sexta-feira, 17 de agosto de 2018

liberdade e vacas

"jovita, the cow" by Marita Moreno Ferreira
Descendo um dia de carro pela lisboeta Avenida da Liberdade, ao abrir de um sinal amarelo, parei conscienciosamente e aguardei que o vermelho desse lugar ao verde. A condutora de trás não apreciou a minha escolha e, de rompante, muda de faixa, pára ao meu lado, abre a janela e grita: "Vaca!"
"Onde?" pergunto, girando a cabeça de um lado para o outro à procura do bovino.
A condutora respondeu com murros furiosos na buzina, provavelmente para desimpedir a via do indevido uso pelo animal.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

venha o diabo

"escolhas"
Venha o diabo e escolha, assim como se a culpa fosse coisa exterior e nada tenha que ver com as decisões tomadas por cada um. O deus de dentro cede assim facilmente o lugar ao capeta, numa espécie de outing involuntário ou inconsciente do pior a que assistimos na vida. Logo a seguir venha a divindade de novo, redimida e santa, que em nada se assume no que a sua mão esquerda acciona. Divertido e fácil este jogo duplo em que tudo se separa no aceitável e na sua contrária. Sem qualquer preocupação em admitir a coexistência das duas forças opostas dentro de cada um. Nas regras desse jogo não há lugar para as pontes esclarecedoras da indiscutível necessidade de ambas faces da moeda. A obsessão em dividir tudo entre bom e mau cega a visão do caminho do meio e para a compreensão de que o mau está ali não como o diabo, mas como uma ferramenta para nos desembaraçar de soluções que não o são, simplesmente. Como a carta da morte que nos confronta com a necessidade de mudança e apenas se entende como tragédia e fim. Fim de um caminho, de um processo, mas não de tudo o resto. Há sempre mais entre a terra e o céu do que o olho abarca. A escolha da cegueira ligada ao ver para crer, quando de facto não se quer ver. A preguiça do medo, essa invenção que também colhe, como a gigantesca foice da morte. No final, nenhuma ameaça se mantém. O botão de reinício salva-nos sempre do inexistente fim, em transformações que se teima não entender. É tudo uma questão de perspectiva, de redireccionar o olhar. Venha, mais uma vez, o diabo e escolha, nessa parte em negação de cada um de nós.

domingo, 12 de agosto de 2018

silêncio e prazer

"within the flow", fishy things series
No silêncio das manhãs de domingo a apreciar a tranquilidade e a seguir com a corrente. Puro prazer, o de deixar que a vida nos arraste, em vez de ceder à tentação de arrastar a vida. 

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

o fogo em nós

"on fire" - MMF

Os piores incêndios são os que se acendem dentro de nós. E como fazemos parte indissociável de um ecossistema que engloba o planeta e, provavelmente, tudo mais que se conhece, é impossível deixar de ponderar sobre o que arde. Ou por que e para que arde.
Na sua perspectiva mais benevolente, o fogo e as queimadas, no Verão, fazem parte de um processo de renovação, de transformação do que não mais serve para dar lugar ao renascimento natural. Dos quatro elementos, é o que rege o coração.
Quando, neste mundo de que participamos, os incêndios assumem formas catastróficas, talvez devêssemos examinar o estado dos nossos corações. A zanga que jorra de dentro e a que, com certeza, não é estranha nem separável da sua manifestação natural.
O Verão também é um tempo entendido de descanso e fruição, talvez porque necessitemos desse amansar da actividade mental e física para renovar a tranquilidade dentro de nós e não contribuir com mais achas para a fogueira que, eventualmente, nos encurrala e destrói.
A mais acertada ponderação será, portanto, sobre o nosso contributo pessoal para as catástrofes, sejam elas de fogo, de plástico, de lixo, de emissões prejudiciais ao ar que se respira. Maturar a ideia da propensão natural de atear qualquer espécie de incêndio e transformar as vontades do coração em práticas de serenidade e segurança que são essenciais à sobrevivência.
O combate ao fogo nasce dentro de nós. Evolui e prospera quando entendemos que se ganha com o abandono da cólera e com a escolha inteligente da objecção de consciência. Não faz sentido participar do que condenamos e sabemos estar errado. 
Pacificando a mente e o coração damos igual oportunidade a todos os outros elementos. Ao equilíbrio.

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

a brincar, a brincar, a trindade

by Paulo Paz, na Oficina do Desenho

A brincar, a brincar, vamos formando as trindades nossas de todos os dias. Ligações por vezes efémeras e, muitas vezes, tão fortes como a original.
Quem desenha uma cara, desenha-as todas. Sempre que se desenha, se escreve, se pinta, se cria qualquer coisa, boa ou má, acrescenta-se algo ao tecido de todas as coisas. E a existência segue assim a sua infinita expansão, sem darmos por isso.
Que consciência temos, de facto, do imenso processo criativo que desenvolvemos durante um dia das nossas vidas? Que importância damos ao extraordinário poder de cada segundo da nossa existência?
Deveríamos estar mais atentos à nossa modelagem da vida. Ao poder que manifestamos ao preparar um simples café ou a divagar mentalmente sobre sonhos e coisas comezinhas. Nada se perde, tudo se ganha, tudo se transforma mesmo antes de pousar a chávena para nela depositar o líquido que em seguida se saboreia.
A brincar, a brincar, as trindades criam-se a todo o instante e a um ritmo que somos incapazes de acompanhar. Em consciência.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

o tamanho da realidade


É muito fácil perder-me entre coisas bonitas e que me oferecem de bandeja alguns dos melhores e mais importantes momentos da minha vida. Como a experiência é apenas minha, parece quase sempre estranha aos outros. O que é natural, porque as suas experiências é que contam para cada um deles.
A chave da questão é o processo, que é comum para todos. Mudam os pormenores, mas tudo o resto é idêntico. Ter uma boa noção daquilo em que consiste o processo é um factor essencial para reconhecer e apreciar a experiência dos outros e, obviamente, a nossa. Só dessa forma podemos olhar com olhos dever para o que é comum a todos e admirar as diferenças que, simultaneamente, nos distinguem e se complementam.
O exercício de entender a unicidade e a riqueza da sua diversidade não é fácil sem a identificação do processo que nos liga a todos. E essa tremenda realidade também não pode fazer-nos perder de vista a beleza dos processos individuais.
É como se dispuséssemos de uma tela de porporções gigantescas, mesmo infinitas, em que cada um pinta as suas cores e decide que formas lhes há-de dar. Todos os trabalhos se encaixam perfeitamente uns nos outros e não há princípio nem fim para o processo.
Temos sempre duas formas de olhar e apreciar esse tipo de pintura: de muito próximo, como se a nossa parte da tela fosse a única existente; ou de longe, como parte da teia de criatividade que se estende por uma superfície infinita.
Como se, com uma mesma lente, usássemos o zoom para aumentar e dimimuir o tamanho da realidade que queremos encarar.

quinta-feira, 19 de julho de 2018

fruo, logo também existo

"fruição"
O dever antes do prazer é uma daquelas frases que parecem talhadas para os dias de hoje, em que a obsessão pela prova de que se trabalha até cair, que se dá às criancinhas tudo o que elas querem e não querem, que não há tempo para mais do que as obrigações. Em que todo o mérito se resume a cumprir os objectivos traçados por uma imensa máquina de propaganda (ou entretenimento) que acredita piamente que se não metralhar as suas aparentes verdades a uma cadência alucinada por segundo, morre na praia.
Claro que morre. É só apreciar a caótica trumpada que para aí anda. A amálgama de disparates e desconcertos que é, afinal, prova bastante que o dever sem equilíbrio é mortal para o indivíduo, para a sociedade e para o planeta. Para todo o universo, provavelmente.
O prazer não existe para ser alvo da nova inquisição que determina que apenas os festivais pop ou populares é que são aceitáveis. E que tudo o mais tem uma norma e uma conformidade traduzível num código de barras e no consentimento da maioria.
Esse afunilamento voluntário da riqueza interior de cada um, de soluções diferentes, de atrevimentos que fogem à adamastoriana organização das sociedades, tão cega como uma máquina sem condutor, é uma tristeza de deveres sem cérebro, sem alma e sem vida. Sem prazer.
A aprendizagem da fruição tornou-se uma tarefa quase ilegal, quando não sujeita às modas vigentes. O tempo não lhe é favorável com tanto dever subjacente ao que serve a tal maioria decapitada que governa os ditames do que parece ser conveniente e aceitável.
Qual o sentido de uma vida inteira a trabalhar os deveres para chegar aos prazeres prometidos, se tudo se esgota na primeira parte, sem intervalo nem segunda parte e final feliz?
O caminho do meio parece impossível no pouco inteligente enredo colectivo que acredita que todas as boas soluções passam pela adição imparável de mais e mais obrigações, mais e mais normas, mais e mais trabalho.
O equilíbrio é impossível quando nos inclinamos todos para o mesmo lado uma balança que tem o seu fiel ao centro. Nesta visão do funcionamento de todas coisas afogamo-nos permanentemente em derrocadas e a única resposta em que insistimos é mais do mesmo para ver se endireitamos o barco. Mas o naufrágio é o único cenário evidente.
A fruição, o prazer é o outro prato da balança. Existe não para ser desacreditado e desvalorizado, mas para nos devolver o equilíbrio. Através da criatividade que nos inspira, da satisfação com que nos invade e preenche, de um novo olhar sobre todas as coisas.
Nem só de pão vive o homem e não faz mal nem é pecado saltar uma refeição para ler um livro, ouvir música que não se limite a martelar como uma máquina, passear o olhar pelas artes ou explorar a natureza sem ser na pele de carneirinhos amestrados, com auto-nomeados pastores a decidir que temos todos de caminhar ombro a ombro pelas mesmas veredas que milhões de outros.
A nossa vida devia ser inteligentemente dividida em dever e prazer, durante as nossas horas vigilantes. Com uma saudável dose de desconfiança por esses bulldozers do entusiasmo do trabalho libertador que tanta gente interna em campos de duvidosa finalidade.
A fruição também liberta e não deve ser controlada pelo extremismo fanático que escraviza a vida num cemitério de obrigações inadiáveis.

terça-feira, 10 de julho de 2018

discriminação silenciosa

"rare blue"
A discriminação silenciosa é uma prática insidiosa. Assente no débil pressuposto de que a existência falha na abundância de recursos para todos, é a arma dos inseguros e desconfiados da eficácia da providência.
A sua vertente mais violenta actua sem recurso aos preconceitos mais publicitados, como o género, a raça ou as crenças políticas e religiosas. Abate-se impunemente sobre as ideias e a capacidade de sonhar, de acreditar, de imaginar um mundo melhor.
Não é por acaso que a originalidade e a criação artística são vulgarmente descartados como alheamento da realidade e incapacidade de funcionar dentro das normas estabelecidas. O que o outro tem e parece escasso nos demais origina medo, defesa, discriminação e ataque.
A falha deste raciocínio é tão mais gritante quanto a génese do pensamento artístico e criativo tem como propósito imediato o contributo positivo universal. É a partir da sua proposta que se desenvolvem automaticamente processos mentais enriquecedores e de expansão para os demais.
No entanto, artistas e intelectuais continuam a ser encarados como párias incapazes de encontrar o seu caminho natural no esquema estabelecido da vida.
Impulsionam novas formas de encarar desafios e inspiram novos paradigmas e pragmatismos. Mas a escravidão das aparências e a obsessão do controlo remetem-nos para a última fila do reconhecimento social.
Na verdade, são eles os messias ignorados do progresso de todas as coisas, cujas dádivas trabalham pacientemente nos bastidores da consciência colectiva até que esta permita que manifestem o seu potencial.
A discriminação é apenas o pântano bafiento que se recusa a reconhecer as suas flores de lótus. Mas esse estado de avareza lamacenta não impede o seu florescimento e a sua beleza. 
Os discriminadores apenas insistem em aumentar irracionalmente o tempo do reconhecimento da funcionalidade e do pragmatismo dos artistas e livres pensadores. E ocupam esse imenso intervalo a criar regras e instituições que diluem a força das ameaças que acreditam existir entre eles e esses sonhadores fúteis.
Mas se são realmente fúteis, que necessidade há de os emparedar em regras e convenções labirínticas?

terça-feira, 19 de junho de 2018

comunhão

Há uma razão para procurar a comunhão com os outros, respeitando a energia que se gera em conjunto quando se abandona o tumulto da individualidade cega. É diferente do exercício social de todos os dias, em que a energia pessoal lembra uma corrida desnorteada de carrinhos de choque.
Com os outros é preciso estar num modo comum, que funciona como uma ligação perfeita de várias fontes numa colaboração para um único fim. O que se faz, habitualmente, é tentar o bom funcionamento de uma ligação destrambelhada, sem consciência do adequado benefício mútuo.
As regras sociais não contemplam a compreensão desse benefício. Ditam-se pela aparência do que pode resultar da reunião de muitas individualidades diferentes. Continuamos a portar-nos como esferas loucas em atrito numa bolha de limites decididos pelo que hoje se toma por racional.
É difícil encontrar lógica e desfechos prováveis num método que se rege pela aparência e pela negação de tudo o que não passa apenas pelos cinco sentidos. É envolver a vida nas fronteiras do seu mínimo denominador comum, aniquilando todos os seus outros ilimitados atributos.
Levam-nos a palma todas as criaturas ditas irracionais que se reúnem regularmente para temperar a sua energia, mesmo na hipótese da sua falta de consciência do poder desse acto. Na sua missa (do latim mitto, -ere, enviar, mandar, de Ite, missa est, ide, está enviada [a oração ou a mensagem]) silenciosa e tácita, fazem a invocação necessária para o seu melhor funcionamento como grupo e indivíduos.
Assim fosse com as tontas baratas humanas e muita irracionalidade se pouparia.

[Nota imprescindível: nenhum animal racional ou irracional foi sacrificado para prova dos factos aqui registados; toda a invocação se limitou ao riscar da tinta sobre o papel, depois de devidamente apresentada a maior gratidão necessária para com os elementos de produção de pigmentos e tecido celulóico.]

quarta-feira, 13 de junho de 2018

altares e sardinhas


"Santo António de Lisboa, embora muito festejado e venerado como santo pelo povo, é menos conhecido como um homem de cultura literária invulgar e como um verdadeiro intelectual da Idade Média. Reveladora dessa cultura ímpar, é a sua obra escrita, cheia de beleza e densidade de pensamento, como nos testemunham os seus Sermões, autênticos tesouros da literatura e da história. Vasta, profunda, extraordinária, a respeito da Bíblia. Ampla, variada e bem apropriada nas transcrições dos Padres da Igreja e dos autores clássicos. Impressionante, para o tempo, não apenas pelo conhecimento que revela das ciências naturais e das humanidades, mas igualmente pelo erudito discurso sobre noções jurídicas, como Poder, Direito e Justiça". José Antunes (fonte: Wikipédia)

Os milagres deste santo e de outros não se estendem às sardinhas, peixinhos que vão à vida nas brasas dos bairros típicos de Lisboa ou em Cascais, que o elegeu como patrono. 
Há umas décadas os peixinhos saltavam das redes para os assadores improvisados junto à praia do peixe, agora elevada à dos banhos do presidente nacional. A festa encaixotou-se em barraquinhas que vendem hot dogs e souvenirs, que duram tanto como os ensurdecedores concertos de verão. 
As casinhas dos pescadores também são promovidas a residências pitorescas para alugar à época e a vida segue, sempre com os milagres santificados do progresso imobiliário. 
As sardinhas, unidas, são comidas por muitos Antónios e vendidas como símbolos pitorescos do País dos santos populares. À beira-mar a festa é um sunset com cerveja e música pum-pum-pum, no interior chama-se arraial e recebe artistas pimba.
Quem é que precisa de tímidos milagres ao pé do foguetório da propaganda da festa e da alegria, a beber fruta empacotada em bolsinhas de plástico, detergentes que nos envolvem com aromas descritos por apolos depilados que estalam os dedos à máquina da roupa, de carros de ficção à mão de umas quantas prestações e pensos higiénicos que transformam as jovens em artistas de circos psicadélicas?
A vida é uma festa e a ressaca é tramada. As sardinhas vão para o velho altar dos sacrifícios, com grinaldas e balões, cânticos e muitas palmas. Arraial, ó lusa gente...

terça-feira, 12 de junho de 2018

a natureza das coisas


A natureza das coisas é uma forma de dizer com uns filtros injustos. Quando se afirma assim a propósito de uma constatação avulsa, o que estamos realmente a dizer é aquilo que a experiência dos nossos sentidos neste mundo dita.
Há outra natureza em tudo, que desperdiçamos constantemente. A que elaboramos com o pensamento e a curiosidade, com as ligações que surgem de cada vez que uma ideia aparece vinda do nada. 
Com ela, a natureza das coisas expande as suas fronteiras além do que vemos, ouvimos, tocamos, cheiramos ou saboreamos. Parece que devíamos ater-nos apenas ao mundo material a que estamos vinculados, mas o que se passa na nossa cabeça teima em sugerir-nos mais.
São ideias que chegam sem se fazer anunciar e que por vezes demoram só um instante. Mesmo quando descartadas por não fazerem parte da equação habitual da vida, tomam lugar no nosso pensamento e voltam aqui e ali, como lembretes de tarefas por preencher.
Ora, se a natureza das coisas é só a material e à vista, por que razão estas ideias insinuantes teimam em brotar naturalmente na nossa mente? Não são intrusas inesperadas e ficam instaladas no nosso mundo até voltarmos a elas e lhes prestarmos atenção.
Fazem parte da natureza das coisas e mostram-nos que há mais entre o céu e a terra do que gostamos de admitir. São uma espécie de reservas que ignoramos, mas que estão lá sempre. Por que motivo ignoramos esse capital, quando nos desesperamos tantas vezes por não entender a escassez com que encaramos e apreciamos o mundo à nossa volta?

sábado, 9 de junho de 2018

puro prazer


A saber, quantas coisas fazemos por puro prazer? Quantas outras lembramos pela sua natureza prazenteira? E quantas arruinamos a magicar aborrecimentos tidos ou imaginados?
Pedalar sem destino, andar descalço, aterrar a cabeça à noite na almofada, boiar, fechar os olhos um minuto, cantar, sentir o vento na cara. Prestar atenção a cada momento vivido.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

o ovo e o açúcar


Há histórias que ficam para sempre, como esta do meu pai e do irmão, durante a estada num campo de férias para catraios como eles.
Um dia, à mesa com os outros, vieram os ovos estrelados com o respectivo acompanhamento. Todos se atiraram à comida, que uma refeição é para aproveitar de uma ponta à outra, sobretudo quando a brincadeira já gastou as reservas e o apetite não falta.
Todos, menos o meu pai e o meu tio, que se mantiveram quietos, sem tocar nos talheres. Aquilo causou estranheza ao supervisor da mesa, que tratou de saber se não tinham fome. Claro que tinham, mas os dois estavam à espera. De quê, quis saber o homem.
Do açúcar, foi a resposta. Pronto, estava garantida a atenção de todos e foi-lhes exigida a necessária explicação.
É que em casa os ovos estrelados eram servidos com açúcar, claro. No campo de férias o costume foi pura e simplesmente ignorado. Ou comiam assim ou ficavam sem jantar. E os dois comeram. Mas de regresso a casa, e de novo à mesa, apresentaram o seu protesto quanto ao ocorrido no campo, com a devida indignação. 
Foi então que lhes foi revelado que era assim que toda a gente comia os ovos estrelados, sem açúcar. E que se os comiam assim ali, era porque queriam e não havia razão maior para não o fazerem.
O universo familiar está cheio destes chocantes desvios das normas, tão inaceitáveis para os outros como a possibilidade de comer um ovo estrelado sem açúcar.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

essencial e fútil



A sorte do que nos calha em sorte é a única coisa que temos. Às vezes é uma sorte madrasta, outras inacreditável. Velinhas a navegar ao vento, é o que somos, dançando com muita sorte ou de nariz torcido ao malfadado destino.
Fazer sentido é o mesmo que não fazer sentido nenhum, visto que no maior desenho das coisas, invisível ao comum mortal, o resultado certo nunca é a meta provável. Somos cientistas frustrados, a bater às cegas a todas as portas, a experimentar sem verdadeiro conhecimento de causa.
Somos remendões surrealistas, a pôr a fé em genialidades inesperadas e a alterar a realidade sem qualquer consciência do resultado da acção. Sempre a teimar na honestidade, na correcção, no carácter dos nossos feitos como motivos únicos e inabaláveis.
É um exercício fútil na pretensão do conhecimento verdadeiro, mas essencial para alguma mudança. No fundo, o derradeiro curso possível. Muito aquém das certezas de pedra e cal vendidas ao desbarato por uma educação louca e orientada no sentido contrário da impermanência de todas as coisas.
Vivemos como se pudéssemos caminhar sobre a água de um oceano demasiado vasto para a nossa compreensão. Como jogadores viciados, repetindo e insistindo no erro de não tentar um jogo diferente.
Afinal, abraçar a liberdade de forma absoluta é uma visão tão apocalíptica (reveladora), que o refúgio no fracasso é a única certeza aceitável.

domingo, 3 de junho de 2018

padrões e inteligência


A inteligência dos padrões é frequentemente subestimada. A sua beleza é evidente, mas poucos se interrogam sobre as razões que levam à atracção que provocam. A resposta é simples, embora descartada pela maior parte das pessoas que observam esse tipo de manifestações.
Os padrões são atraentes porque evidenciam a nossa capacidade de perceber que a repetição não é casual. Ocorre porque há ligações a perceber na manifestação de fenómenos semelhantes. São sinais de que há coisas a perceber. Há consciência a desenvolver em torno do que se repete e conclusões a tirar que expandem a nossa percepção.
A beleza dos padrões é essa sensação de coisas que fazem sentido sem que apliquemos mais esforço nisso, senão o do simples reconhecimento da sua existência e das possibilidades que se multiplicam a partir do momento que se observam.
Casar conscientemente a inteligência e a beleza em formas destas é uma pista valiosa para quem gosta de investir tempo a descobrir e a entender. Acrescenta sempre alguma coisa ao sentido que se busca para a existência. 
É uma revelação sem fim que traz luz, conhecimento e apreciação por esta forma de ver o mundo.

sábado, 2 de junho de 2018

como um peixinho

da série "Fishy Things"
Sentir-me como um peixinho na água, ao sabor da corrente e do que faz bem à alma. Nadar contra a corrente quando necessário para medir forças com o sentido contrário das coisas ou testar a nossa força e resistência. Nadar é preciso, boiar descansa e descomprime, aproveitar a força da água para aumentar a velocidade da vida. Fazer a viagem em modo consciente das necessidades individuais, mesmo no meio da multidão. Sentir a frescura da água, a facilidade com que se molda às circunstâncias e a coragem com que segue em frente sem se perder em minúcias e dúvidas. Mergulhar é bom, a entrega à força maior do mar é uma aventura. O que interessa o amanhã se o momento é avassalador de vida e entusiasmo? A toda a velocidade, como um peixinho ou um simples pensamento.

quinta-feira, 31 de maio de 2018

Cascais a sonhar alto IV: cores sem festa


Está aí o mês de Junho e Cascais, Capital Europeia da Juventude este ano, não tem no seu programa nenhuma iniciativa dedicada aos jovens LGBTI. Com nenhuma das associações que defendem a não discriminação de pessoas com base na sua orientação sexual. Nem da rede ex aequo, nem da ILGA Portugal, nem da AMPLOS, só para citar as mais visíveis.
Em Junho, mês da revolta de Stonewall em Nova Iorque, escolhida para representar os direitos e a visibilidade deste tipo de discriminação, muitas localidades portuguesas celebram o Orgulho LGBTI, mas não Cascais. Nem no seu ano como capital europeia da juventude.
Aqui continua a a cegueira do reconhecimento de muitos jovens que se debatem com o preconceito dos outros e das ideias que lhes são transmitidas e Lisboa é o local mais próximo para encontrarem a informação e o apoio de que necessitam.
Cascais recebe prémios e louvores de todos os tipos, mas nenhum dedicado a uma comunidade que muito tem feito para o reconhecimento dos direitos de todos. A não verbalização de um problema que afecta todas as sociedades, o silêncio, o olhar para o lado, continua a prevalecer no concelho que sonha alto e se reclama como o mais exigente na qualidade de vida dos seus munícipes e visitantes.
Sem festa, sem cores, sem os jovens que também fazem parte desta comunidade no ano escolhido para os representar.
A luta por uma sociedade mais abrangente e consciente da necessidade de abraçar a diferença nunca foi politicamente correcta, pois exige mudança e todos sabemos a resistência pessoal à fossilização dos costumes.
O que é então esta Capital Europeia da Juventude 2018, sem um movimento LGBTI empenhado, visível e feliz pelo reconhecimento dos seus pares? Passou de moda ou espera-se que passe despercebido? 
Quanto preconceito envergonhado ainda à solta pela versão muito pequena da grande Cascais...

terça-feira, 29 de maio de 2018

purgas e rábanos

by Julie Ford Oliver
As vantagens de ser um rábano: cor, picante, grande poder anti inflamações e micróbios. Conselho: comam rábanos e tudo o que é bom. Comam também o que é menos bom, mas sabe igualmente bem. Pode ser como sobremesa, mimo de bom garfo e outras desculpas de gente feliz.
Comer com as mãos também se usa e alguns alarves também se saem muito bem com as porcarias que fazem. Mas se havemos de pagar entrada num zoo ou noutros circos para entrar em contacto com essas realidades menos consideradas, apreciemos o espectáculo gratuito a que se entrega tanta boa gente.
Há ainda outras vantagens na alimentação saudável e no exagero: a purga. Se é de tão bom gosto cultivar a culpa para depois a expurgarmos desalmadamente, mãos à obra. O exagero é sempre reciclável.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

isso faz-se marinheiro?



Há mais marés que marinheiros e há tantos marinheiros (quase oito mil milhões, sempre a crescer) que nos é difícil fazer uma ideia do verdadeiro sentido das marés. Mal mergulhamos numa chega logo outra e outra. 
Não admira que nos sintamos arrastados de um lado para o outro sem controlo e sem pé. E com uma irresistível vontade de bater asas e voar. Porque ser marinheiro não basta. Também é bom alapar numa rocha e sentir a segurança de um porto. Ou enterrar a cabeça na areia para não ver nem ouvir nada.
A Natureza não dá descanso, à imagem e semelhança da tempestade de pensamentos em constante desfile em cada mente humana. À cautela, deixam-se aqui de fora as restantes mentes, não vá o diabo tecê-las e conferir o mesmo poder aos animaizinhos, insectos, plantas e por aí fora. Aí é que a porca torcia o rabo e o caos ficava oficialmente estabelecido.
Somos umas coisas inconstantes, sempre a sonhar com ordem e tranquilidade, mas a deixar que a mente assuma livremente todos os nossos desejos, sem qualquer direcção definida. Somos o caos cá dentro, mas não o admitimos dentro de nós e espantamo-nos com o que se manifesta fora.
Uma cambada de inconscientes e marinheiros de água doce é o que somos. A estabelecer que não desejamos a ordem interior, mas a apontar o dedo à de fora. Isso faz-se, minha gente?