sexta-feira, 3 de maio de 2019

vozes de burro

"vozes de burro" by MMF

A burrice faz-me engulhos. Não por achar que é uma coisa menor, mas por corresponder a um estado do qual as pessoas levam imenso tempo a sair. É um processo e, na maior parte dos casos, há uma urgência qualquer que nos impacienta e nos impede de ver com maior clareza o obstáculo que enfrenta o protagonista da burrice.
Os burros é que levam as culpas, claro, mas se repararmos bem, a criatura apenas não está pelos ajustes e recusa-se a fazer o que lhe impõem. E isso é de uma grande esperteza. Não participar das necessidades dos outros é uma atitude muito saudável.
Já no caso da natureza humana, invocam-se solidariedades e altruísmos para manipular a vontade individual e inventam-se normas para as tornar legais. Muito nefasto para a saúde pública.
Voltando à burrice, é um estado em que o engano do que parece mais fácil embota a capacidade de raciocínio de quem a pratica. O refúgio na teimosia e nos preconceitos é um sintoma do medo que tolhe a acção. Isso pode levar uma vida a resolver e, honestamente, a nossa vida é pouca para toda a acção que nos propomos. Quanto mais para a limitar à espera da dos outros.
Vozes de burro não chegam ao céu, como se diz. Talvez porque o céu não espere por ninguém ou porque o medo se meta pelo caminho. Vou ver se está lá a minha.

quinta-feira, 2 de maio de 2019

propósitos

"may fishy sea" by MMF
Por convicção, não me apetece ser um tubarão e ter de estar sempre a exibir força e predominância. É muito mais fácil e agradável ser um peixinho ao sabor da maré e levar a vida com mais leveza. Os tubarões têm de estar sempre a provar qualquer coisa e não têm o dom da descontração ou a capacidade de aceitar naturalmente o que o destino lhes reserva.
Essa coisa de imaginar um propósito maior e mais glorioso é um dos mais mortíferos preconceitos que existem. Perigoso e castrador. Não deixa espaço para gozar e admirar as coisas simples da vida. Estar por cá já é um propósito suficientemente grande e tudo o que surge a seguir são bónus múltiplos.

terça-feira, 30 de abril de 2019

as meninas vão à praia

"beach day" by MMF
As meninas vão à praia. Porque é terça-feira, ou martes, ou seja, dia de Marte. O regente do vigor, da combatividade e da acção. Portanto, as meninas sensatas vão para a praia repor a sua energia e  ficarem em condições de gozar plenamente as suas interessantes vidas. E para ponderarem na dissolução das imensas formas desinteressantes que têm de deixar de fazer parte da vida. Como as ideias feitas de todo o tipo. Como continuar a pôr o dever à frente do prazer, por exemplo. Sem prazer não há combustível para executar o dever. A ordem dos factores tem muita importância nestas coisas. Por isso, hoje é dia de ir para a praia repor adequadamente os níveis de energia. Sem exagerar, por causa dos escaldões. E sem hesitar, pois só o prazer nos redime e devolve o sentido da vida.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

cravos da noite

"26 de Abril de 2019" by MMF
Pronto, acabou o dia da liberdade e podemos, muito tranquilamente, regressar à noite medieval de amplos abusos em que parecemos mergulhados. Ou não. Ao fim de quarenta e cinco anos, muita coisa muda na consciência colectiva. Algumas com muita saudade de um passado que se doira, porque se transforma numa névoa de certezas que hoje sabemos não durar. Outras por inevitável percepção de que o nosso mudo sofreu mutações e que há que lidar com elas.
Hoje, querendo ou não, os cravos de Abril deixaram sementes e espaço para crescerem de uma forma mais madura que nos idos de 74. Um século adiante há outra forma de ver e entender as coisas. A próxima ditadura a vencer é a das mentalidades e para isso não carecemos de tanques e outros aparatos de poder obsoletos.
As novas ditaduras aprenderam o controlo sem sair à rua, atrás dos ecrãs e da informação que generosamente lhes passamos na maravilhosa revolução dos bits e dos bites nas redes sociais e dos cartões electrónicos. Mas como todas as ditaduras, com a sua necessidade de afunilamento, não têm como despejar oceanos em garrafinhas rotuladas. Há sempre muito mais a transbordar e fora de controlo.
A vantagem dos dias comemorativos é a de os transformar em mais uma dessas garrafinhas com grande valor afectivo, que passam o resto do ano em caves escuras e frias e fora da vista e do coração de todos.
Mas se alguma coisa nos ensina a experiência, é que, se os efeitos são visíveis, o mesmo não acontece com todas as mínimas e infindas causas que os despoletam. Só nos apercebemos de um punhado de causas que conhecemos e, as outras, muito mais numerosas, pertencem a uma roleta russa que jamais podemos controlar.
Por isso tenho fé, nas sementinhas, elas próprias causas silenciosas e diligentes, que um dia se hão-de acumular e manifestar, como belas explosões de estrelinhas luminosas, com efeitos muito positivos nas noites  insidiosas com que nos presenteiam. 


quinta-feira, 25 de abril de 2019

não se fazem revoluções sem mulheres

"Women in flying colors" by MMF
Só para começar, não se fazem revoluções sem mulheres. Muito menos quando os seus nomes e os seus actos não se mencionam, como se não importassem ou nem sequer existissem.
Não se fazem revoluções verdadeiras quando se ignora uma metade da humanidade. O que é, literalmente, desumano. Não se fazem revoluções verdadeiras, pelo menos. Faz-se de conta, com umas pitadas de mudança, mas sem ir ao fundo do tacho. Não vão vir ao de cima as verdadeiras questões que poderão estar na origem de uma revolução digna desse nome.
O verdadeiro poder é subtil. Não esmaga, nem deita abaixo. Não é uma questão de força. É só transformação. É pessoal. Não se ilude com massas, mas com a capacidade individual.
Por isso, mais uma vez, não se fazem revoluções sem mulheres. E nada vai acontecer enquanto não armarem as mulheres com as mesmas capacidades que entretanto se veneram: a força, a afirmação material de que podem ao mesmo nível que as suas contrapartes masculinas. 
Porque, infelizmente, ainda é a esse nível que opera metade da Humanidade. É no poder físico e talvez seja mesmo necessário equipar as mulheres com esse tipo de perícia para que o respeito por elas finalmente se manifeste.
Enquanto as nossas filhas não aprenderem, de pequeninas, a defender-se da força bruta, nenhuma revolução vai ter um efeito visível na sua condição de seres à mercê de outros. Enquanto não as enchermos de técnicas de domínio, que parece ser a única linguagem cuja simplicidade está ao alcance dos meninos, nenhuma revolução provocará alguma mudança significativa.
Portanto, só para começar, vamos celebrar este dia com este conceito revolucionário: não se fazem revoluções sem mulheres. Uma ideia é uma semente. Deixeimos crescer e florir estas. E podem ser cravos ou rosas, desde que sejam para as mulheres fazerem a sua revolução.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

tudo e tão pouco

"feeling strong" by MMF
Hoje sinto-me forte. Capaz de enfrentar uma tempestade, mesmo que me leve para longe. Mesmo que ponha a nu toda a minha fragilidade. Hoje vou render-me à minha minúscula participação no grande plano global, muito consciente da importância de um grão numa imensa engrenagem. Aceitar que tanto posso ser engolida por ela, como destruir o seu equilíbrio.
Quantas vezes podemos dizer que nos sentimos assim, capazes de tudo e tão pouco? 

segunda-feira, 22 de abril de 2019

girls got dirty today

"girls got dirty today" - MMF
As miúdas sujaram-se hoje. Abandonaram as suas poses bem comportadas e aventuraram-se. Sujaram-se. Experimentaram coisas novas e divertiram-se. Saíram da sua zona de segurança. Descobriram que podem e que isso é importante. As miúdas sujaram-se com muita sagacidade. Sem ligar aos olhares dos outros, ou ao seu julgamento. Daqui a bocado voltam à sua disposição mais formal, sem sujidades, sem nada de novo. Mas hoje sujaram-se e sentiram-se bem com isso.

terça-feira, 16 de abril de 2019

o sentido das coisas

"o sentido" by MMF
Isto podia ser um salmo: todas as coisas fazem sentido, mesmo que a minha lucidez não chegue senão para uns salpicos. E podemos ver sinais em tudo. Como por exemplo no incêndio da Notre-Dame. Numa segunda-feira regida pela Lua e pelo poder feminino, só pode ser para nos lembrar, neste mundo patriarcal, que nada é eterno, nem o menos efémero dos poderes.
Hoje, terça-feira, regida por Marte, masculino e guerreiro, esperemos que não haja para aí mais nenhum líder mundial a armar-se em garnizé e a armar mais um pé de vento para comprar mais iates e jactos que nunca poderá gozar sem a presença de cinturas de segurança. Por exemplo.
Amanhã, quarta-feira, regida por Mercúrio que é o homem das comunicações e do comércio, e também dos ladrões, esperemos que não haja mais desfalques bancários, porque não há economia doméstica que resista a tanta ladroagem.
Já na quinta-feira, rainha jupiteriana da boa sorte e bom dia para quem precisa de remendos médicos, deseja-se que não haja greve de enfermeiros, médicos e coisas que tais. Já repararam que a lotaria das quintas é a mais pobre? Nem a jogar nos entendemos.
Sexta-feira de Vénus é, claro, o dia dos prostíbulos ou do mercado de todas as luxúrias. Não percam, porque só voltam a ter outra oportunidade na semana seguinte. Não é um ritmo fantástico, mas deve-se talvez ao facto de os deuses entenderem que não é a quantidade que traz a felicidade...
Sábado é para descansar, à imagem e semelhança do Criador. Sensato depois das sextas-feiras heróicas e eróticas (assim queiram os deuses). E Domingo é o dia do Sol. O sacana do Adão deve ter aberto a pestana depois de ter caído na ratoeira da serpente (Eva, não te rales que a gente sabe quem leva sempre as culpas) e se ter escancarado num mundo hostil, nuzinho como numa dessas revistas para meninas curiosas.
Estão a ver o sentido das coisas?

quarta-feira, 27 de março de 2019

ciclones da vida

MMF - "Moçambique 2019"

Os ciclones da nossa vida têm o condão de relevar o pior e o melhor em nós. Como a solidariedade exemplar por todos demonstrada na ajuda a Moçambique e a quem calhou a devastação do Idai. Há esperança, pensamos, quando a capacidade de correr em auxílio do outro se manifesta com esta grandeza.
O pior, no entanto, é esquecermo-nos de nós. O que aconteceu em Moçambique e noutros países é o que já está a acontecer em todo o mundo. A forma como tratamos o planeta que nos acolhe revela-se nestes desequilíbrios e manifestações de forças naturais.
De nada nos vale toda a tecnologia de ponta se não entendermos, de uma vez por todas que, sem árvores os nossos pulmões não funcionam, sem água não poluída não conseguimos manter qualidade de vida, sem respeito pelo solo que pisamos ele devolve-nos a violência a que o sujeitamos.
Esquecemo-nos, sobretudo, que para um Idai provocar tamanha devastação, o mal está feito e já comprometemos irremediavelmente o nosso futuro. E continuamos à espera que a delegação do poder nos outros, que já provou ser inadequada, nos salve miraculosamente.
Os ciclones não são avisos. São consequências. E na altura em que chegam é melhor que as nossas consciências se apurem e despertem de uma vez por todas. A bem das possíveis mudanças estratégicas de rumos, de formas de pensar e de viver.
O Idai não foi o único responsável pela catástrofe que se abateu sobre Moçambique. A falta de capacidade de ordenar o território e as populações, a ocupação desenfreada dos solos, o lixo e detritos acumulados, a falta de prevenção deram, ao longo de décadas, uma considerável ajuda aos seus efeitos.
Nada que não se passe em todas as outras regiões do planeta. Mesmo quando os governos consideram que têm tudo controlado. Até que um Idai se manifeste e mostre que não é apenas limpando o lixo das ruas nas cidades que se respeita a Natureza.
A prevenção começa em nós e no entendimento de que, mais um dia a usar desenfreadamente os recursos do planeta como se não houvesse amanhã, significa isso mesmo: inexistência de amanhã. Para nós. Porque a Natureza segue o seu curso e reequilibra-se, sem necessidade de nós para sobreviver. Aqui só estamos como hóspedes e toda a gente é capaz de imaginar o que acontece a quem não se porta bem em casa alheia.

sábado, 16 de fevereiro de 2019

muito mais

"muito mais" by MMF
Todas as pessoas têm o direito de viver as suas vidas sem serem forçadas a acreditar que há pequenos grupos de outras pessoas que têm o direito de decidir por elas e de explorar as suas capacidades para o seu benefício egoísta.
Parar para terem tempo de pensar nisso é um direito e uma obrigação. Para perceberem que existem muito pequenos grupos de outras pessoas que as fazem acreditar que devem obedecer cegamente a regras por elas criadas e que só servem para usufrutos abusivos desses grupinhos.
Os governos dos países, por exemplo, tornaram-se nessas coligações de indivíduos que, obedecendo a pares seus na crença de nasceram para se aproveitar de todos os outros, impõem regras e "verdades" absurdas sobre todas as coisas.
O planeta, a água, os alimentos, o ar e o espaço não se regem pelas leis e regras dos grupos de governantes ou dos açambarcadores de riqueza. Têm um equilíbrio muito bem delineado e, quando ele se altera, não vale a pena apertar as regras para salvaguardar os resultados defeituosos das formas de estar que parecem conceder apenas a alguns o usufruto de um mundo em que todos têm, originalmente, os mesmos direitos.
As obrigações podem ser resumidas ao simples respeito por tudo o que nos rodeia, e por todos, pela compreensão de que nada existe em isolamento, mas em colaboração.
É muito surpreendente assistir à permanente crença e obediência de todos a postulados que não lhes servem, que sentem como errados, mas que parecem ser totalmente incapazes de rejeitar. Só ficamos na mão desses grupinhos porque lhes entregamos a responsabilidade de nos governar e de nos explorar. 
Talvez porque a tentação da preguiça e da fuga à responsabilidade seja mais apetitosa do que a perspectiva de arrumarmos a nossa casa segundo as nossas crenças primordiais.
Ou porque nos recusamos a acreditar na intuição que nos sopra ao ouvido, todos os dias, que isto e aquilo não está certo. E isso parece ser o suficiente para nos paralisar em relação aos abusos cada vez mais cegos de uns poucos.
Uma pessoa não é o que definem governos, empresas, países, sistemas de exploração maciços. É um mundo inteiro, infinitas vezes superior a menorizantes conceitos descritos em alíneas e artigos de regras que têm de ser reduzidas a um mínimo de palavras para caberem e serem fáceis de consultar em manuais. Para serem fáceis de consultar por outras pessoas que acreditam que podem "na ordem" ditada por gente sem consciência ou imaginação.
As pessoas são muito mais do que se obrigam a sofrer. Há, com certeza, escolhas muito mais inteligentes e prazenteiras do que estas que pensamos estar a fazer pela nossa cabeça e não pelos ditames de interesses alheios.
Somos anjos resignados a viver em infernos que devem ser devolvidos aos respectivos remetentes, sem mais delongas.

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

amor às carradas

"all the love we can get" by MMF
Amor às carradas, é tudo o que vos desejo. Sem intuitos comerciais, mas com uma intenção muito clara e consciente. E aos que acham que a coisa é completamente lamechas, amor em muitas carradas. Só para que saibam. Só para que engulam a vergonha e deixem de ser pirosos, a negar aquilo por que suspiram a vida toda. Claro que é irritante ver gente apaixonada, sobretudo se não somos nós e ainda por cima estamos na retranca porque não durou para sempre. Paciência. Ponham-lhe tempo em cima que voltam à parvoeira de desenhar corações e produzir mensagens completamente idiotas. Porque a idiotice também nos sabe bem. Ora bem!

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

onde está a indignação?

"ninguém?" by MMF

Talvez seja só eu a ver estas coisas de se 'comercializarem' pessoas em casamentos, ofertas de homens e mulheres para namoros e, agora, cinco garotas por agricultor... Será isto uma actividade legal porque as pessoas se oferecem e dão o seu consentimento? Só por isso se colocam em situações indignas à frente de um país inteiro? Será realmente aceitável permitir que as pessoas se exponham à escolha dos outros, se submetam a argumentos para as filmagens e depois façam ao vivo aquilo que noutras circunstâncias seria um atentado ao pudor, proxenetismo e comércio de sexo e intimidades?
Será que a SIC acredita realmente que está a transmitir um programa sério? Ou a tentar fazer-nos acreditar que acredita em mais do que simples subidas de audiências?
A ser verdade, também ninguém acha estranho que não apareçam casais homossexuais, pessoas de outras raças que não apenas brancos ou praticamente brancos? E ninguém produz um comentário indignado à completa alarvice machista da maioria dos concorrentes masculinos?
O aspecto físico das pessoas conta, claro, mas alguns comentários dos candidatos sobre as suas parceiras fazem-nos pensar de imediato no número de mulheres assassinadas pelas suas contrapartes 'amorosas' que tão gritantes protestos têm levantado ultimamente. E nenhum para estes programas miseráveis que a televisão inaugurada pelo príncipe dos presidentes desta república? Mais uma vez, não acham isso estranho? 
Onde está a indignação de políticos e opinosos quando estas coisas se passam à frente dos nossos narizes e depois vêm filosofar sobre o que está mal na violência sobre as mulheres (e não só), a exigir que se encontrem melhores e maiores formas de as evitar?
Não vêem televisão e por isso não têm consciência das receitas que se alardeiam todos os dias a consolidar os mais tristes e miseráveis conceitos sobre as relações entre pessoas?
Em empresas de entretenimento que se arvoram em órgãos de comunicação social, onde nas redacções as mulheres ganham maioritariamente menos do que os homens, não me espanta que a carneiragem e as exigências do poder patriarcal se façam sentir sobre os seus submetidos. 
Mas não há ninguém, ninguém mesmo que se revolte, se indigne ou, simplesmente, se espante com este espectáculo lamentável que, para ser mais certeiro, passa antes do jantar e antes da família depositar os seus rebentos, sãos e salvos, na cama?
Quem sois vós, afinal? Onde estão as pessoas de bem nestas alturas e antes dos jamaicas e dos números de vítimas chegarem aos ecrãs? Esperava melhor, confesso.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

como num jogo

"como um jogo" by MMF

Como num jogo, leva-se o absurdo a um novo nível de dificuldade, no sentido em que lhes falta cada vez mais o sentido. E, no entanto, condenamo-nos a permanecer no jogo e a insistir em encontrar-lhe algum sentido. A verdade é que, se ele existe, está tão camuflado em camadas e camadas de hipóteses, que só como na lotaria e com uma improvável sorte acertamos na mouche. 
Ora veja-se, por exemplo, os serviços públicos que já nada têm de uma coisa ou outra, entregues que estão à cupidez privada; um sistema político inoperante e desacreditado, que apesar disso se mantém como uma regra de jogo de tabuleiro, em que o acaso dos dados decide arbitrariamente a jogada seguinte; uma comunicação social que virou entretenimento e, para todos os efeitos, de muito mau gosto e qualidade duvidosa; marcas e companhias internacionais de uma venalidade sem limites.
Pior ainda, jogadores que batem com a mão no peito e reclamam uma honra que não podem sustentar, num sistema desenhado para nunca terem razão, a menos que isso sirva os interesses de alguém que não tem a mínima intenção de os partilhar.
Gente, voamos num ninho de cucos em que o jogo de casino para os pobres de espírito é que está a dar. E para os outros, resta-lhes sorrir e fazer de conta que concordam, que é o que fazem os subjugados antes de cortar os bofes aos cães raivosos dos seus donos. É o princípio da sublevação, o sinal que correm ventos de mudança e, um dia, ao acordar, o mundo está às avessas e pronto para a turbulência da imposição de novas regras.
Nem sequer de novos paradigmas, porque esses são dependentes de honestas epifanias correspondentes a um apuramento de consciência, um processo pessoal que não se deve esperar de movimentos de massas.
Como num jogo, se não nos diverte, não nos serve para nada.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

mais saias

"saias II" by MMF
Ainda sobre saias, que são sempre peças elegantes, mesmo nas suas versões menores, o problema é este não ser, as mais das vezes, um mundo elegante. Há quem marche contra o seu fru-fru natural, contra a leveza com que ondulam e parecem sopesar todas as coisas. É como ver uma borboleta e, num impulso, lançar-lhe uma rede e espetá-la com um alfinete num quadro para mostrar como são lindas. 
Ó gente da minha terra, agora é que eu percebi...

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

o problema das saias

"saias" by MMF - 2019
Nunca gostei de usar saias e isso tem um bom par de razões. A primeira delas é que, só de olhar para os estampados que eram a proposta dos anos sessenta para as meninas, o pânico era praticamente garantido. Lembro-me em especial de umas bolas coloridas, enormes, que se sobrepunham, em diferentes dimensões, sobre um fundo branco e ainda hoje me assalta um calafrio. Era uma questão de gosto para a qual não era vista nem achada naquela idade em que quase tudo se decidia sem qualquer tipo de consideração pelos meus interesses. Adiante.
A segunda razão pela qual a minha aversão a saias se manifestava com grande intensidade era a óbvia situação de fragilidade em que me colocavam. As meninas usavam saias, o que parecia ser um convite natural para a manifestação de todos os tipos de indignidades pelos rapazes. Eram peças de vestuário que pareciam despertar neles selvajarias que não se lembravam de pôr em prática quando usava calções como eles.
Foi fácil constatar, pela vida fora, que o padrão não só se mantinha, como se agravava. Além das investidas hormonais descontroladas do outro sexo e que algumas mulheres replicam com igual convicção, as saias eram motivo para deixar de caminhar normalmente, não correr, não afastar as pernas, sentar de forma a que não mostrassem nada de mais, etc.
O que me levou a concluir que esse tipo de vestuário é uma espécie de condenação em vida. Um castigo que não vale a pena fomentar, porque disso já se usufrui de sobra e não se verifica a necessidade de para tal contribuir voluntariamente.
As saias tornam as pessoas frágeis e sujeitas aos caprichos de quem adora aproveitar-se de fraquezas para demonstrar a sua precária superioridade. E o que mais surpreende é ouvir a defesa que dessas peças de vestuário fazem os homens quando garantem a feminilidade, a elegância e outros atributos femininos associados, que tanto os encantam.
Atributos esses que viram vulgares motivos e símbolos de provocação sexual quando não servem apenas os seus impulsos mais básicos.
O que há para gostar quando as saias, mesmo concebidas para enaltecer a beleza, não passam de marcas como as estrelas ou os triângulos que segregavam os judeus e os homossexuais durante o Holocausto?

segunda-feira, 24 de dezembro de 2018

nas alturas


Hosana nas alturas, ou como só as aves poderão apreciar cabalmente este voo sobre todas as coisas, que pode perfeitamente ser a viagem espiritual que temos de imitar para pôr certas coisas em perspectiva. Valha-nos portanto Santa Abacate, que apesar de terrena, está perfeitamente de acordo com as mais avançadas tendências vegan. E se disso tudo ainda tirarmos outros adoçamentos, melhor. Portanto, Boas Festas e excelentes voos, é o que vos desejo. 

domingo, 18 de novembro de 2018

já não tenho pesadelos

"the wild wild pink flock" by MMF
Já não tenho pesadelos. Agora só se manifestam fora dos sonhos, quando olho à minha volta e os reconheço pelo que são na realidade. Antes desta epifania havia uma zona de ninguém em que os pesadelos se manifestavam e, mesmo acordada, não conseguia situá-los na realidade, ou fora dela, porque a carga de sensações que provocavam era demasiado forte para determinar com clareza a sua origem.
Agora os pesadelos não cabem nos meus sonhos, que se tornaram inspiradores e cheios de pistas a explorar assim que os olhos se abrem. São uma espécie de aditivos que me facilitam as tarefas mais pragmáticas. Estou muito satisfeita com este upgrade mental e com a lucidez que me permite.
Os pesadelos continuam a sua existência, no dia-a-dia, mas já não me inspiram terrores. Pelo contrário, agora que os situo com exactidão, consigo entender de imediato que o que e quem os provoca vive numa dimensão de promiscuidade com o terror, sem qualquer espécie de controlo sobre o que aparentemente não deseja, mas praticando-o na mesma.
As pessoas têm imensa facilidade em sonhar. Mas são como um piloto inexperiente que não sabe tirar partido dos seus voos, nem como evitar os perigos que lhe aparecem pela frente. Acho, que pessoalmente, já acumulei horas de voo suficientes para localizar os pesadelos na sua área de acção e pilotar a minha vida para longe deles no que realmente importa.
Os pesadelos surgem da interacção com as pessoas que não entendem os comandos dos seus potentíssimos aviões e por isso estão sempre a aterrar as nas lixeiras e a arrastar a porcaria para a vida das pessoas com quem se cruzam.
Gostava muito que buscassem as lições que lhes permitissem voar pelos céus e não pelos inferninhos que criam. Para seu bem e para não conspurcarem o voo dos outros. Afinal, que dúvida ainda pode haver entre um voo limpo e aterragens perigosas no meio de lixeiras a céu aberto?
Por mim, fico bem sem pesadelos e até tenho pena de não me lembrar quando é que deixei de os ter, para poder celebrar o dia. Também tenho de corrigir os bugs do programa, porque constato que passou uma data de tempo entre esse acontecimento e a minha tomada de consciência. De futuro espero que a lucidez seja automática e traga de imediato os bónus correspondentes.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

bruxas e santas

"The Witching Hour" by Wendy Sharpe

Faz sentido terminar a noite como uma bruxa e iniciar o dia como uma santa. Aliás, faria sentido repetir essa rotina todos os dias, a toda a hora, sempre que nos apetecesse. É uma grande receita para a reinvenção da vida: reconhecer e aceitar com naturalidade o nosso lado mais básico e também mais vibrante, para a seguir o transmutar na subtileza do mais espiritual e igualmente poderoso.
É por isso que o dia das bruxas é tão interessante e, entre nós, seguido do dia de todos os santos, duplamente significativo. Bruxas ou santas, em papéis redutores impostos pela necessidade de controlo das mulheres, na sua versão mais poderosa e menos domada. São as mesmas bruxas e santas que abraçam os poderes mais escondidos e, afinal, mais despidos de preconceitos, para em seguida darem lugar às habilidades mais subtis e belos da verdadeira natureza humana.
É um processo natural que ainda está sob a influência dos medos atávicos que nos perseguem desde as mais remotas eras. Pode ser assustador assistir à manifestação dos magníficos poderes inatos de uma boa parte da população humana, sobretudo aquela que se quer colada a uma imagem pacífica, submissa, fraca, maternal e muitas outras coisas não forçosamente positivas.
Só que as bruxas são mesmo essa força da natureza capaz de transcender mesquinhices e votar a sua energia às tarefas mais nobres e importantes. E aí, ou como santas, são uma espécie de domicílio sagrado para todos os aflitos. 
Portanto, há que recuperar urgentemente esses papéis e reintroduzi-los na malha social dos nossos dias. Há que permitir às nossas bruxas e santas a manifestação do seu poder regenerador e pacificador, para que não se perca muito mais tempo a fazer de conta que não há soluções capazes de transformar a nossa apreciação da vida numa tarefa digna dessa experiência.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

irmãos no sonho

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"Brasil" by Timothy Raines
A eleição do capitão B para comandar os destinos do Brasil pôs um sorriso esperançoso na maioria dos brasileiros que vivem em Portugal. Acreditam que é um passo para restituir a paz e a ordem ao país. Eles, que fugiram sobretudo da violência que reina, impune, acreditam que a polícia militar, sob a orientação do capitão supremo da sua amada nação, vai sair à rua e caçar os bandidos que ameaçam o dia-a-dia da população.
Por outras palavras, os brasileiros refugiados em países mais seguros acham perfeitamente aceitável que façam a outros seres humanos o que não querem que lhes façam a eles.
Por outro lado, confessam que as grandes facções criminosas que dominam territórios estratégicos nas grandes cidades e um pouco por todo o solo brasileiro, estão infiltradas nos seus órgãos de soberania, os mesmos em que confiam para regular a actividade do novo presidente.
Vistas as coisas desse prisma, podemos confiar que, a haver guerra ao crime, serão com certeza os grandes potentados já instalados a combater-se fora das cadeiras do senado brasileiro para conquistar mais território e influência. Não será propriamente uma caça aos bandidos, mas uma guerra de gangues cujo final nem é bom imaginar.
Mesmo assim, mantém-se o sorriso de vitória e esperança dos brasileiros. E há que aplaudir essa confiança que torna o Brasil um país fantástico e promissor. Não os militares treinados para mostrar mão de ferro na terra que juram proteger e afinal pilham e subjugam como invasores. Muito menos os bandidos que confundem os seus direitos como seres humanos com licenças para arrebatar à força bruta posses materiais.
Por outras palavras, os nossos irmãos brasileiros mantêm o seu extraordinário potencial para crer num destino melhor, mas ainda não conseguiram a paz de espírito para se reagruparem e desenharem firmemente o seu sonho. Como tantos outros irmãos no sonho por esse mundo fora.