segunda-feira, 8 de outubro de 2018

quando Cascais arde

"Cascais Fire 2018" by MMF
Se juntarmos os pontos e apreciarmos os acontecimentos recentes à luz de uma lógica fora dos preconceitos ditados pelos média ou pela nossa limitada noção de responsabilidades, ficamos com uma visão literalmente incendiária de como chegámos ao ponto de perder seiscentos hectares de pulmão entre Cascais e Sintra.
Em primeiro lugar, para sermos realistas, os nossos pulmões não nos servem de nada sem a grande mancha de verde que a Terra põe à nossa disposição para os usarmos. Em segundo, mas muito pouco secundário neste caso, de cada vez que cada um de nós toma uma decisão, é co-responsável por tudo o que acontece no planeta.
Poderíamos estar a falar do oceano de plástico ou dos fogos da Austrália ou da Califórnia, mas estamos a falar do que aconteceu aqui, no nosso quintal. Na paisagem que reclamamos protegida e, afinal, acabou arrasada porque os nossos "abraços" em slogans não são suficientes para a manter segura. Nem por sombras.
Não fazemos o suficiente para nos manter seguros. Deixar queimar os pulmões verdes e depois sacudir a água do capote a responsabilizar a protecção civil ou governos autárquicos não faz sentido nenhum. Sobretudo se os poucos votantes da região validaram os dirigentes actuais, co-responsabilizando-se portanto com as suas decisões. Ou se permitimos que empreendimentos de luxo, com lucros a curto prazo se sobreponham à vida de qualidade que afirmamos ter neste cantinho de zonas protegidas.
Somos todos responsáveis pelas decisões que levaram ao incêndio que acaba de destruir uma parte da qualidade de vida que alardeamos para esta porção privilegiada do planeta. E temos de compreender a mensagem por detrás do desastre, porque ela é uma projecção do futuro colectivo que preparámos para nós e para as gerações futuras.
Quando seiscentos hectares de floresta ardem, essa é a medida do que arde em todos nós. Arde porque somos negligentes em relação às pequenas decisões de enormes consequências na nossa vida? Arde porque inconscientemente purgamos assim muito do lixo que arrastamos todos os dias em detrimento de posturas e acções mais naturais e honestas? Arde porque ansiamos por renovação?
Arde também porque estes desfechos são tomadas de atenção que devemos entender de forma mais profunda, em momentos que devemos saber decisivos para mudar e viver de forma mais sustentável.
Quando Cascais arde é porque chegou a uma encruzilhada fulcral e cabe-nos a todos, individualmente, escolher o caminho novo e mais certo para a terra em que assentamos a planta dos pés e as raízes da nossa vida.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

a tirania do som


Aqui a pensar no poder do som. Há quem diga que as pedras de grandes monumentos como as pirâmides foram transportadas e empilhadas com a ajuda de dispositivos de som. A Bíblia também testemunha que o Verbo deu origem ao mundo. Por outro lado, os países mais desenvolvidos parecem ser muito mais silenciosos do que os festejam as suas desgraças com carnavais e movidas de todo o género.
A falta de consciência sobre o nível de ruído que se produz é, sem dúvida, um sintoma de que algo não vai bem no reino humano. De que não se pausa para escutar nada nem ninguém, quanto mais o som do corpo que habitamos, o que precisamos de ouvir e se abafa em gritarias de todo o tipo.
Gritar é uma coisa desagradável e basta passar por uma escola num intervalo para entender que algo vai mesmo mal quando o que caracteriza um centro de suposta aprendizagem é o volume de som indiscriminadamente produzido pelos jovens estudantes.
O que se anda a ensinar, afinal? Que o mundo é uma cloaca ruidosa e assustadora? Que os conteúdos multimédia mais ruidosos são mais importantes do que os que reflectem sobre temas que nos ajudam a entender o mundo que nos rodeia.
O som tem poder, sim. Sobretudo o de nos alienar, monopolizando um sentido essencial. Mesmo as imagens, sem som, se esvaziam de sentido e são percebidas de forma completamente diferente sem a tirania que nos invade os ouvidos.
Será difícil entender por que razão quem não ouve parece ter uma postura completamente diferente perante a vida? E por que se crê ser necessário viver sob o domínio dos megafones e de infindos discursos sem sentido? 
Em determinado ponto, alguém decidiu que a melhor forma de imposição era a de afogar toda a gente em ruído e assim fechar as portas ao silêncio que nos ajuda a centrar e a pensar de forma correcta.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

casual strokes

"casual strokes" by MMF - photo by Paulo Paz
O artista mostra-se, não raro, relutante no que toca à verbalização do processo que leva à sua obra. O que não admira, porque poucas coisas são mais pessoais. Da forma como surge uma ideia, um conceito, passando pelos meios que emprega para a sua materialização, às escolhas que faz durante todo o percurso que lhe é natural, tudo tem que ver com o seu processo interior. Com a forma como resolve apresentar esse processo e que corresponde a um inevitável percurso de consciência e transformação pessoal.
O ofício artístico, consciente ou não, nunca deixa de ser uma tarefa pessoal de crescimento e entendimento. Representa um estudo e uma prática concretos pelos quais se passa na viagem de conhecimento interior que todos fazemos. No caso dos artistas, ela é expressa em formas concretas e observáveis pelos outros. E é a empatia que gera, a oferta em que os outros se revêem, que torna a obra apreciada e entendida.
Este processo não é consciente para a maioria das pessoas, artistas incluídos, na medida em que muitos preconceitos sobre a prática artística a remetem sistematicamente para uma actividade menor. O artista é ainda entendido como o excêntrico, o socialmente desajustado que insiste numa forma de estar e trabalhar sem efeitos quantificáveis. Exactamente o oposto do que é a sua capacidade de realização e a frescura que traz a uma visão esquálida das nossas possibilidades.
A documentação, discussão e compreensão do processo artístico é, por isso, essencial ao seu crescimento pessoal e como agente cultural. E a fruição da obra é apenas o primeiro passo dos outros para o entendimento dos seus mecanismos individuais de evolução.
O trabalho artístico não é um capricho, mas uma ferramenta através da qual todos ganhamos e avançamos. Assim nos permita a nossa vontade e consciência.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

às voltas nas estrelas

"starry sky" (2018)
Imaginar que andamos à volta nas estrelas. Por vezes é necessário abraçar uma imagem na nossa mente para entender que basta isso para dar uma volta à vida. Ignorar a existência de coisas desagradáveis e escolher outras que nos fazem melhor. 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

a podar é que a gente se entende

"alive and free"
A simples verdade é, que para nosso descanso, gostamos de podar tudo à nossa volta. Não suportamos a exuberância da variedade e preferimos domar os ramos que escolhem caminhos diferentes da ordem que consideramos aceitável.
Depois queremos muito ter mais escolhas, mas vamos eliminando as que achamos estar a mais, sem gastar um momento a ponderar se não estarão defronte dos nossos olhos para alargar o nosso leque de possibilidades.
Julgamos mas depois queixamo-nos imenso de que nos ceifam as escolhas. Fazemo-lo todos os dias e não admitimos que a redução é posta em prática, em primeiríssima mão, por nós. A responsabilidade atira-se, irresponsavelmente, para os outros, para o exterior, para a rua. 
Como se não bastasse essa cegueira auto-imposta, ainda levamos a loucura ao ponto de deixarmos que um grupo de ceifeiros manipule uma entidade estatal, também da nossa responsabilidade, que todos os dias se ocupa a criar regras de normalização que nos transforma a todos em embalagens do mesmo tamanho, com o mesmo peso e códigos de barra para nada falhar ao seu controlo.
Que triste imagem temos de nós mesmos e que catalizador exponencial é o menorizante conjunto de regras que admitimos para a interacção social.
Em contacto com os outros, admitimos, relutantemente, uma mão cheia de regras de funcionamento, qual delas a mais manietante. Dentro nós ainda vamos sonhando, mas com os outros temos regras de calabouço e é assim que nos sentimos em sociedade.
Em vez de aproveitar o ímpeto de possibilidades que uma maior liberdade, bem educada, nos concederia. 

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

instinto


Instinto de sobrevivência. Instinto, naquela versão facilmente explorada através da atenção prestada à respiração. E sobrevivência do que somos, de facto e que não começa nem acaba. Reduzir a expressão a esta experiência de vida também serve. Mas que sentido faz esse instinto se a sobrevivência é para o que um dia acaba e não volta mais?
No fundo, acreditamos nesse instinto superior que a todos orienta no caos da vida. Ou a vida do caos que nos resta quando é impossível abarcar todas as causas para discernir todas as consequências. Um desenho da existência com linhas limites muito convenientes. Mas para quê então um instinto que nos garante saídas extraordinárias desses limites? Afinal os limites são naturais ou são os dos sentidos que nos devolvem esta experiência?
Depois vem a sobrevivência, que não faz grande sentido se todas as coisas são finitas. Se não se observar além do que acaba. Faz muito mais sentido se a sobrevivência for de facto a existência para lá do começo e do fim, a linha da vida que não acaba e se transforma permanentemente.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

sou um post-it

"I am a post-it"
Sou um post-it. Passo um quarto do meu dia a lembrar uma série de gente toda a sorte de coisas. Quando páro, vejo-me às aranhas para lembrar nomes, títulos, palavras vulgares para objectos do dia-a-dia. Resumindo, também preciso de um post-it.
Devo consultar um oráculo para descobrir o meu post-it pessoal? Um centro de meditação transcendental? O meu médico de família, que me aterroriza com a sua hipocondria e tendência para prever doenças que não são do meu interesse?
Por uma questão de senso comum, será melhor enumerar as qualidades expectáveis num post-it pessoal, tal como um invulgar respeito pelo meu silêncio, capacidades divinatórias excepcionais, para evitar irritantes explicações sobre o que pretendo que me lembre? Ou a relevância de não usar uma cola com componentes passíveis de induzir alergias e outros males menos conhecidos?
É uma maçada entrar no universo dos post-it e descobrir todas as barreiras físicas, emocionais e mentais a superar. Não admira que tenham escolhido o amarelo para estes papeizinhos, como aviso para a aventura em que se embarca a partir do momento em que começam a utilizar-se.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

não me apetece escrever

"don't feel like writing"
Hoje não me apetece escrever. Não me ocorre uma ideiazinha sequer. Começa-se logo de manhã a ler tanta coisa interessante que se afoga completamente a pretensão de comunicar mais qualquer coisinha de jeito.
O problema é que gosto de escrever, seja lá o que for ou como for. Habitualmente não me faltam ideias, mas hoje todas me parecem demasiado óbvias. Para mim, porque o meu óbvio não é o dos outros e cada um se amanha com o melhor que lhe ocorre.
Hoje preferia não ter ideias sequer. Deixar que a vida siga só para observação, anotação. Sem maiores complicações. Afinal, nem sempre acreditamos que temos esse luxo. E temos muitos, se bem que não os valorizemos com a nossa atenção.
Está declarada, pois, esta segunda-feira para a benevolente preguiça da contemplação. Mesmo nos preguiçosos afazeres de todos os dias, nas possíveis coisas inesperadas e nas decisões inadiáveis. Tudo a fazer com a devida quantidade de não me apetecer fazer nada.
Assim, apesar de todas as potenciais expectativas, este é o meu contributo: fazer sem me apetecer, só porque há que o fazer, mas sem a inútil carga da obrigação.
Esta segunda-feira vai fluir como a corrente, sem resistência, porque não me apetece mesmo fazer nada. Mesmo consciente que o nada não existe. Ou porque, não existindo, há que reservar uns bons segundos a ligar e a desligar, a ligar e a desligar, para fazer um reset ao acaso, à espera que um deles desperte de novo a nossa vontade.
Preguiça, preguiça, preguiça. 

domingo, 19 de agosto de 2018

cataclismos anunciados

Live Kindly "Ocean Plastic Polution"
As redes sociais espelham o estado do mundo. Assim à semelhança dos plásticos que poluem os mares, a emissão de gases nocivos ou os depósitos de lixo a céu aberto. O mais que se publica é somente poluente e ilustrativo das carradas de inutilidades, pensamentos destrutivos e futilidades que a maioria das mentes produz.
Toda a gente tem opinião sobre tudo, o que é um direito que lhes assiste, sem sombra de dúvida. Contudo, se a maioria se desse ao trabalho de rever as suas publicações e os seus comentários, à laia de revisão da matéria dada, ficariam com certeza chocados com a sua capacidade de despejar raiva, insultos, declarações de falta de fé a propósito de tudo, de produzir julgamentos de valor sem qualquer respeito por aqueles que visam, pela facilidade das suas condenações e pela imagem negativa que dão de si.
Tudo coisas que produziriam o pior dos efeitos se lhes fossem dirigidas. No entanto, não fazem cerimónia em relação aos outros. Não lhes dão o benefício da dúvida, não questionam a veracidade de qualquer publicação, negando totalmente a sua capacidade de contenção e de boa educação.
Se os visados têm um nome público, então é um fartar vilanagem, como se a notoriedade se destinasse apenas a provar que quem a obtém é um alvo fácil e destinado a ser abatido. 
Nos intervalos, publica-se a erudição em dois segundos, com as imagens engalanadas por grandes pensamentos e grandes verdades, citações, anjos, crianças, gatinhos e outros animaizinhos nas suas versões fofas e doces. De médico e de louco todos temos um pouco, mas esta moda de auto-rotulagem através de cultura página cinco parece um show global dos Monty Python, versão ultra económica.
O exemplo vem de cima, claro, com muitos circos e contra-informação a ser profusamente difundida pelos líderes que não se sentem capazes de resistir aos conceitos mais populares de comunicação mediática, sentindo-se na obrigação de produzir publicações diariamente e mesmo que a despropósito.
A verdade é que o mais inofensivo que se observa são as fotografias dos pratos de comida à hora de almoço. Quem, na realidade, quer acreditar que a pior versão de si é a que os outros querem conhecer e admirar?
Sim, o mundo está tal como estamos também, caótico e negativo como a única realidade que somos capazes de imaginar e reflectir, nas redes sociais e fora delas. E se não conseguirmos imaginar nada melhor e reflecti-lo na forma como vemos o que nos rodeia e como agimos, então não nos resta senão o inevitável cataclismo que anunciamos.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

liberdade e vacas

"jovita, the cow" by Marita Moreno Ferreira
Descendo um dia de carro pela lisboeta Avenida da Liberdade, ao abrir de um sinal amarelo, parei conscienciosamente e aguardei que o vermelho desse lugar ao verde. A condutora de trás não apreciou a minha escolha e, de rompante, muda de faixa, pára ao meu lado, abre a janela e grita: "Vaca!"
"Onde?" pergunto, girando a cabeça de um lado para o outro à procura do bovino.
A condutora respondeu com murros furiosos na buzina, provavelmente para desimpedir a via do indevido uso pelo animal.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

venha o diabo

"escolhas"
Venha o diabo e escolha, assim como se a culpa fosse coisa exterior e nada tenha que ver com as decisões tomadas por cada um. O deus de dentro cede assim facilmente o lugar ao capeta, numa espécie de outing involuntário ou inconsciente do pior a que assistimos na vida. Logo a seguir venha a divindade de novo, redimida e santa, que em nada se assume no que a sua mão esquerda acciona. Divertido e fácil este jogo duplo em que tudo se separa no aceitável e na sua contrária. Sem qualquer preocupação em admitir a coexistência das duas forças opostas dentro de cada um. Nas regras desse jogo não há lugar para as pontes esclarecedoras da indiscutível necessidade de ambas faces da moeda. A obsessão em dividir tudo entre bom e mau cega a visão do caminho do meio e para a compreensão de que o mau está ali não como o diabo, mas como uma ferramenta para nos desembaraçar de soluções que não o são, simplesmente. Como a carta da morte que nos confronta com a necessidade de mudança e apenas se entende como tragédia e fim. Fim de um caminho, de um processo, mas não de tudo o resto. Há sempre mais entre a terra e o céu do que o olho abarca. A escolha da cegueira ligada ao ver para crer, quando de facto não se quer ver. A preguiça do medo, essa invenção que também colhe, como a gigantesca foice da morte. No final, nenhuma ameaça se mantém. O botão de reinício salva-nos sempre do inexistente fim, em transformações que se teima não entender. É tudo uma questão de perspectiva, de redireccionar o olhar. Venha, mais uma vez, o diabo e escolha, nessa parte em negação de cada um de nós.

domingo, 12 de agosto de 2018

silêncio e prazer

"within the flow", fishy things series
No silêncio das manhãs de domingo a apreciar a tranquilidade e a seguir com a corrente. Puro prazer, o de deixar que a vida nos arraste, em vez de ceder à tentação de arrastar a vida. 

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

o fogo em nós

"on fire" - MMF

Os piores incêndios são os que se acendem dentro de nós. E como fazemos parte indissociável de um ecossistema que engloba o planeta e, provavelmente, tudo mais que se conhece, é impossível deixar de ponderar sobre o que arde. Ou por que e para que arde.
Na sua perspectiva mais benevolente, o fogo e as queimadas, no Verão, fazem parte de um processo de renovação, de transformação do que não mais serve para dar lugar ao renascimento natural. Dos quatro elementos, é o que rege o coração.
Quando, neste mundo de que participamos, os incêndios assumem formas catastróficas, talvez devêssemos examinar o estado dos nossos corações. A zanga que jorra de dentro e a que, com certeza, não é estranha nem separável da sua manifestação natural.
O Verão também é um tempo entendido de descanso e fruição, talvez porque necessitemos desse amansar da actividade mental e física para renovar a tranquilidade dentro de nós e não contribuir com mais achas para a fogueira que, eventualmente, nos encurrala e destrói.
A mais acertada ponderação será, portanto, sobre o nosso contributo pessoal para as catástrofes, sejam elas de fogo, de plástico, de lixo, de emissões prejudiciais ao ar que se respira. Maturar a ideia da propensão natural de atear qualquer espécie de incêndio e transformar as vontades do coração em práticas de serenidade e segurança que são essenciais à sobrevivência.
O combate ao fogo nasce dentro de nós. Evolui e prospera quando entendemos que se ganha com o abandono da cólera e com a escolha inteligente da objecção de consciência. Não faz sentido participar do que condenamos e sabemos estar errado. 
Pacificando a mente e o coração damos igual oportunidade a todos os outros elementos. Ao equilíbrio.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

a brincar, a brincar, a trindade

by Paulo Paz, na Oficina do Desenho

A brincar, a brincar, vamos formando as trindades nossas de todos os dias. Ligações por vezes efémeras e, muitas vezes, tão fortes como a original.
Quem desenha uma cara, desenha-as todas. Sempre que se desenha, se escreve, se pinta, se cria qualquer coisa, boa ou má, acrescenta-se algo ao tecido de todas as coisas. E a existência segue assim a sua infinita expansão, sem darmos por isso.
Que consciência temos, de facto, do imenso processo criativo que desenvolvemos durante um dia das nossas vidas? Que importância damos ao extraordinário poder de cada segundo da nossa existência?
Deveríamos estar mais atentos à nossa modelagem da vida. Ao poder que manifestamos ao preparar um simples café ou a divagar mentalmente sobre sonhos e coisas comezinhas. Nada se perde, tudo se ganha, tudo se transforma mesmo antes de pousar a chávena para nela depositar o líquido que em seguida se saboreia.
A brincar, a brincar, as trindades criam-se a todo o instante e a um ritmo que somos incapazes de acompanhar. Em consciência.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

o tamanho da realidade


É muito fácil perder-me entre coisas bonitas e que me oferecem de bandeja alguns dos melhores e mais importantes momentos da minha vida. Como a experiência é apenas minha, parece quase sempre estranha aos outros. O que é natural, porque as suas experiências é que contam para cada um deles.
A chave da questão é o processo, que é comum para todos. Mudam os pormenores, mas tudo o resto é idêntico. Ter uma boa noção daquilo em que consiste o processo é um factor essencial para reconhecer e apreciar a experiência dos outros e, obviamente, a nossa. Só dessa forma podemos olhar com olhos dever para o que é comum a todos e admirar as diferenças que, simultaneamente, nos distinguem e se complementam.
O exercício de entender a unicidade e a riqueza da sua diversidade não é fácil sem a identificação do processo que nos liga a todos. E essa tremenda realidade também não pode fazer-nos perder de vista a beleza dos processos individuais.
É como se dispuséssemos de uma tela de porporções gigantescas, mesmo infinitas, em que cada um pinta as suas cores e decide que formas lhes há-de dar. Todos os trabalhos se encaixam perfeitamente uns nos outros e não há princípio nem fim para o processo.
Temos sempre duas formas de olhar e apreciar esse tipo de pintura: de muito próximo, como se a nossa parte da tela fosse a única existente; ou de longe, como parte da teia de criatividade que se estende por uma superfície infinita.
Como se, com uma mesma lente, usássemos o zoom para aumentar e dimimuir o tamanho da realidade que queremos encarar.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

fruo, logo também existo

"fruição"
O dever antes do prazer é uma daquelas frases que parecem talhadas para os dias de hoje, em que a obsessão pela prova de que se trabalha até cair, que se dá às criancinhas tudo o que elas querem e não querem, que não há tempo para mais do que as obrigações. Em que todo o mérito se resume a cumprir os objectivos traçados por uma imensa máquina de propaganda (ou entretenimento) que acredita piamente que se não metralhar as suas aparentes verdades a uma cadência alucinada por segundo, morre na praia.
Claro que morre. É só apreciar a caótica trumpada que para aí anda. A amálgama de disparates e desconcertos que é, afinal, prova bastante que o dever sem equilíbrio é mortal para o indivíduo, para a sociedade e para o planeta. Para todo o universo, provavelmente.
O prazer não existe para ser alvo da nova inquisição que determina que apenas os festivais pop ou populares é que são aceitáveis. E que tudo o mais tem uma norma e uma conformidade traduzível num código de barras e no consentimento da maioria.
Esse afunilamento voluntário da riqueza interior de cada um, de soluções diferentes, de atrevimentos que fogem à adamastoriana organização das sociedades, tão cega como uma máquina sem condutor, é uma tristeza de deveres sem cérebro, sem alma e sem vida. Sem prazer.
A aprendizagem da fruição tornou-se uma tarefa quase ilegal, quando não sujeita às modas vigentes. O tempo não lhe é favorável com tanto dever subjacente ao que serve a tal maioria decapitada que governa os ditames do que parece ser conveniente e aceitável.
Qual o sentido de uma vida inteira a trabalhar os deveres para chegar aos prazeres prometidos, se tudo se esgota na primeira parte, sem intervalo nem segunda parte e final feliz?
O caminho do meio parece impossível no pouco inteligente enredo colectivo que acredita que todas as boas soluções passam pela adição imparável de mais e mais obrigações, mais e mais normas, mais e mais trabalho.
O equilíbrio é impossível quando nos inclinamos todos para o mesmo lado uma balança que tem o seu fiel ao centro. Nesta visão do funcionamento de todas coisas afogamo-nos permanentemente em derrocadas e a única resposta em que insistimos é mais do mesmo para ver se endireitamos o barco. Mas o naufrágio é o único cenário evidente.
A fruição, o prazer é o outro prato da balança. Existe não para ser desacreditado e desvalorizado, mas para nos devolver o equilíbrio. Através da criatividade que nos inspira, da satisfação com que nos invade e preenche, de um novo olhar sobre todas as coisas.
Nem só de pão vive o homem e não faz mal nem é pecado saltar uma refeição para ler um livro, ouvir música que não se limite a martelar como uma máquina, passear o olhar pelas artes ou explorar a natureza sem ser na pele de carneirinhos amestrados, com auto-nomeados pastores a decidir que temos todos de caminhar ombro a ombro pelas mesmas veredas que milhões de outros.
A nossa vida devia ser inteligentemente dividida em dever e prazer, durante as nossas horas vigilantes. Com uma saudável dose de desconfiança por esses bulldozers do entusiasmo do trabalho libertador que tanta gente interna em campos de duvidosa finalidade.
A fruição também liberta e não deve ser controlada pelo extremismo fanático que escraviza a vida num cemitério de obrigações inadiáveis.

terça-feira, 10 de julho de 2018

discriminação silenciosa

"rare blue"
A discriminação silenciosa é uma prática insidiosa. Assente no débil pressuposto de que a existência falha na abundância de recursos para todos, é a arma dos inseguros e desconfiados da eficácia da providência.
A sua vertente mais violenta actua sem recurso aos preconceitos mais publicitados, como o género, a raça ou as crenças políticas e religiosas. Abate-se impunemente sobre as ideias e a capacidade de sonhar, de acreditar, de imaginar um mundo melhor.
Não é por acaso que a originalidade e a criação artística são vulgarmente descartados como alheamento da realidade e incapacidade de funcionar dentro das normas estabelecidas. O que o outro tem e parece escasso nos demais origina medo, defesa, discriminação e ataque.
A falha deste raciocínio é tão mais gritante quanto a génese do pensamento artístico e criativo tem como propósito imediato o contributo positivo universal. É a partir da sua proposta que se desenvolvem automaticamente processos mentais enriquecedores e de expansão para os demais.
No entanto, artistas e intelectuais continuam a ser encarados como párias incapazes de encontrar o seu caminho natural no esquema estabelecido da vida.
Impulsionam novas formas de encarar desafios e inspiram novos paradigmas e pragmatismos. Mas a escravidão das aparências e a obsessão do controlo remetem-nos para a última fila do reconhecimento social.
Na verdade, são eles os messias ignorados do progresso de todas as coisas, cujas dádivas trabalham pacientemente nos bastidores da consciência colectiva até que esta permita que manifestem o seu potencial.
A discriminação é apenas o pântano bafiento que se recusa a reconhecer as suas flores de lótus. Mas esse estado de avareza lamacenta não impede o seu florescimento e a sua beleza. 
Os discriminadores apenas insistem em aumentar irracionalmente o tempo do reconhecimento da funcionalidade e do pragmatismo dos artistas e livres pensadores. E ocupam esse imenso intervalo a criar regras e instituições que diluem a força das ameaças que acreditam existir entre eles e esses sonhadores fúteis.
Mas se são realmente fúteis, que necessidade há de os emparedar em regras e convenções labirínticas?

terça-feira, 19 de junho de 2018

comunhão

Há uma razão para procurar a comunhão com os outros, respeitando a energia que se gera em conjunto quando se abandona o tumulto da individualidade cega. É diferente do exercício social de todos os dias, em que a energia pessoal lembra uma corrida desnorteada de carrinhos de choque.
Com os outros é preciso estar num modo comum, que funciona como uma ligação perfeita de várias fontes numa colaboração para um único fim. O que se faz, habitualmente, é tentar o bom funcionamento de uma ligação destrambelhada, sem consciência do adequado benefício mútuo.
As regras sociais não contemplam a compreensão desse benefício. Ditam-se pela aparência do que pode resultar da reunião de muitas individualidades diferentes. Continuamos a portar-nos como esferas loucas em atrito numa bolha de limites decididos pelo que hoje se toma por racional.
É difícil encontrar lógica e desfechos prováveis num método que se rege pela aparência e pela negação de tudo o que não passa apenas pelos cinco sentidos. É envolver a vida nas fronteiras do seu mínimo denominador comum, aniquilando todos os seus outros ilimitados atributos.
Levam-nos a palma todas as criaturas ditas irracionais que se reúnem regularmente para temperar a sua energia, mesmo na hipótese da sua falta de consciência do poder desse acto. Na sua missa (do latim mitto, -ere, enviar, mandar, de Ite, missa est, ide, está enviada [a oração ou a mensagem]) silenciosa e tácita, fazem a invocação necessária para o seu melhor funcionamento como grupo e indivíduos.
Assim fosse com as tontas baratas humanas e muita irracionalidade se pouparia.

[Nota imprescindível: nenhum animal racional ou irracional foi sacrificado para prova dos factos aqui registados; toda a invocação se limitou ao riscar da tinta sobre o papel, depois de devidamente apresentada a maior gratidão necessária para com os elementos de produção de pigmentos e tecido celulóico.]

quarta-feira, 13 de junho de 2018

altares e sardinhas


"Santo António de Lisboa, embora muito festejado e venerado como santo pelo povo, é menos conhecido como um homem de cultura literária invulgar e como um verdadeiro intelectual da Idade Média. Reveladora dessa cultura ímpar, é a sua obra escrita, cheia de beleza e densidade de pensamento, como nos testemunham os seus Sermões, autênticos tesouros da literatura e da história. Vasta, profunda, extraordinária, a respeito da Bíblia. Ampla, variada e bem apropriada nas transcrições dos Padres da Igreja e dos autores clássicos. Impressionante, para o tempo, não apenas pelo conhecimento que revela das ciências naturais e das humanidades, mas igualmente pelo erudito discurso sobre noções jurídicas, como Poder, Direito e Justiça". José Antunes (fonte: Wikipédia)

Os milagres deste santo e de outros não se estendem às sardinhas, peixinhos que vão à vida nas brasas dos bairros típicos de Lisboa ou em Cascais, que o elegeu como patrono. 
Há umas décadas os peixinhos saltavam das redes para os assadores improvisados junto à praia do peixe, agora elevada à dos banhos do presidente nacional. A festa encaixotou-se em barraquinhas que vendem hot dogs e souvenirs, que duram tanto como os ensurdecedores concertos de verão. 
As casinhas dos pescadores também são promovidas a residências pitorescas para alugar à época e a vida segue, sempre com os milagres santificados do progresso imobiliário. 
As sardinhas, unidas, são comidas por muitos Antónios e vendidas como símbolos pitorescos do País dos santos populares. À beira-mar a festa é um sunset com cerveja e música pum-pum-pum, no interior chama-se arraial e recebe artistas pimba.
Quem é que precisa de tímidos milagres ao pé do foguetório da propaganda da festa e da alegria, a beber fruta empacotada em bolsinhas de plástico, detergentes que nos envolvem com aromas descritos por apolos depilados que estalam os dedos à máquina da roupa, de carros de ficção à mão de umas quantas prestações e pensos higiénicos que transformam as jovens em artistas de circos psicadélicas?
A vida é uma festa e a ressaca é tramada. As sardinhas vão para o velho altar dos sacrifícios, com grinaldas e balões, cânticos e muitas palmas. Arraial, ó lusa gente...