domingo, 18 de novembro de 2018

já não tenho pesadelos

"the wild wild pink flock" by MMF
Já não tenho pesadelos. Agora só se manifestam fora dos sonhos, quando olho à minha volta e os reconheço pelo que são na realidade. Antes desta epifania havia uma zona de ninguém em que os pesadelos se manifestavam e, mesmo acordada, não conseguia situá-los na realidade, ou fora dela, porque a carga de sensações que provocavam era demasiado forte para determinar com clareza a sua origem.
Agora os pesadelos não cabem nos meus sonhos, que se tornaram inspiradores e cheios de pistas a explorar assim que os olhos se abrem. São uma espécie de aditivos que me facilitam as tarefas mais pragmáticas. Estou muito satisfeita com este upgrade mental e com a lucidez que me permite.
Os pesadelos continuam a sua existência, no dia-a-dia, mas já não me inspiram terrores. Pelo contrário, agora que os situo com exactidão, consigo entender de imediato que o que e quem os provoca vive numa dimensão de promiscuidade com o terror, sem qualquer espécie de controlo sobre o que aparentemente não deseja, mas praticando-o na mesma.
As pessoas têm imensa facilidade em sonhar. Mas são como um piloto inexperiente que não sabe tirar partido dos seus voos, nem como evitar os perigos que lhe aparecem pela frente. Acho, que pessoalmente, já acumulei horas de voo suficientes para localizar os pesadelos na sua área de acção e pilotar a minha vida para longe deles no que realmente importa.
Os pesadelos surgem da interacção com as pessoas que não entendem os comandos dos seus potentíssimos aviões e por isso estão sempre a aterrar as nas lixeiras e a arrastar a porcaria para a vida das pessoas com quem se cruzam.
Gostava muito que buscassem as lições que lhes permitissem voar pelos céus e não pelos inferninhos que criam. Para seu bem e para não conspurcarem o voo dos outros. Afinal, que dúvida ainda pode haver entre um voo limpo e aterragens perigosas no meio de lixeiras a céu aberto?
Por mim, fico bem sem pesadelos e até tenho pena de não me lembrar quando é que deixei de os ter, para poder celebrar o dia. Também tenho de corrigir os bugs do programa, porque constato que passou uma data de tempo entre esse acontecimento e a minha tomada de consciência. De futuro espero que a lucidez seja automática e traga de imediato os bónus correspondentes.

quinta-feira, 1 de novembro de 2018

bruxas e santas

"The Witching Hour" by Wendy Sharpe

Faz sentido terminar a noite como uma bruxa e iniciar o dia como uma santa. Aliás, faria sentido repetir essa rotina todos os dias, a toda a hora, sempre que nos apetecesse. É uma grande receita para a reinvenção da vida: reconhecer e aceitar com naturalidade o nosso lado mais básico e também mais vibrante, para a seguir o transmutar na subtileza do mais espiritual e igualmente poderoso.
É por isso que o dia das bruxas é tão interessante e, entre nós, seguido do dia de todos os santos, duplamente significativo. Bruxas ou santas, em papéis redutores impostos pela necessidade de controlo das mulheres, na sua versão mais poderosa e menos domada. São as mesmas bruxas e santas que abraçam os poderes mais escondidos e, afinal, mais despidos de preconceitos, para em seguida darem lugar às habilidades mais subtis e belos da verdadeira natureza humana.
É um processo natural que ainda está sob a influência dos medos atávicos que nos perseguem desde as mais remotas eras. Pode ser assustador assistir à manifestação dos magníficos poderes inatos de uma boa parte da população humana, sobretudo aquela que se quer colada a uma imagem pacífica, submissa, fraca, maternal e muitas outras coisas não forçosamente positivas.
Só que as bruxas são mesmo essa força da natureza capaz de transcender mesquinhices e votar a sua energia às tarefas mais nobres e importantes. E aí, ou como santas, são uma espécie de domicílio sagrado para todos os aflitos. 
Portanto, há que recuperar urgentemente esses papéis e reintroduzi-los na malha social dos nossos dias. Há que permitir às nossas bruxas e santas a manifestação do seu poder regenerador e pacificador, para que não se perca muito mais tempo a fazer de conta que não há soluções capazes de transformar a nossa apreciação da vida numa tarefa digna dessa experiência.

quarta-feira, 31 de outubro de 2018

irmãos no sonho

Imagem relacionada
"Brasil" by Timothy Raines
A eleição do capitão B para comandar os destinos do Brasil pôs um sorriso esperançoso na maioria dos brasileiros que vivem em Portugal. Acreditam que é um passo para restituir a paz e a ordem ao país. Eles, que fugiram sobretudo da violência que reina, impune, acreditam que a polícia militar, sob a orientação do capitão supremo da sua amada nação, vai sair à rua e caçar os bandidos que ameaçam o dia-a-dia da população.
Por outras palavras, os brasileiros refugiados em países mais seguros acham perfeitamente aceitável que façam a outros seres humanos o que não querem que lhes façam a eles.
Por outro lado, confessam que as grandes facções criminosas que dominam territórios estratégicos nas grandes cidades e um pouco por todo o solo brasileiro, estão infiltradas nos seus órgãos de soberania, os mesmos em que confiam para regular a actividade do novo presidente.
Vistas as coisas desse prisma, podemos confiar que, a haver guerra ao crime, serão com certeza os grandes potentados já instalados a combater-se fora das cadeiras do senado brasileiro para conquistar mais território e influência. Não será propriamente uma caça aos bandidos, mas uma guerra de gangues cujo final nem é bom imaginar.
Mesmo assim, mantém-se o sorriso de vitória e esperança dos brasileiros. E há que aplaudir essa confiança que torna o Brasil um país fantástico e promissor. Não os militares treinados para mostrar mão de ferro na terra que juram proteger e afinal pilham e subjugam como invasores. Muito menos os bandidos que confundem os seus direitos como seres humanos com licenças para arrebatar à força bruta posses materiais.
Por outras palavras, os nossos irmãos brasileiros mantêm o seu extraordinário potencial para crer num destino melhor, mas ainda não conseguiram a paz de espírito para se reagruparem e desenharem firmemente o seu sonho. Como tantos outros irmãos no sonho por esse mundo fora.

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

limões e amores

"World Full Of Lemons" by Vitaly Urzhumov

É fácil amar e ser amado. O problema está no tempo que o amor dura. Ou a paixão. Ou os dois, segundo o critério de cada um. Não tem a mínima importância se se considera a paixão amor ou vice-versa. A cada um o seu tipo preferido de amor.
O amor é para sempre, acreditamos. E é verdade. Mesmo quando metemos todos os tipos de amor no mesmo saco. Isso não é um problema senão quando bate de frente com a classificação atribuída pelos outros aos mesmos amores.
Deveríamos, por isso, ter um quadro de requalificações à mão. Porque é disso que se trata quando nos desentendemos. De qualificações diferentes. Se houver uma normalização dos tipos de amores, assim à laia da calibragem da fruta e outros conceitos práticos, gera-se uma norma e deixa de haver tanto problema.
Demasiada imaginação complica, sobretudo quando se pretende impingir a outros os frutos do nosso laborioso processo mental. O pecado está em não distinguir entre os processos dos outros e os nossos. E aí talvez funcionasse uma carta geral de direitos e obrigações dos processos individuais e colectivos.
No fundo, é tudo uma questão de organização e o amor não pode andar para aí espremido como um caixote de limões, por este e aquele, sem regra nem medida. Não senhor.

quinta-feira, 25 de outubro de 2018

raias voadoras

"raias voadoras" by MMF
Vem aí o dia das bruxas, ou o dos santos, e os céus estão cheios de raias voadoras que também podiam ser discos, dependendo da relação que mantemos com uns e outros ou os dias a que se referem.
Num jogo de tabuleiro teríamos pouquíssimas hipóteses de conciliar estas possibilidades todas, no sentido em que as dinâmicas têm aquela característica das óperas, sempre a oscilar entre o bem e o mal e os estereótipos. Creio bem que foi por isso que acrescentaram aos tabuleiros cartas e regras que complicam a trama do jogo para lhe darem um toque mais irracional e nos avisarem que a vida nem sempre segue as regras normais e ter de encarar novas realidades exercita-nos no sentido de não estar sempre a repetir os mesmos menus.
No caso das raias voadoras é precisamente o mesmo pacote que nos despejam em cima. Por que não observá-las noutros contextos, noutras cores, noutras formas? E por que razão hão-de largar os  seus ambientes naturais e elevar-se nos ares uns minutos? Porque abafam e precisam de lufadas de ar fresco? Ou porque são umas loucas suicidas que não têm a mínima noção do perigo e das convenções?
É precisamente o caso das bruxas, que se atrevem sempre ao que não devem. Ou dos santos, que insistem em cercar-se de auréolas de coisas boas quando se sabe, com toda a certeza que as coisas más são mais do que abundantes e circulam por aí como se não houvesse amanhã.
É tudo um exercício de imaginação, para expandir as nossas escolhas. E algumas pessoas não gostam nada de ampliar horizontes, mas depois queixam-se que nada muda ou tem solução.
E pur si muove ou eppur si muove, como terá dito o relutante Galileu, provavelmente muito baixinho para não contrariar os que se acham santos mas no direito de caçar bruxas.
Enfim, santos de casa não fazem milagres e as bruxas também são acusadas de não deixar as fadas fazer coisas boas. É tudo uma questão de pontos de vista e, do meu, nada disto faria sentido sem as raias voadoras a cruzar os céus como discos ou frigideiras mágicas. 

terça-feira, 23 de outubro de 2018

anjos como nós

'secret keepers' - 2012 (watercolor)
Há anjos como nós, que de vez em quando se cruzam no nosso caminho e nos enchem de sinais e sensações que nos são familiares e estranhos ao mesmo tempo. Ou é o tempo dos anjos que se mistura com o nosso e parece então que fica fora do lugar ou da sequência que lhe damos habitualmente.
Há anjos que só nos aparecem para correcções de rota, por instantes, para voltarem a pôr-nos no caminho certo. Outros que nos acompanham a vida inteira e nem sequer se fazem especialmente notados. E ainda uns que nos arrebatam como se nada mais no mundo importasse.
Agrada-me muito esta ideia de viver num mundo de anjos que surgem como lufadas de ar fresco, ondas poderosas ou rios de emoções e sensações em que é obrigatório mergulhar e disfrutar para entender o verdadeiro sentido da vida.
Como anjos, cada um de nós faz parte dessa dança encantada em que o mundo se transforma quando nos deixamos levar por coisas boas e entusiasmos vários. Por coisas que lamentamos muito quando deixamos fugir, sem nos apercebermos que elas voltam, talvez com outras roupagens, mas sempre com a clara intenção de nos obrigarem a reflectir e a viver qualquer coisa importante.
É muito agradável manter uma saudável consciência de sermos anjos que se dão com outros anjos. Mesmo sem asas ou poses celestiais. Apenas com uma honesta vontade de participar de uma visão angelical de todas as coisas.

segunda-feira, 8 de outubro de 2018

quando Cascais arde

"Cascais Fire 2018" by MMF
Se juntarmos os pontos e apreciarmos os acontecimentos recentes à luz de uma lógica fora dos preconceitos ditados pelos média ou pela nossa limitada noção de responsabilidades, ficamos com uma visão literalmente incendiária de como chegámos ao ponto de perder seiscentos hectares de pulmão entre Cascais e Sintra.
Em primeiro lugar, para sermos realistas, os nossos pulmões não nos servem de nada sem a grande mancha de verde que a Terra põe à nossa disposição para os usarmos. Em segundo, mas muito pouco secundário neste caso, de cada vez que cada um de nós toma uma decisão, é co-responsável por tudo o que acontece no planeta.
Poderíamos estar a falar do oceano de plástico ou dos fogos da Austrália ou da Califórnia, mas estamos a falar do que aconteceu aqui, no nosso quintal. Na paisagem que reclamamos protegida e, afinal, acabou arrasada porque os nossos "abraços" em slogans não são suficientes para a manter segura. Nem por sombras.
Não fazemos o suficiente para nos manter seguros. Deixar queimar os pulmões verdes e depois sacudir a água do capote a responsabilizar a protecção civil ou governos autárquicos não faz sentido nenhum. Sobretudo se os poucos votantes da região validaram os dirigentes actuais, co-responsabilizando-se portanto com as suas decisões. Ou se permitimos que empreendimentos de luxo, com lucros a curto prazo se sobreponham à vida de qualidade que afirmamos ter neste cantinho de zonas protegidas.
Somos todos responsáveis pelas decisões que levaram ao incêndio que acaba de destruir uma parte da qualidade de vida que alardeamos para esta porção privilegiada do planeta. E temos de compreender a mensagem por detrás do desastre, porque ela é uma projecção do futuro colectivo que preparámos para nós e para as gerações futuras.
Quando seiscentos hectares de floresta ardem, essa é a medida do que arde em todos nós. Arde porque somos negligentes em relação às pequenas decisões de enormes consequências na nossa vida? Arde porque inconscientemente purgamos assim muito do lixo que arrastamos todos os dias em detrimento de posturas e acções mais naturais e honestas? Arde porque ansiamos por renovação?
Arde também porque estes desfechos são tomadas de atenção que devemos entender de forma mais profunda, em momentos que devemos saber decisivos para mudar e viver de forma mais sustentável.
Quando Cascais arde é porque chegou a uma encruzilhada fulcral e cabe-nos a todos, individualmente, escolher o caminho novo e mais certo para a terra em que assentamos a planta dos pés e as raízes da nossa vida.

quinta-feira, 4 de outubro de 2018

a tirania do som


Aqui a pensar no poder do som. Há quem diga que as pedras de grandes monumentos como as pirâmides foram transportadas e empilhadas com a ajuda de dispositivos de som. A Bíblia também testemunha que o Verbo deu origem ao mundo. Por outro lado, os países mais desenvolvidos parecem ser muito mais silenciosos do que os festejam as suas desgraças com carnavais e movidas de todo o género.
A falta de consciência sobre o nível de ruído que se produz é, sem dúvida, um sintoma de que algo não vai bem no reino humano. De que não se pausa para escutar nada nem ninguém, quanto mais o som do corpo que habitamos, o que precisamos de ouvir e se abafa em gritarias de todo o tipo.
Gritar é uma coisa desagradável e basta passar por uma escola num intervalo para entender que algo vai mesmo mal quando o que caracteriza um centro de suposta aprendizagem é o volume de som indiscriminadamente produzido pelos jovens estudantes.
O que se anda a ensinar, afinal? Que o mundo é uma cloaca ruidosa e assustadora? Que os conteúdos multimédia mais ruidosos são mais importantes do que os que reflectem sobre temas que nos ajudam a entender o mundo que nos rodeia.
O som tem poder, sim. Sobretudo o de nos alienar, monopolizando um sentido essencial. Mesmo as imagens, sem som, se esvaziam de sentido e são percebidas de forma completamente diferente sem a tirania que nos invade os ouvidos.
Será difícil entender por que razão quem não ouve parece ter uma postura completamente diferente perante a vida? E por que se crê ser necessário viver sob o domínio dos megafones e de infindos discursos sem sentido? 
Em determinado ponto, alguém decidiu que a melhor forma de imposição era a de afogar toda a gente em ruído e assim fechar as portas ao silêncio que nos ajuda a centrar e a pensar de forma correcta.

quarta-feira, 3 de outubro de 2018

casual strokes

"casual strokes" by MMF - photo by Paulo Paz
O artista mostra-se, não raro, relutante no que toca à verbalização do processo que leva à sua obra. O que não admira, porque poucas coisas são mais pessoais. Da forma como surge uma ideia, um conceito, passando pelos meios que emprega para a sua materialização, às escolhas que faz durante todo o percurso que lhe é natural, tudo tem que ver com o seu processo interior. Com a forma como resolve apresentar esse processo e que corresponde a um inevitável percurso de consciência e transformação pessoal.
O ofício artístico, consciente ou não, nunca deixa de ser uma tarefa pessoal de crescimento e entendimento. Representa um estudo e uma prática concretos pelos quais se passa na viagem de conhecimento interior que todos fazemos. No caso dos artistas, ela é expressa em formas concretas e observáveis pelos outros. E é a empatia que gera, a oferta em que os outros se revêem, que torna a obra apreciada e entendida.
Este processo não é consciente para a maioria das pessoas, artistas incluídos, na medida em que muitos preconceitos sobre a prática artística a remetem sistematicamente para uma actividade menor. O artista é ainda entendido como o excêntrico, o socialmente desajustado que insiste numa forma de estar e trabalhar sem efeitos quantificáveis. Exactamente o oposto do que é a sua capacidade de realização e a frescura que traz a uma visão esquálida das nossas possibilidades.
A documentação, discussão e compreensão do processo artístico é, por isso, essencial ao seu crescimento pessoal e como agente cultural. E a fruição da obra é apenas o primeiro passo dos outros para o entendimento dos seus mecanismos individuais de evolução.
O trabalho artístico não é um capricho, mas uma ferramenta através da qual todos ganhamos e avançamos. Assim nos permita a nossa vontade e consciência.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

às voltas nas estrelas

"starry sky" (2018)
Imaginar que andamos à volta nas estrelas. Por vezes é necessário abraçar uma imagem na nossa mente para entender que basta isso para dar uma volta à vida. Ignorar a existência de coisas desagradáveis e escolher outras que nos fazem melhor. 

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

a podar é que a gente se entende

"alive and free"
A simples verdade é, que para nosso descanso, gostamos de podar tudo à nossa volta. Não suportamos a exuberância da variedade e preferimos domar os ramos que escolhem caminhos diferentes da ordem que consideramos aceitável.
Depois queremos muito ter mais escolhas, mas vamos eliminando as que achamos estar a mais, sem gastar um momento a ponderar se não estarão defronte dos nossos olhos para alargar o nosso leque de possibilidades.
Julgamos mas depois queixamo-nos imenso de que nos ceifam as escolhas. Fazemo-lo todos os dias e não admitimos que a redução é posta em prática, em primeiríssima mão, por nós. A responsabilidade atira-se, irresponsavelmente, para os outros, para o exterior, para a rua. 
Como se não bastasse essa cegueira auto-imposta, ainda levamos a loucura ao ponto de deixarmos que um grupo de ceifeiros manipule uma entidade estatal, também da nossa responsabilidade, que todos os dias se ocupa a criar regras de normalização que nos transforma a todos em embalagens do mesmo tamanho, com o mesmo peso e códigos de barra para nada falhar ao seu controlo.
Que triste imagem temos de nós mesmos e que catalizador exponencial é o menorizante conjunto de regras que admitimos para a interacção social.
Em contacto com os outros, admitimos, relutantemente, uma mão cheia de regras de funcionamento, qual delas a mais manietante. Dentro nós ainda vamos sonhando, mas com os outros temos regras de calabouço e é assim que nos sentimos em sociedade.
Em vez de aproveitar o ímpeto de possibilidades que uma maior liberdade, bem educada, nos concederia. 

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

instinto


Instinto de sobrevivência. Instinto, naquela versão facilmente explorada através da atenção prestada à respiração. E sobrevivência do que somos, de facto e que não começa nem acaba. Reduzir a expressão a esta experiência de vida também serve. Mas que sentido faz esse instinto se a sobrevivência é para o que um dia acaba e não volta mais?
No fundo, acreditamos nesse instinto superior que a todos orienta no caos da vida. Ou a vida do caos que nos resta quando é impossível abarcar todas as causas para discernir todas as consequências. Um desenho da existência com linhas limites muito convenientes. Mas para quê então um instinto que nos garante saídas extraordinárias desses limites? Afinal os limites são naturais ou são os dos sentidos que nos devolvem esta experiência?
Depois vem a sobrevivência, que não faz grande sentido se todas as coisas são finitas. Se não se observar além do que acaba. Faz muito mais sentido se a sobrevivência for de facto a existência para lá do começo e do fim, a linha da vida que não acaba e se transforma permanentemente.

terça-feira, 28 de agosto de 2018

sou um post-it

"I am a post-it"
Sou um post-it. Passo um quarto do meu dia a lembrar uma série de gente toda a sorte de coisas. Quando páro, vejo-me às aranhas para lembrar nomes, títulos, palavras vulgares para objectos do dia-a-dia. Resumindo, também preciso de um post-it.
Devo consultar um oráculo para descobrir o meu post-it pessoal? Um centro de meditação transcendental? O meu médico de família, que me aterroriza com a sua hipocondria e tendência para prever doenças que não são do meu interesse?
Por uma questão de senso comum, será melhor enumerar as qualidades expectáveis num post-it pessoal, tal como um invulgar respeito pelo meu silêncio, capacidades divinatórias excepcionais, para evitar irritantes explicações sobre o que pretendo que me lembre? Ou a relevância de não usar uma cola com componentes passíveis de induzir alergias e outros males menos conhecidos?
É uma maçada entrar no universo dos post-it e descobrir todas as barreiras físicas, emocionais e mentais a superar. Não admira que tenham escolhido o amarelo para estes papeizinhos, como aviso para a aventura em que se embarca a partir do momento em que começam a utilizar-se.

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

não me apetece escrever

"don't feel like writing"
Hoje não me apetece escrever. Não me ocorre uma ideiazinha sequer. Começa-se logo de manhã a ler tanta coisa interessante que se afoga completamente a pretensão de comunicar mais qualquer coisinha de jeito.
O problema é que gosto de escrever, seja lá o que for ou como for. Habitualmente não me faltam ideias, mas hoje todas me parecem demasiado óbvias. Para mim, porque o meu óbvio não é o dos outros e cada um se amanha com o melhor que lhe ocorre.
Hoje preferia não ter ideias sequer. Deixar que a vida siga só para observação, anotação. Sem maiores complicações. Afinal, nem sempre acreditamos que temos esse luxo. E temos muitos, se bem que não os valorizemos com a nossa atenção.
Está declarada, pois, esta segunda-feira para a benevolente preguiça da contemplação. Mesmo nos preguiçosos afazeres de todos os dias, nas possíveis coisas inesperadas e nas decisões inadiáveis. Tudo a fazer com a devida quantidade de não me apetecer fazer nada.
Assim, apesar de todas as potenciais expectativas, este é o meu contributo: fazer sem me apetecer, só porque há que o fazer, mas sem a inútil carga da obrigação.
Esta segunda-feira vai fluir como a corrente, sem resistência, porque não me apetece mesmo fazer nada. Mesmo consciente que o nada não existe. Ou porque, não existindo, há que reservar uns bons segundos a ligar e a desligar, a ligar e a desligar, para fazer um reset ao acaso, à espera que um deles desperte de novo a nossa vontade.
Preguiça, preguiça, preguiça. 

domingo, 19 de agosto de 2018

cataclismos anunciados

Live Kindly "Ocean Plastic Polution"
As redes sociais espelham o estado do mundo. Assim à semelhança dos plásticos que poluem os mares, a emissão de gases nocivos ou os depósitos de lixo a céu aberto. O mais que se publica é somente poluente e ilustrativo das carradas de inutilidades, pensamentos destrutivos e futilidades que a maioria das mentes produz.
Toda a gente tem opinião sobre tudo, o que é um direito que lhes assiste, sem sombra de dúvida. Contudo, se a maioria se desse ao trabalho de rever as suas publicações e os seus comentários, à laia de revisão da matéria dada, ficariam com certeza chocados com a sua capacidade de despejar raiva, insultos, declarações de falta de fé a propósito de tudo, de produzir julgamentos de valor sem qualquer respeito por aqueles que visam, pela facilidade das suas condenações e pela imagem negativa que dão de si.
Tudo coisas que produziriam o pior dos efeitos se lhes fossem dirigidas. No entanto, não fazem cerimónia em relação aos outros. Não lhes dão o benefício da dúvida, não questionam a veracidade de qualquer publicação, negando totalmente a sua capacidade de contenção e de boa educação.
Se os visados têm um nome público, então é um fartar vilanagem, como se a notoriedade se destinasse apenas a provar que quem a obtém é um alvo fácil e destinado a ser abatido. 
Nos intervalos, publica-se a erudição em dois segundos, com as imagens engalanadas por grandes pensamentos e grandes verdades, citações, anjos, crianças, gatinhos e outros animaizinhos nas suas versões fofas e doces. De médico e de louco todos temos um pouco, mas esta moda de auto-rotulagem através de cultura página cinco parece um show global dos Monty Python, versão ultra económica.
O exemplo vem de cima, claro, com muitos circos e contra-informação a ser profusamente difundida pelos líderes que não se sentem capazes de resistir aos conceitos mais populares de comunicação mediática, sentindo-se na obrigação de produzir publicações diariamente e mesmo que a despropósito.
A verdade é que o mais inofensivo que se observa são as fotografias dos pratos de comida à hora de almoço. Quem, na realidade, quer acreditar que a pior versão de si é a que os outros querem conhecer e admirar?
Sim, o mundo está tal como estamos também, caótico e negativo como a única realidade que somos capazes de imaginar e reflectir, nas redes sociais e fora delas. E se não conseguirmos imaginar nada melhor e reflecti-lo na forma como vemos o que nos rodeia e como agimos, então não nos resta senão o inevitável cataclismo que anunciamos.

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

liberdade e vacas

"jovita, the cow" by Marita Moreno Ferreira
Descendo um dia de carro pela lisboeta Avenida da Liberdade, ao abrir de um sinal amarelo, parei conscienciosamente e aguardei que o vermelho desse lugar ao verde. A condutora de trás não apreciou a minha escolha e, de rompante, muda de faixa, pára ao meu lado, abre a janela e grita: "Vaca!"
"Onde?" pergunto, girando a cabeça de um lado para o outro à procura do bovino.
A condutora respondeu com murros furiosos na buzina, provavelmente para desimpedir a via do indevido uso pelo animal.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

venha o diabo

"escolhas"
Venha o diabo e escolha, assim como se a culpa fosse coisa exterior e nada tenha que ver com as decisões tomadas por cada um. O deus de dentro cede assim facilmente o lugar ao capeta, numa espécie de outing involuntário ou inconsciente do pior a que assistimos na vida. Logo a seguir venha a divindade de novo, redimida e santa, que em nada se assume no que a sua mão esquerda acciona. Divertido e fácil este jogo duplo em que tudo se separa no aceitável e na sua contrária. Sem qualquer preocupação em admitir a coexistência das duas forças opostas dentro de cada um. Nas regras desse jogo não há lugar para as pontes esclarecedoras da indiscutível necessidade de ambas faces da moeda. A obsessão em dividir tudo entre bom e mau cega a visão do caminho do meio e para a compreensão de que o mau está ali não como o diabo, mas como uma ferramenta para nos desembaraçar de soluções que não o são, simplesmente. Como a carta da morte que nos confronta com a necessidade de mudança e apenas se entende como tragédia e fim. Fim de um caminho, de um processo, mas não de tudo o resto. Há sempre mais entre a terra e o céu do que o olho abarca. A escolha da cegueira ligada ao ver para crer, quando de facto não se quer ver. A preguiça do medo, essa invenção que também colhe, como a gigantesca foice da morte. No final, nenhuma ameaça se mantém. O botão de reinício salva-nos sempre do inexistente fim, em transformações que se teima não entender. É tudo uma questão de perspectiva, de redireccionar o olhar. Venha, mais uma vez, o diabo e escolha, nessa parte em negação de cada um de nós.

domingo, 12 de agosto de 2018

silêncio e prazer

"within the flow", fishy things series
No silêncio das manhãs de domingo a apreciar a tranquilidade e a seguir com a corrente. Puro prazer, o de deixar que a vida nos arraste, em vez de ceder à tentação de arrastar a vida. 

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

o fogo em nós

"on fire" - MMF

Os piores incêndios são os que se acendem dentro de nós. E como fazemos parte indissociável de um ecossistema que engloba o planeta e, provavelmente, tudo mais que se conhece, é impossível deixar de ponderar sobre o que arde. Ou por que e para que arde.
Na sua perspectiva mais benevolente, o fogo e as queimadas, no Verão, fazem parte de um processo de renovação, de transformação do que não mais serve para dar lugar ao renascimento natural. Dos quatro elementos, é o que rege o coração.
Quando, neste mundo de que participamos, os incêndios assumem formas catastróficas, talvez devêssemos examinar o estado dos nossos corações. A zanga que jorra de dentro e a que, com certeza, não é estranha nem separável da sua manifestação natural.
O Verão também é um tempo entendido de descanso e fruição, talvez porque necessitemos desse amansar da actividade mental e física para renovar a tranquilidade dentro de nós e não contribuir com mais achas para a fogueira que, eventualmente, nos encurrala e destrói.
A mais acertada ponderação será, portanto, sobre o nosso contributo pessoal para as catástrofes, sejam elas de fogo, de plástico, de lixo, de emissões prejudiciais ao ar que se respira. Maturar a ideia da propensão natural de atear qualquer espécie de incêndio e transformar as vontades do coração em práticas de serenidade e segurança que são essenciais à sobrevivência.
O combate ao fogo nasce dentro de nós. Evolui e prospera quando entendemos que se ganha com o abandono da cólera e com a escolha inteligente da objecção de consciência. Não faz sentido participar do que condenamos e sabemos estar errado. 
Pacificando a mente e o coração damos igual oportunidade a todos os outros elementos. Ao equilíbrio.