade despejar tudo o que passa pela cabeça em qualquer circunstância; é apenas falta de senso comum e muito má educação.
Se as pessoas tivessem aproveitado mais a escola, evitariam muito do caos que se desenrola nas suas vidas. Por exemplo, aprendendo um pouco mais de gramática e a entender a estrutura da língua que falam e que é, afinal, um espelho da forma como pensam.
Muitos dos atritos e conflitos actuais são, sobretudo, resultado da fraquíssima compreensão da língua que a maioria esmagadora dos indivíduos tem. Não são capazes de interpretar correctamente o que ouvem ou lêem, não compreendem frases idiomáticas e, além da cultura, falta-lhes imenso vocabulário. Não lendo, além da informação que não têm, também não ganham prática de pensar de forma correcta, nem de estar em contacto com ideias e a forma como se formulam.
O resultado é, numa era de comunicação avassaladora como a que decorre, um constante ruído de mensagens que a maioria esmagadora das pessoas não tem capacidade para decifrar.
Para compensar isso, a resposta mais utilizada é criar mais ruído pessoal, como um eco e como alguns fazem quando, em presença de quem não fala o mesmo idioma, aumentam o volume da emissão de voz à laia de tradutor automático.
Ruído, sobre ruído, sobre ruído. Calem-se. Pelo menos o tempo suficiente para entenderem o imenso valor do silêncio. Para o sentirem e compreenderem a paz e a clareza que traz.
Se possível, comprem uma gramática pequenina e leiam duas páginas por dia. Alguma coisa há-de resultar do exercício que não se deram ao trabalho de fazer na escola.
Ter uma multidão barulhenta sempre agarrada aos novos meios de comunicação, sem capacidades básicas para os utilizar, não faz do conjunto uma sociedade mais informada. O retrato mais honesto é o de um gigantesco armazém de aparelhos em constantes curto-circuitos de desentendimento.

domingo, 21 de janeiro de 2018

voo cego

"snake dream" by Marita Moreno Ferreira (pen on paper)
Há alturas em que tem mesmo de ser assim: largar a pele que já não nos serve e abraçar uma nova, pronta para recomeços e experiências diferentes. 
Sonhar com estas criaturas é um desejo expresso de renovar a vida e as ideias feitas que alimentámos durante anos. Reconhecer que se está consciente e farto dos velhos métodos. Uma declaração de que se está pronto para uma inebriante e poderosa lufada de ar fresco.
Venha daí o tornado e aceite-se o voo cego que se vai apoderar de nós.

sábado, 20 de janeiro de 2018

vida com escamas

Os filmes de acção têm aquela característica VS (Vida Selvagem) ou NG (National Geographic) em que se anda sempre a correr para não se ser comido, morto, torturado ou aniquilado. São essencialmente filmes de terror em que nos apresentam um personagem simpático com que nos identificamos e depois põem perante um isco e obrigam a esbaforir-se em tentativas de sobrevivência até ao final da história.
Na vida real não é preciso inventar tramas e subtramas para navegar num mar de angústias de sobrevivência. Seria talvez mais prático encarnar nas escamas de um peixinho e abreviar o sofrimento para o nível não foi desta que fui comido e ui, fui comido. Níveis mais simples e menos cansativos. Se calhar, até com menos consciência VS e NG.
Na verdade, a forma de vida actual parece desenhada para nos lembrar que estamos apenas num nível VS e NG absurdamente sofisticado. Não satisfeitos com todos os imprevistos e perigos naturais da nossa viagem por este planeta, ainda tivemos o trabalho de inventar entidades colectivas e virtuais que nos perseguem, exploram e ameaçam a todo o instante, protegidas por mais leis e ideias feitas que nunca nos passaria pela cabeça imaginar como dignas de nos definir como indivíduos.
Chamamos-lhe civilização, cultura, desenvolvimento, mas... São apenas viagens de peixes graúdos e, sinceramente, muito mais estúpidos do que os mergulhos dos peixinhos que só esperam sobreviver um ou dois segundos mais do na escamação anterior.
E será que somos, como eles, capazes de apreciar simplesmente o prazer de um mergulho no desconhecido? Claro que não. Nem isso nos parece suficientemente atraente na ilusão de que somos todos fantasticamente inteligentes e capazes de controlar o filme das nossas vidas.
(Enganei-me no guião; este é, evidentemente, o de uma comédia.)

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

ouvem os passos?

foto MMF
Parece que vem alguém atrás de nós... Ouviu os passos? 
Acontece com frequência, quando se caminha pelo passadiço da duna da Cresmina, ouvir o barulho das tábuas a ceder sob o peso de quem por ali anda.
O curioso é que, muitas vezes, ao olhar para trás para confirmar que vem gente e ceder a passagem, não está ninguém próximo e o passeio continua, como se nada se tivesse passado.
O fenómeno pode repetir-se várias vezes durante a caminhada e, a menos que as alucinações auditivas façam parte da rotina destes passeios, não parece haver qualquer explicação racional para o som dos passos que seguem os caminhantes.
Certos locais parecem coleccionar histórias fantásticas e nem sequer lhes falta a imaginação popular a embelezar alguns factos menos comuns que lhes são característicos.
A Cresmina parece começar a desvendar uma vida muito própria, com este tipo de singularidades. Se conhece alguma, faça o seu relato e contribua para desvendar os seus mistérios. Pelos vistos, há mais do que os olhos vêem...

quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

continuem a sonhar

foto daqui
Nos idos anos 80, quando ainda era a única via de comunicação entre Lisboa e Cascais, alguns dos troços da belíssima Estrada Marginal estiveram sob ameaça de colapsar devido à erosão provocada pela água do mar.
A construção da autoestrada de Cascais, a partir de Caxias, foi acelerada para acautelar um iminente corte da circulação rodoviária. Na década de 90 a A5 passou a ser a grande alternativa à Marginal.
Agora, por causa do estado degradado da ligação ferroviária da Linha do Estoril, o grande plano é dedicar uma faixa exclusiva da autoestrada aos autocarros.
No entanto, alguns dos defensores dessa medida são os mesmos que se propõem construir mais uns fogos descaracterizados à entrada de Cascais, aumentando com isso a circulação automóvel nuns milhares de unidades, sem outras preocupações que as de 'plantar' mais imobiliário numa das zonas nobres da vila.
Dentro do mesmo obscuro raciocínio surge a venda do antigo hospital de Cascais para acolher o primeiro pólo universitário privado de medicina do país. Numa zona já há muito saturada em termos de circulação e estacionamento.
Farão estas medidas sentido para o benefício dos munícipes? Que capacidade real tem o centro histórico da vila para sustentar este tipo de projecto, quando estudos feitos se pronunciam contra as consequências do mesmo?
A quem interessam estes projectos megalómanos que enchem Cascais de betão e agravam as condições de vida de todos?
Não seriam estes projectos, e outros, como a mega escola de Economia, à beira-mar de Carcavelos, mais úteis no interior do concelho, onde o investimento teria um efeito bem mais benéfico para as populações, diminuindo as assimetrias em relação ao litoral?
Por que razão os cidadãos de Cascais não se pronunciam sobre estas questões, deixam vazios os lugares destinados ao público nas sessões camarárias e da Assembleia Municipal, vertendo todas as escolhas para as mãos de quem devia proteger os seus interesses mas, pelos vistos, não o faz?
Acham que depois destas e de outras aberrações decisórias os turistas vão continuar a chegar aos magotes para visitar o inferninho em que a Costa do Estoril se vai transformar?
Continuem a sonhar...

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

pequenos e grandes náufragos



Uma vez tive de explicar o que era isso da alma do fado, a amigos de diferentes partes do mundo, veio-me a lembrança deste poema de Cecília Meireles (Naufrágio), musicado por Alain Oulman e cantado por Amália.

Pus o meu Sonho no navio / E o navio em cima do Mar / Depois abri o Mar com as mãos (com as mãos) / Para o meu sonho Naufragar // Minhas mãos ainda estão molhadas / Do azul, (do azul) das ondas entreabertas / E a cor que escorre dos meus dedos / Colore as areias desertas // O vento vem vindo de longe / A noite se curva de frio / Debaixo d'água vai morrendo / Meu sonho (vai morrendo) dentro do navio // Chorarei, quanto for preciso / Para fazer (para fazer) com que o mar cresça / E o meu navio chegue ao fundo / E o meu sonho desapareça // [Depois tudo estará perfeito / Praia lisa, águas ordenadas / Meus olhos secos como pedras / E as minhas duas mãos quebradas]

Era o único que tinha na memória, por mor de se me ter atrasado um pouco a Portugalidade. Nada e criada em Moçambique, o género musical era-me quase tão estranho como aos ouvidos de outras nacionalidades. Mas esta letra em particular, que me encheu de incredulidade, ficou para sempre.
A sua tradução provocou a mesma reacção nos meus interlocutores. Em conjunto, interrogámo-nos sobre o possível sentido de ter um sonho e afundá-lo no mar. Ou em qualquer outro local.
Isso, ou a tremenda derrota que habitualmente se canta em muitos fados, como característica de um povo de que se diz ter dado novos mundos ao mundo, é um conceito estranho, ilógico, quase inexpressível.
Mais tarde aprendi a apreciar a fantástica capacidade portuguesa para abraçar todos os extremos, tão ilogicamente quanto possível, o que é, no fundo, uma forma de exprimir a grande tendência nacional para a aceitação.
Pelo meio fica o fado, às vezes brejeiro e leve, outras vezes trágico e desesperado. Ficam essas pessoas que apreciam a vida e a sua dualidade, expressa em poesia e música, ou choro e luto, nas ondas que a vida traz.
Queiramos ou não, o nosso fado são esses sonhos e esses naufrágios que endeusamos num género musical que tão depressa nos ensombra com tragédias, como nos empolga em fantasias.

sábado, 2 de dezembro de 2017

lua cheia


Hoje é dia de lua cheia. Ainda não decidi se vou virar bruxa, lobanil ou rã. Ou, mais simplesmente, se deixo o cardápio em aberto. Se dividir convenientemente a noite, osso ser tudo. Se não me perder para sempre nos prazeres de cada personagem...
É um erro recorrente na nossa vida, acharmos que devemos permanecer um determinado tipo de personalidade, só porque confundimos isso com força de carácter. Mas não é nada disso. Devemos perder o medo de mudar as facetas da nossa personalidade e deixar de exigir aos outros o mesmo.
Hoje é dia de lua cheia e de começar de novo. Hoje e sempre, comecemos muito e vejamos o que dá mais certo. E enquanto dura, vida doçura.

domingo, 19 de novembro de 2017

água e equilíbrio

Foto Mafalda Mendes de Almeida
Não se previnem secas deixando de regar jardins ou cortando a água às fontes. O deserto não pode tornar-se ainda mais árido porque falta a água. Ou melhor, a água não falta. Falta a vergonha de admitir que se faz com água o mesmo que se faz com as grandes fortunas, acumuladas nas mãos de um punhado de gente a quem falha o entendimento do equilíbrio de todas as coisas.
Faz algum sentido que pelo menos setenta por cento do corpo humano seja água e tenha surgido dessa forma num mundo com escassez da mesma? 
Também não faz sentido que as pessoas que se elegem para defender os interesses de todos não expliquem detalhadamente por que razão se fecham poços se proíbe a livre utilização de água e se esconda a informação devida sobre as reservas naturais de água.
Ou que não se eduquem as pessoas de forma a saberem gerir os recursos naturais nas suas casas, jardins, ruas, vilas, cidades e países.
Sobretudo, não se fecha a torneira para as zonas verdes para criar ainda mais hostilidade climática e desequilíbrio.
Quando é que se começará a exigir dos governantes que liberem a água dos lençóis freáticos, que não é nem dos governos, nem das empresas que escolhem para os/nos explorar? Quando se exigirá que além de uma aposta maciça na educação, implementem mais zonas verdes em todo o lado, cisternas e outros sistemas de recolha e tratamento de águas, para benefício comum e imediato de todos?
Em vez de secarem propositadamente o planeta, a missão de qualquer governo é fazer tudo ao seu alcance para evitar a seca que nada mais é do que o reflexo de todos os abusos que se habituaram a cometer sobre pessoas e espaços comuns.
E se um governante faz questão de nos assustar sobre este tipo de calamidade, sem qualquer proposta concreta, então faz parte do problema e deve ser erradicado como qualquer seca, crise e malfeitoria que se abata sobre a cabeça de todos.
A água é um bem de todos e todas as medidas que isso contrariam devem ser encaradas como um crime grave contra a Humanidade. Haja vergonha e mais acção concreta para manter um equilíbrio que nos é devido.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

o inquilinato tonto

Biscaia by MMF
Vimos a este planeta como uma mão cheia de terra, que usamos até o abandonar. Aqui dependemos da nossa ligação a todos os elementos para sobreviver. Os nossos pulmões de nada servem sem as árvores e outras plantas, o nosso corpo não funciona sem água e comida. E quando nos vamos embora, essa mão cheia de terra regressa à Natureza, ao seu estado primordial.
Esquecemo-nos com frequência do que somos realmente e não nos chega o que temos todos os dias à nossa frente. Inventamos uma espécie que gostaríamos que fosse única e atribuímos-lhe uma personalidade que imaginamos mais atraente do que a matéria de que somos feitos.
Se os nossos primeiros antepassados tivessem um vislumbre do que somos agora ficariam estupefactos com a ficção em que se tornou a nossa vida. 
Ficariam incrédulos com a exploração da água e das fontes de energia, que são do planeta e para uso de todos os punhados de terra existentes, porque nunca foram de ninguém, nem poderão jamais ser. Tentariam chamar-nos à razão sobre os instintos de posse e os loucos conceitos de propriedade que desenvolvemos. Como podemos arrogar-nos esses atributos, se para começo de conversa só estamos aqui de empréstimo, por umas escassas dezenas de anos e para seguir depois viagem?
Como seria possível entenderem o inferno em que transformámos a nossa passagem pelo planeta, com leis e regulamentos cada vez mais intrincados e disparatados, por não terem em conta a verdadeira natureza da nossa estada aqui?
Que sentido poderia possivelmente fazer a educação que recebemos de nascença, de uma identidade cega para o nosso planeta hospedeiro e para com a sua abundância e generosidade, que desbaratamos com a alucinação das medíocres ideologias que vamos construindo à medida dos nossos pequeninos desejos de posse?
A Terra não tem problemas e sobreviverá a todos os atentados que nela cometemos. Quando tornarmos a nossa vida insustentável aqui, retomará tranquilamente o seu equilíbrio e aguardará novas visitas, sem medos tontos de aniquilações várias.
O planeta também tem a sua alma/ânima e não se sustenta de dúvidas existenciais. Essas ficam para os seus destituídos inquilinos ocasionais, com as suas fúteis pretensões de poder e domínio sobre a matéria.
Como pode alguém pretender dominar um planeta, se não consegue perceber que faz parte dele?